Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
Quem vai ao Rio de Janeiro, e quer conhecer um pouco de sua história, não pode deixar de visitar o Instituto Pretos Novos (ou Iinstituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos – IPI) no bairro da Gamboa, região central da cidade. Ali se concentra a memória da chegada dos africanos escravizados à cidade maravilhosa e da vida que levavam no cativeiro. E o mais importante: a sede do instituto ocupa o terreno que foi usado, entre 1769 e 1830, para enterrar os que morriam depois da entrada dos navios negreiros na Baía de Guanabara, ou logo após o desembarque no Cais do Valongo1.
A descoberta do sítio arqueológico ocorreu por acaso, em 1996, quando os proprietários do imóvel – a família Guimarães dos Anjos – iniciou uma reforma que exigiu escavações. Sob o solo foram encontrados fragmentos de cerâmica, vidro e ferro misturados a ossos humanos.
Os arqueólogos, historiadores e bioantropólogos que realizaram a identificação dos achados arqueológicos e fizeram a confirmação de sua origem, catalogaram mais de 5 mil fragmentos e 28 corpos, a maioria de homens jovens com idades entre 18 e 25 anos. E foi a existência desse sítio que levou Merced e Petrúcio Guimarães dos Anjos, a criar, em 2005, o Instituto dos Pretos Novos.
O Cemitério dos Pretos Novos
Pretos novos era a denominação dada aos africanos recém-chegados. Nesse momento inicial, os cativos eram chamados, também, de boçais – expressão usada para designar pessoas incultas ou grosseiras e, nesse caso específco, fazia referência ao fato deles ainda não terem aprendido o Português.
Depois que eram vendidos e aprendiam a língua dos ‘senhores’, passavam a ser chamados de ladinos – palavra que significa esperto, e, no caso dos escravizados, se aplicava àqueles que além de conseguirem se comunicar, eram considerados aptos aos trabalhos domésticos, enquanto os pretos novos ou boçais eram encaminhados à lavoura.
Estima-se que tenham sido enterrados nesse local, onde hoje funciona o Instituto Pretos Novos, cerca de 60 mil africanos2 trazidos por navios negreiros e mortos no final da viagem ou depois do desembarque no Cais do Valongo. Esse número corresponde a 3 por cento dos cerca de 2 milhões de escravizados desembarcados no Rio de Janeiro entre os séculos 18 e 19 e a 6 por cento dos cerca de 1 milhão que chegaram específicamente pelo Valongo.
Segundo registros históricos, as mortes aconteciam porque as viagens eram longas e penosas. Duravam cerca de 40 dias e durante esse período os cativos permaneciam em porões sem ventilação, sem higiene e com alimentação restrita, limitada a pequenos pedaços de carne seca, farinha e uma pequena quantidade de água, o que afetava, principalmente, jovens e crianças. Muitos ficavam pelo caminho, nas também era grande o número dos que morriam na chegada.
Seus corpos eram enterrados sem caixão e sem qualquer ritual, envoltos, quando muito, em pedaços de esteira, como denuncia Júlio César Medeiros da Silva Pereira no livro “À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro”.
Segundo relato do Curador do IPI, Marco Antonio Teobaldo, em texto exposto no Instituto Pretos Novos, muitos corpos eram ‘desmembrados, queimados e espalhados pelo terreno, cobertos apenas com algumas pás de terra”. Ele afirma, ainda, que após o encerramento dos desembarques de negros na região, em consequência da proibição do tráfico negreiro, a população do entorno jogava lixo no terreno.
O local onde hoje funciona o Instituto Pretos Novos não foi o único cemitério de escravizados do Rio de Janeiro. Inicialmente, os corpos eram jogados no Largo de Santa Rita, também no Centro da cidade, local onde funcionava anteriormente o Mercado de Escravos. Em 1860, o mercado foi transferido a pedido de moradores do entorno, que não aceitavam a presença dos negros, vivos ou mortos, nas proximidades de suas casas.
O Instituto Pretos Novos
A memória dos enterros constitui o ponto de partida do Instituto Pretos Novos. Os achados arqueológicos que servem como testemunho de toda essa história são as peças principais do acervo, com destaque para as ossadas de escravizados expostas em duas aberturas no piso, cobertas por placas de vidro. Entre os materiais encontrados no sítio arqueológico estão também fragmentos de objetos sagrados, de peças de vestuário e de utensílios domésticos, nem todos de origem africana.
O Instituto Pretos Novos mantém, ainda, um laboratório arqueológico onde são feitas escavações e análises. Embora o acesso seja restrito à equipe de pesquisadores, os visitantes podem observar toda a movimentação através de uma parede de vidro.
A realidade dos escravizados que sobreviviam à viagem é mostrada por meio documentos, ilustrações e até recortes de jornais que chamam a atenção pela naturalidade com que a condição dos escravizados era tratada. Anúncios ofereciam recompensas pela captura de fugitivos, colocavam negros à venda, especialmente mulheres, ou anunciavam o interesse de comprá-las.
Na maioria dessas peças publicitárias, as escravizadas eram descritas como simples mercadoria, com detalhamento de qualidades pessoais, muitas vezes acompanhadas de insinuações como no texto apresentado a seguir: “Vende-se uma preta, muito moça com cria; sabendo lavar perfeitamente, e bem desembaraçada para o serviço doméstico: é muito sadia, e o motivo da venda é não querer servir mais aos seus antigos senhores […]”
Eram comuns esses anúncios de compra ou venda de amas de leite – uma condição descrita pelo IPN como extremamente violenta, na medida em que essas mulheres eram obrigadas a deixar de alimentar seus próprios filhos para amamentar crianças brancas. Isso sem falar dos maus-tratos físicos que já foram amplamente divulgados por livros, filmes e novelas de televisão.
Arte, Educação e Pesquisa
Mas o Instituto Pretos Novos vai além do acervo arqueológico e do registro histórico da chegada e das condições de vida dos negros escravizados no Rio de Janeiro. Ao lado da exposição permanente e do laboratório arqueológico, o IPN mantém uma sala de exposições temporárias e uma biblioteca com mais de mil volumes. Realiza, ainda um programa educacional.
A galeria de arte recebe, desde 2012, exposições e ocupações artísticas voltadas para temas como Direitos Humanos, Questões Raciais e Igualdade de Gênero, além de temas relativos à Cultura de Matriz Africana. A mesma temática é explorada em oficinas presenciais e eventos online que tratam, também de questões patrimonias. O Instituto dos Pretos Novos oferece, ainda, cursos de pós-graduação Latu Sensu.
Mas o que promete atrair cada vez mais participantes é o Circuito de Herança Africana criado pelo Instituto Pretos Novos com o fim de apresentar lugares históricos e divulgar a história da escravidão do Rio de Janeiro. A aula-passeio dura cerca de duas horas e passa por 12 pontos da chamada Pequena África, região onde se encontra o próprio instituto e o Cais do Valongo – sítio Arqueológico descoberto durante as obras do Porto Maravilha onde ocorriam os desembarques dos escravizados.34
Notas
- 1 O Cais do Valongo, onde ocorriam os desembarques na fase final do tráfico de escravizados, foi descoberto durante escavações para a construção do Porto Maravilha e será tema de matéria aqui no blog
- 2 Há divergências quanto ao número de sepultamentos. Algumas fontes falam em pelo menos entre 20 mil e 30 mil. A informação de 60 mil foi retirada de texto exposto no Instituto Pretos Novos e assinado pelo curador do museu Marco Antonio Teobaldo
- 3 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares de memória do Rio de Janeiro: Museu de Imagens do Inconsciente / Castelo Mourisco / Casa da Gávea
- 4 Leia, também, matérias sobre bairros, povoados ou cidades com forte influência da cultura afro-brasileira: Saracura / Bixiga / Mussuca / Liberdade /
Instituto Pretos Novos – Gamboa – Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3,4,5) Sylvia Leite
- Site oficial do Instituto Pretos Novos
Referências
- Site oficial do Instituto Pretos Novos
- Livro À flor da terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro, de Júlio César Medeiros da Silva Pereira
Participação especial
- Augusta Leite Campos, cardiologista e geriatra
- Clara Leite de Rezende, desembargadora aposentada
Fascinante o desenvolvimento da história do Instituto dos Pretos Novos. A partir do acaso da reforma de uma casa antiga, veio a descoberta deste sítio arqueológico e mais incrível ainda foi a disposição dos proprietários de iniciarem um projeto ambicioso em um país que até então não valoriza como deveria a sua história.
Augusta Leite Campos
É fascinantes mesmo, Gusta. O Instituto Pretos Novos é um trabalho muito bonito que precisa ser divulgado.
Parabéns pela publicação. Fascinante a dolorosa história de nossa gente.
Obrigada, Fátima. A história contada pelo Instituto Pretos Novos é realmente impressionante.
Se você gosta de narrativas históricas, vale a pena dar uma olhada no resto do blog. Temos mais de 200 textos com foco histórico e cultural, sobre lugares do Brail e do mundo. E toda semana tem matéria nova. Acompanhe!
Obrigada, Fátima. A história contada pelo Instituto Pretos Novos é impressionante mesmo.
Temos outras histórias impressionantes nas mais de 200 matérias publicadas aqui no blog. Acompanhe!
A dívida social do Brasil em relação aos afrodescendentes e aos povos indígenas é imensa.
E pior é constatar que o preconceito e o racismo ainda estão presentes no país.
Excelente matéria, Sylvinha!
Bjs
É verdade, Val, a dívida é imensa. Que bom que você gostou da matéria. Volte sempre!
Boa tarde.
Lendo toda a matéria escrita acima, sobre o nosso Povo Negro /Preto,enquando eu estudiosa do tema, O Negro no Brasil, nem imaginava , que existia esse Instituto.
Fico imaginando, até onde ia a maldade humana, em relação ao seres humanose cidadãos, então brasileiros ( pois já moravam no Brasil ), Negros, e Negras nessa época.
Obrigada pelas informações.
Eu que agradeço, Maria Clarice, pela leitura e pelo comentário. Breve teremos uma matéria sobre o Cais do Valongo. fique ligada..
Nossa, como essa história me corta a alma… que dor. Será que ninguém se colocava no lugar do outro, meu Deus?! Palmas para esse instituto, que expõe essa história tão triste, pra gente aprender, e pra você, que está nos apresentando o instituto.
Corta a alma mesmo. E tudo foi sempre contado com distanciamento. O Instituto Pretos Novos, assim como outraivas que têm surgido, traz a realidade nua e crua.
Nossa, texto que a gente lê e vai sentindo um aperto no peito, mas necessário pra sabermos o que infelizmente aconteceu em nossa história. Não sabia da existência do Instituto Pretos Novos, muito interessante o trabalho realizado além das exposições.
Dá um aperto no peito mesmo, mas isso é importante para nós darmos conta desse horror que não pode se repetir. E o instituto Pretos Novos é um importante agente dessa conscientização.
Nunca tinha ouvido no Instituto Pretos Novos. Vou viajar no próximo mês para o Rio de Janeiro e vou querer conhecer. Obrigada pela dica!
Infelizmente o Instituto Pretos Novos é pouco divulgado. Eu também fiquei sabendo recentemente, pouco antes de conseguir fazer a visita. Mas é um lugar que precisa se tornar conhecido.