Atualizado em 29/09/2024 por Sylvia Leite
Em pleno sertão, ladeado por duas veredas, e ao pé de uma serra homônima, o pequeno distrito de Serra das Araras, no município de Chapada Gaúcha, Noroeste de Minas, recebe anualmente cerca de 40 mil pessoas para uma festa religiosa: a trezena de Santo Antônio. Os devotos são movidos pela fé e, principalmente, pela memória de uma imagem ‘milagrosa’, encontrada por um vaqueiro cerca de 200 anos atrás.
A história da imagem envolve episódios sobrenaturais nos quais grande parte dos moradores e visitantes acredita piamente e outros classificam como lendas. Seja qual for a verdade, ou sua interpretação, o fato é que os acontecimentos misteriosos parecem ter ajudado a dar publicidade ao local e a originar uma trezena e uma romaria que se tornam cada vez maiores.
Segundo a maioria dos relatos, a escultura do santo foi descoberta no pé da serra, em uma gruta com forma de coração, e imediatamente levada ao povoado, onde os moradores improvisaram uma capela e começaram a fazer orações a Santo Antônio, mas, em pouco tempo, ela desapareceu. O vaqueiro voltou ao pé da serra e a imagem estava lá, no mesmo ponto onde foi encontrada pela primeira vez. Ele repetiu o gesto, mas houve novo sumiço. O vai e vem da imagem só teria acabado depois que um padre foi a Serra das Araras para benzê-la.
As histórias sobre a imagem ‘encantada’ começaram a circular na região e a atrair devotos, que vinham de cidades e povoados vizinhos para rezar. Alguns voltavam para casa, mas outros decidiam ficar para morar perto do santo.
Na época, Serra das Araras era apenas uma vila na zona rural de São Francisco que, por sua vez, era um distrito de São Romão e só alcançou a condição de município em 1877. Não se sabe ao certo a mando de quem, a imagem foi levada para São Francisco mas, segundo se conta, desapareceu logo em seguida. Só que, desta vez, não voltou para gruta e sim para a capela de Serra das Araras e quando a levaram novamente para São Francisco, ela desapareceu para sempre1.
Patrimônio imaterial de Serra das Araras
Com o tempo – provavelmente entre o fim do século 18 e o começo do século 19 -, teve início a novena, depois a romaria e, em 1871, foi construída a igreja que se mantém até hoje. A imagem atual, segundo os moradores, veio de Portugal a mando de um rico fazendeiro, mas é adorada pelos fiéis como se fosse a original. Acredita-se que a antiga, ainda desaparecida, tenha sido deixada na gruta onde foi encontrada, por jesuítas que fugiam do Marquês de Pombal.
Ao longo de dois séculos, a trezena e a romaria tornaram-se grandes eventos religiosos, com repercussão em todo Norte e Noroeste de Minas. Romeiros de vários municípios vizinhos deslocam-se anualmente até São Francisco para fazer o ‘caminho sagrado’ – que começa lá e termina na igreja de Santo Antônio, em Serra das Araras, relembrando a rota supostamente percorrida pela imagem em seu retorno milagroso à capela do povoado. São 90 km percorridos a pé. O trajeto entre São Francisco e a Igreja de Santo Antônio, em Serra das Araras, nos faz lembrar, ainda, a relação entre os dois santos: por admiração aos freis franciscanos, o padre Antônio decide tornar-se um deles e acaba recebendo do Frei Francisco a tarefa de ensinar teologia aos integrantes da ordem.
Para se ter uma ideia do que representam a romaria e a trezena para a cidade, basta dizer que, até 2006, quando Serra das Araras foi desvinculada de São Francisco e incorporada ao recém-criado município de Chapada Gaúcha, só havia ali, segundo os moradores, 54 casas de telha. As outras eram feitas com materiais menos duradouros, nas da festa de Santo Antônio, apenas para abrigar os romeiros no período da trezena. Até hoje, muitas casas ficam fechadas durante o ano todo e só são abertas nesse período, porque os donos são de outras cidades.
Por muito tempo, a primeira quinzena de junho era o único período em que havia padre na cidade todos aproveitavam a ocasião para fazer casamentos, crismas e batizados. Além dos moradores locais, vinha gente de várias outras vilas. Isso acabou motivando uma grande reportagem sobre Serra das Araras na revista O Cruzeiro, com um ensaio fotográfico sobre as noivas e uma foto impressionante que mostra um padre celebrando a crisma de milhares de pessoas. Por muitas décadas, também, a trezena foi cantada em Latim. Tudo isso acabou mudando na medida em que a festa foi crescendo.
A romaria, hoje considerada o maior evento religioso da região, está tombada desde 2009 como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Conselho Municipal de Chapada Gaúcha. A trezena passou a ser rezada em português e acompanhada de missas diárias. A multidão, cada vez maior, passou a movimentar o comércio local, atraindo gente que vê na festa uma oportunidade de negócio e vem de longe para vender produtos e serviços – de água mineral a cachaça, de comida a sexo.
Comunidades quilombolas na origem de tudo
Serra das Araras começou a ser povoada no final do século 18 por descendentes de escravos da família Bito, nativos da Bahia, mas que já haviam se deslocado anteriormente para Tremedal – atual Monte Azul de Minas. Mesmo com a trezena e a romaria, a população local demorou a crescer, ao contrário da festa, que saiu na frente. A reportagem da revista O Cruzeiro, citada anteriormente e publicada em 1954, informa que a vila, em períodos normais, era habitada por apenas duas famílias e em temporada de romaria chegava a ter 10 mil pessoas.
Se o local tinha apenas duas famílias na metade do século 20, imagine o que era sua população cem anos antes. E já nessa época, a romaria chamava atenção a ponto de ser registrada pelo pesquisador George Gardner em seu livro “Viagem ao Interior do Brasil”, lançado em 1840. Apesar de não fazer referência direta à vila, ele conta a história de uma senhora que ia andar cinco dias a pé para cumprir uma promessa feita a Santo Antônio.
Não muito distante do que foi na origem, com os descendentes de escravos, Serra das Araras vive hoje basicamente de agricultura familiar. A novidade é um punhado de empregos públicos gerados pelas administrações estadual e municipal e os benefícios do Bolsa Família. Durante alguns anos, houve no local uma empresa que gerava renda substituindo a vegetação natural de cerrado por plantações de pinus, mas faliu e foi embora. A outra fonte de renda é o Parque Estadual Serra das Araras, protegido pelo Instituto Estadual de Florestas – IEF, onde os moradores da região podem colher frutas para o próprio sustento e também para comercialização.
Um morador famoso citado por Rosa
Além da imagem encantada, outras histórias povoam o imaginário dos moradores de Serra das Araras. A maioria diz respeito a Antônio Dó – uma espécie de Lampião do Noroeste mineiro que viveu entre 1859 e 1929. Nascido em Pilão Arcado, na Bahia, ele chegou em São Francisco muito jovem, quando ainda nem pensava em ser jagunço. Depois que se transformou em um temido bandoleiro, viveu 10 anos em Serra das Araras.
Há várias versões de sua história. Para alguns, era um perigoso bandido temido por todos. Para outros era um Robin Hood sertanejo que saía fazendo justiça entre Minas e Bahia, nas terras banhadas pela bacia do São Francisco. Em uma só coisa todos são unânimes: Antônio Dó era invencível e, depois que virou jagunço, nunca se deixou capturar pela polícia.
Acreditava-se que ele usava um amuleto capaz de fechar seu corpo e apenas um tipo de golpe poderia atingi-lo. Aquele que descobrisse esse segredo e tirasse seu amuleto, seria capaz de matá-lo. Quem conseguiu a façanha foi um jagunço a serviço de inimigos, que se infiltrou em seu bando e conquistou sua mulher. Com a ajuda dela, teria descoberto que para matá-lo bastava atingi-lo com uma mão de pilão quando ele estivesse sem a proteção do amuleto.
Quem caminha pela região tem a chance de se deparar, cerrado adentro, com uma seta que indica o local da cova de Antônio Dó. E quem lê o “Grande Sertão Veredas” descobre que o ‘Lampião dos mineiros’ não apenas imortalizou-se na tradição oral do Noroeste de Minas, mas também na Literatura – ainda que apenas como figurante – em uma das obras mais importantes já escritas sobre o sertão. E a partir daí acabou conquistando a posição de personagem principal em pelo menos duas obras: “Antônio Dó: a história verídica de um jagunço famoso”, de Sal Martins (1967) e “Serrano de Pilão Arcado: a Saga de Antônio Dó”, de Petrônio Braz (reeditado em 2020). 2
Notas
- 1 Há outras versões, mas todas incluem o desaparecimento definitivo da imagem.
- 2 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares que nos remetem à Literatura de Rosa: Cordisburgo / Sagarana / Morro da Garça / Paracatu / Gruta do Salitre / Gruta de Maquiné / Curralinho / Igreja da Pampulha / Marília de Dirceu / São Bartolomeu / Vila de Biribiri / Dez lugares que nos remetem à Literatura de Guimarães Rosa
Serra das Araras – Chapada Gaúcha – Minas Geais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1, 3, 4, 5, 8, 9 ,10, 11) Sylvia Leite
- (2, 6 e 7) (Fotos de páginas ou partes de páginas, da antiga revista O Cruzeiro)
Consultoria
- Historiador, pesquisador e professor de História, Xiko Mendes (mestre em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural pela Universidade de Brasília).
- Pesquisadora local, chefe de Divisão de Patrimônio Cultural de Serra das Araras, Maria Rosecley Araújo Almeida
- Professor de Historia e ex-prefeito de Paracatu, Almir Paraca.
Livros
- São Francisco nos caminhos da História, de Brasiliano Braz.
- Guia Cultural e Eco-turístico do Entorno do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, de Xico Mendes.
Maravilha, Sylvinha! Adorei saber um pouco mais desse nosso Brasil, tão rico!
Beijão,
sonia pedrosa
Compartilhando! Abraço fraterno.
Excelente Silvinha.
Q bacana! E tão perto!
Por favor, é longe de Cordisburgo? Mais ou menos qtos quilômetros? Agradeço desde já, Silvia
Beleza de matéria, Sylvinha!
O Rosa, como sempre onipresente no sertão mineiro.
Abraços
Val Cantanhede
E fácil fazer uma beleza de matéria quando a gente encontra uma beleza de lugar rsrs bjs
Não sei te responder, Letícia. Teria que dar uma olhada no mapa. Eu fui por Brasília.
Beijoão, querida, obrigada!
Obrigada, teca, bj
Que bom que gostou. bjs
Não sei onde você está. É perto de Brasília.
Muito interessante. Não sabia deste fato ou lenda.
São as histórias deste Brasil que a gente precisa desbravar. Toda quinta tem matéria nova aqui no blog, do Brasil e do mundo. Não perca!
Que incrível saber mais sobre a nossa cultura brasileira, tão diversa e forte. Adorei saber e conhecer a história de Serra das Araras! Muito interessante.
É um lugar delicioso. Parece que você saiu do tempo. Dá vontade de ir ficando.
Fascinante a história da imagem encantada da Serra das Araras! Amo visitar esses lugares escondidos e esquecidos e descobrir hist´rias como essa 🙂
A Serra das Araras é um lugar muito especial