Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
Na frente do prédio, esculturas de Clio (musa da História) e de Minerva (deusa da Sabedoria)[/sc]. Do lado de dentro, estantes de madeira maciça abarrotadas de livros antigos e a longínqua memória de uma efervescência econômica e cultural que dominou a cidade de Maruim, no interior de Sergipe, entre o fim do século 19 e o começo do século 20. Assim é o Gabinete de Leitura de Maruim2 inaugurado em 1.877, em meio a uma onda já em curso na Europa, que fez surgir inúmeras instituições semelhantes no Brasil.
Um dos propósitos dessas instituições – e o Gabinete de Leitura de Maruim não foi exceção – era de ampliar o universo de leitores por meio de recursos como locação de livros e leitura oral, para, com isso, favorecer o mercado livreiro que estava em expansão. Mas esse era apenas um dos aspectos do fenômeno e em Maruim talvez tenha sido um dos menos expressivos.
Mais que bibliotecas, os gabinetes de leitura eram centros culturais criados para abrigar debates literários, sociais e políticos. O Gabinete de Leitura de Maruim, como muitos outros, acabou se transformando em um ponto de encontro da intelectualidade local, onde ocorriam palestras e discussões tanto literárias como políticas, algumas delas protagonizados por filósofos e poetas da importância de Fausto Cardoso, Silvio Romero e Tobias Berreto, entre outros.
O Gabinete de Leitura de Maruim
Quando o Gabinete de Leitura de Maruim foi inaugurado, em 1887, já havia, no país, inúmeras dessas instituições. O mais antigo era o o Real Gabinete Português de Leitura, criado em 1.837 por um grupo de imigrantes portugueses que viviam no Rio de Janeiro. Em Sergipe, foi antecedido por outros dois: o de Aracaju, de 1.860 e o de Itabaiana de 1.885, mas dos três foi o único que sobreviveu, e é um dos poucos do Brasil ainda em funcionamento.
Na época da inauguração de seu Gabinete de Leitura, Maruim era grande exportadora de cana-de-açúcar e de algodão. A cidade abrigava consulados de vários países como Inglaterra, Alemanha, Suécia, Dinamarca. Seu comércio era forte e competia com o de Laranjeiras, outro importante centro econômico do Estado.
O Gabinete de Leitura de Maruim foi concebido como uma instituição vinculada a ideais liberais, abolicionistas e republicanos e tinha como principal objetivo contribuir para o fim do analfabetismo no país – considerado por eles um entrave ao desenvolvimento. Foi idealizado, segundo a historiadora Maria Lucia Marques Cruz e Silva, por dois irmãos nascidos e criados no vizinho estado da Bahia, que chegaram à cidade sergipana depois de uma temporada no Reino Unido, atraídos pelo florescimento local. Thomaz Rodrigues da Cruz era médico e João Rodrigues da Cruz dedicou-se à exportação de cana de açúcar – carro-chefe da economia maruinense na época.
Os irmaos Cruz foram prontamente apoiados pelo diplomata alemão, Otto Schramm, que além de atuar no comércio exportador, era consul de seu país naquele município. Alguns pesquisadores atribuem a Otto a concepção do Gabinete de Leitura de Maruim porque pelo menos parte do acervo inicial da instituição teria vindo da coleção de sua tia Adophine Schramm, que mantinha dentro de casa uma expressiva biblioteca e costumava fazer empréstimos à comunidade alemã.
Inaugurado com grande pompa, com a participação da Flarmônica Euterpe Maruinense – orquestra que se mantêm até hoje – o Gabinete de Leitura conseguiu uma grande adesão, chegando a reunir, logo de saída, dezenas sócios. Alguns deles eram maçons, o que leva historiadores a concluírem que a instituição recebeu também, ainda que informalmente, o apoio da Maçonaria e, em consequência disso, sua influência em vários aspectos, inclusive na proibição de mulheres.
O apoio à instituição foi além dos círculos de intelectuais. O Gabinete de Leitura de Maruim conquistou também a simpatia da população. Mesmo os maruinenses que deixaram a cidade para viver na capital apoiavam de uma ou de outra maneira a instituição e isso se manteve por décadas. Dedicatórias contidas em alguns livros exibem oferecimentos feitos a partir de Aracaju.
É o caso de um exemplar do romance Chanaã (Canaã), de Graça Aranha, que descobri ter sido doado em 1936 por meu avô – o comerciante José Carvalho Andrade – maruinense residente na capital. Para minha surpresa e por uma feliz coincidência, foi o primeiro livro que a diretora do gabinete, Joelma Martins, me mostrou quando pedi para fotografar alguns exemplares.
Apesar do grande apoio, o Gabinete de Leitura também teve importantes opositores, Antônio Leonardo da Silveira Dantas, o pároco local, e João Gomes de Melo, o Barão de Maruim, que na época era senador do Império e já havia sido presidente da provìncia de Sergipe. Os principais motivos dessa oposição não se devia apenas aos ideiais políticos dos fundadores da instituição, mas também ao fato de haver no acervo livros de autores liberais como, por exemplo, Voltaire, que criticava o catolicismo e pregava a separação entre Igreja e Estado.
A Revista Literária
A história da pequena Maruim é marcada pela existência de vinte e um jornais e seis tipografias. Quando surgiu o Gabinete de Leitura, o município tinha menos de oito mil habitantes. O advogado e deputado federal Alberto Deodato, que viveu entre 1.896 e 1.978, dizia desconhecer outra pequena cidade brasileira onde tanto se cultivasse as letras e afirmava que Maruim tinha mais livros do que habitantes.
Foi nesse contexto que surgiu, em outubro de 1.890, a Revista Literária do Gabinete de Leitura de Maruim, criada a pretexto de divulgar a instituição e conquistar leitores, mas que, segundo Lúcia Marques, agregava outras funções como dar evidência a seus sócios e promover debates literários e políticos. Seu principal objetivo, no entanto, era lutar pelo fim do analfabetismo no Brasil, que ainda era bastante expressivo na época.
Embora tenha durado apenas um ano, a Revista Literária, teve grande repercussão. Era enviada a outros estados e aos países ligados comercialmente a Maruim. Tinha uma coluna dedicada à poesia e outra aos folhetins, muito populares naquele momento histórico. Seu propósito de combater o analfabetismo não rendeu frutos imediatos, mas pode ter contribuído de forma indireta para uma conquista do Gabinete de Leitura ocorrida quatro décadas depois: a instalação, em 1916, de uma sala de aula, possibilitada pela criação da Liga Sergipense Contra o Analfabetismo e a inauguração, três anos depois, da Escola Noturna José Quintiliano da Fonseca.
O gabinete pede socorro
Com quase um século e meio de existência, o Gabinete de Leitura de Maruim já passou por várias fases. Entre as décadas de 1970 e 1980, funcionou como discoteca. Por sorte, o acervo foi mantido, ainda que sem os devidos cuidados. Em 1992, a instituição foi municipalizada e voltou a funcionar de acordo com pelo menos parte do seu objetivo inicial.
Atualmente, o Gabinete de Leitura não tem mais a efervescência do passado, mas é em sua sede que ocorrem as reuniões da Academia Maruinense de Letras. O gabinete é mantido em funcionamento pela Prefeitura local e, além do acervo histórico, abriga uma pequena biblioteca frequentada principalmente por estudantes de primeiro e segundo graus.
A antiga casa que no passado foi palco de discursos abolicionistas e republicanos, hoje exibe, entre as imponentes estantes, uma estátua do Barão de Maruim, que além de ter sido um opositor de todas essas ideias, se recusou a assinar sua ata de fundação. Mas os atuais maruinenses colocam isso na conta do tempo, que desfaz as oposições, e justificam a presença da estátua lembrando a contribição que o político teria dado tanto para a história da cidade e do Estado, como para a própria população.
De fato, o problema chave do Gabinete de Leitura de Maruim não está em guardar em sua principal sala um personagem que jamais esteve ligado à sua fundação nem a seus pincípios originais. Está, sim, no estado de degradação em que o prédio se encontra, com o piso ameaçado de desabamento sobre um porão de cerca de dois metros de altura, à espera de verba para que se possa dar início a uma reforma estrutural.
Notas
- 1 Quando o Gabinete de Leitura foi criado, a grafia usada era Maroim
- 2 Leia, aqui no blog, materias sobre outros ugares especiais de Sergipe: Cemitério dos Náufragos / Mercado Thales Ferraz / Museu do Sertão / Horto de Caípe Velho
Gabinete de Leitura de Maruim – Maruim – Vale do Cotinguiba – Sergipe – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1 e 5) Hefrain A. Israelí
- 2,3,4,6) Sylvia Leite
Consultoria
- Maria Lúcia Marques Cruz e Silva, Historiadora e presidente da Academia Maruinense de Letras e Artes
- Hefraim A. Israelí, estudante de Museologia e secretário da Academia Maruinense de Letras e Artes
Referências
- Revista Literária do Gabinete de Leitura de Maroim - dissertação de mestrado de Maria Lúcia Marques Cruz e Silva
- Inventário Cultural de Maruim - livro de Maria Lúcia Marques Cruz e Silva
- Sergipe - um roteiro turístico, histórisco e cultural - livro de Amâncio Cardoso
Sylvia, fiquei emocionada, surpresa, revoltada, muitas sensações e sentimentos durante a leitura .
Assim como a emoção que vc sentiu ao ter em mãos doado por seu avô, logo o primeiro exemplar que lhe foi mostrado, apesar da distância maior no tempo foi o pai de minha querida bisavó e madrinha, Marieta , um dos fundadores do Gabinete que nunca soube existir .
Assim como desconhecia que à época, devido a fase Aurea das usinas de açúcar, vários países fossem ali representados, através dos consulados.
Mas, apesar de tantas manifestações de importância, da preocupação com o analfabetismo e, também por isso com o progresso, revolta-me, embora não me surpreenda , que não fosse permitida a entrada de mulheres .
Mas, seu texto revelou-me muito mais do que conhecia da cidade que, para mim, talvez tenha se resumido a Pedras.
Lamento que esse monumento à cultura não esteja ,como tantos outros, tendo a atenção e o cuidado que lhe é devido pelo presente , e, em memória ao passado.
Obrigada por me mostrar um pouco mais da minha terra, da minha família e pelo sinal de alerta!
Que nesse tempo em que se pretende retomar o valor da Cultura , a situação possa melhorar!
Pois é, Carmem, entendo tanto sua emoção como sua revolta em relação ao Gabinete de Leitura de Maruim. Emoção por sua história nos colocar em contato com nossos antepassados e revolta tanto por não terem permitido a participação de mulheres como pelo fato dos responsáveis não haverem cuidado dessa preciosidade como deveriam. Pensar que funcionou ali uma discoteca, é assustador… Foi muita sorte o acervo não ter sido destruído.
Nunca soube da existência desse gabinete de leitura. Como sempre excelente trabalho de pesquisa. Muito obrigado et parabéns.
Pois é, Joaquim, eu tabém não sabia da existência do Gabinete de Leitura de Maruim. Desdobri há menos de um mês. E olha que meus avós eram de lá.
Surpreend
Eu também fiquei surpresa quando sube da existência do Gabinete de Leitura de Maruim.
A história de Maruim é grandiosa! Adorei, Sylvinha!
Você foi a primeira a me falar desse passado grandioso de Maruim. Eu nunca tinha ouvido nada sobre isso, embora meus avós fossem de lá. Te devo essa!!!
Lílian de Lins Wanderley
Parabéns a Sylvia que ajudou mais sergipanos a conhecer a história de Maruim, através do trabalho de Lúcia Marques Cruz e Silva, grande historiadora viva e produtiva, que lá nasceu e dedica a maior importância a esse município em todos os aspectos passados e presentes. Divulgar a existência desse gabinete e descrevê-lo ao vivo, como fez Sylvia, equivale também a uma tarefa de guia turístico, pois dá vontade de ir lá..
E quem começa a conhecer essa história fica fascinado e mergulha no tema…Comecei em 1984 com a obra Sergipe: fundamentos de uma economia dependente, de Maria da Glória Santana de Almeida, prossegui com Cartas de Maruim(1991), de Edgar da Mota Freitas, que relata a vida de Adolphine Schramm em Maruim, através das cartas escritas por ela própria, e continuei pelas letras de Lúcia Marques. Daí que estive lá várias vezes, para apreciar a zona portuária, os armazéns e o que ainda resta da paisagem social daquele tempo.
Parabéns a Sylvia também pela síntese da história de Maruim via Gabinete de leitura, pela exibição desse prédio marcante e pela diversidade de temas que estuda e divulga aqui em Memórias.
Obrigada, Lílian. Bom saber que leu e gostou. Volte sempre.
Uma pérola no vale do Continguiba! Como foi bom saber disso e ler sua matéria. Obrigado!
Eu que agradeço, Carlos. O Gabinete de Leitura de Maruim é realmente uma pérola. Bom saber que gostou. Volte sempre!
Maravilha Sylvia , você escreveu inspirada. Que legal o livro do tio José Carvalho Andrade. Meu pai nasceu em Maruim. Estive algumas vezes de férias agradáveis. Parabéns.
Obrigada, Maria Helena. Sabia que você ia gostar de ler sobre o Gabinete de Leitura de Maruim.
Que bacana seu post sobre esse gabinete de leitura de Maruim, não sabia da existência dele, vc como sempre nos trazendo muitas histórias bacanas
Eu também nunca tinha ouvido falar no Gabinete de Leitura de Maruim até pouco tempo atrás.
É uma pena que lugares como o Gabinete de Leitura de Maruim fiquem sem exposição e cuidados que deveriam ter. Nossa geração atual não dá valor infelizmente. Ótimo relato.
Uma pena mesmo, Ana. O Gsbinete de Leitura de Maruim precisa ser socorrido o quanto antes.
Quando li Maruim no título, pensei se seria ou não a cidade do interior de Sergipe, estado onde morei por uns anos na minha infância e ouvia falar da cidade. Não cheguei a conhecer, mas o que vi aqui sobre o Gabinete de Leitura me deixou surpresa. Que história linda, que espaço interessante, além do propósito, o mobiliário e o piso são um caso à parte (observações de uma designer). Que delícia saber que existe um lugar como esse numa cidade tão pequena no interior do nosso Nordeste.
Eu também fiquei surpresa, Cynara. Apesar de ter nascido em Aracaju e de Maroim (agora se escreve assim) ser a terra de meus avós maternos, eu soube da existência do Gabinete de Leitura de Maruim há pouco tempo.
Triste ver esta situação de um importante e histórico monumento.
você teria o contato da Maria Lucia Marques? fiquei interessado em adquirir os livros escritos por ela.
Triste mesmo, José Alisson. As autoridades deveriam restaurar e manter o Gabinete de Leitura de Maruim. Quanto a Maria Lúcia, me passe seu contato por e-mail ( [email protected]) que eu entrego a ela e peço que fale com você.