Atualizado em 11/06/2024 por Sylvia Leite
O lugar abriga hoje a praça 14-Bis, uma das mais conhecidas do Centro de São Paulo, mas até o início do século 20 era ocupado pelo Quilombo Saracura – formado por escravizados fugitivos que escapavam das fazendas ou de feiras realizadas no Vale do Anhangabaú, onde eram colocados à venda por seus senhores. O quilombo não foi descrito nos livros que contam a história oficial da cidade, mas ficou guardado na memória da comunidade negra e começou a ganhar publicidade a partir de achados arqueológicos surgidos durante escavações realizadas para a construção de uma estação de metrô.
Quem visitar hoje o local, certamente não terá acesso a esse acervo, composto principalmente por cacos de garrafas e louças datadas do começo do século 20, mas poderá testemunhar a luta do movimento negro, arqueólogos, instituições culturais e moradores do Bixiga pelo resgate desse sítio arqueológico. Cartazes com os dizeres “Não somos contra o Metrô, somos contra o apagamento histórico” traduzem suas duas principais reivindicações.
A primeira é a criação de um memorial educativo permanente que resgate a história do Quilombo Saracura e lhe dê um lugar na história de São Paulo. A segunda, já parcialmente atendida, era a troca do nome da estação – prevista para se chamar “14-Bis” em alusão ao nome da praça – para “Saracura Vai-Vai”, em homengem ao quilombo e à tradicional escola de samba cuja quadra funcionou históricamente no local e foi desalojada para a realização das obras. O nome conquistado com as reivindicações foi “14-Bis Saracura”, que apesar de contemplar o quilombo, deixa de fora a Escola de Samba.
Berço do samba paulistano
O Saracura foi um dos primeiros quilombos de São Paulo, e acredita-se que deve ter servido, inicialmente, como ponto de descanso na rota de fuga de escravizados, consolidando-se mais tarde como lugar de moradia permanente. Suas casas estendiam-se em linha reta ao longo do córrego Saracura, um afluente do rio Anhangabaú, atualmente canalizado.
Segundo texto publicado no Correio Paulistano, de 3 de outubro de 1907, a área do Quilombo Saracura era conhecida, no início do século 20, como Pequena África. Mais tarde, o local passou a ser chamado de Quadrilátero Negro ou Quadrilátero do Saracura, apelidos que de alguma forma permanecem até hoje.
O antropólogo Alessandro Luís Lopes de Lima , em artigo publicado na revista Argumentos, da Universidade de Montes Claros – Unimontes, afirma que “a região do Quilombo Saracura foi um dos berços paulistanos do samba de bumbo e do batuque”. Ainda segundo seu texto, o local era palco de sambas de roda, choros e blocos carnavalescos.
Não é por acaso que a quadra do Vai-Vai funcionava local. Foi ali que surgiu, em 1930, o cordão carnavalesco que lhe deu origem: o Vae-Vae. Seus fundadores eram sambistas dissidentes da torcida do clube de futebol “Cai-Cai”, conhecidos na época como a “turma do Vae-Vae”. Os sambistas escolheram para o cordão as mesmas cores do Cai-Cai, só que de forma invertida: o clube era branco com preto e o cordão nasceu preto com branco, combinação que se mantém até hoje.
O Quilombo Saracura e o Vai-Vai – chamado assim no masculino pelo fato de ser um grêmio recreativo – estão ligados de diversas formas. Além de ter surgido na área do quilombo, e de ser composto, em grande parte, por negros, provavelmente deescendentes dos ex-escravizados que criaram e habitaram o quilombo, o Vai-Vai recebeu o apelido de Saracura. Inicialmente, o apelido foi tido como pejorativo, mas com as vitórias acumuladas pela escola torou-se motivo de orgulho.
Saracura, além de ser o nome do córrego ao longo do qual o Quilombo se estabeleceu, é também o nome de um pássaro que habitava a região ribeirinha. Coindcidência ou não, a espécie guarda algumas afinidades com os habitantes do quilombo e seus descendentes. Como os negros fugitivos, procura fazer seus ninhos em lugares de difícil acesso, comumente em áreas de vegetação fechada, a fim de não ser pega pelos predadores. Já com o Vai-Vai, compartilha o canto estridente.
O Saracura e a formação do Bixiga
O samba, hoje representado pelo Vai-Vai, não é a única herança deixada pelo Quilombo Saracura no Bixiga. Foram os negros fugitivos os primeiros a chegar à região, bem antes dos italianos que, durante décadas, apareceram como povo hegemônico do local. Sua influência na formação do bairro está gravada de diversas formas, a começar pelos nomes de locais públicos como a Rua 13 de Maio, que remete à data de assinatura da Lei Áurea.
A Escadaria do Bixiga, um dos pontos históricos da região, é lavada anualmente no Dia da Abolição, em um tradicional ritual de matriz africana semelhante à famosa Lavagem do Bonfim, em Salvador, na Bahia. Essa escadaria é considerada um marco da aproximação entre os brancos – que habitavam mansões localizadas no alto do morro – e os negros que habitavam a parte baixa e pobre da cidade.
A área que será ocupada pela estação de metrô e diversos outros pontos do Bixiga ainda abrigam afrodescendentes, tanto que a itlianíssima Igreja da Achiropita é sede de uma Pastoral Afro responsável pela realização de cerimônias sincréticas entre as quais se destacam os Batismos Inculturados ou Batismos Afros que mesclam a cerimônia católica com cantos, danças, indumentárias e bênçãos de origem africana.
O resgate da memória do quilombo
Referências ao Quilombo Saracura sempre estiveram presentes nos movimentos negros e sua memória costuma ser exaltada periodicamente pela Escola de Samba Vai-Vai. A existência do quilombo está registrada em mapas, textos jornalísticos e trabalhos acadêmicos. Mas foi a partir do início da obras de ampliação da linha 6 Laranja do metrô que o movimento em prol de sua memória ganhou força. Inicialmente porque para dar início à construção de uma estação no local, era preciso desalojar a Vai-Vai. Depois por causa dos achados arquelógicos.
Ocorre que por exigência da legislação brasileira, qualquer obra de grande vulto tem que ser precedida de uma pesquisa arquelógica que garanta a preservação de eventuais sítios soterrados no local. No caso da Linha Laranja do Metrô, os trabalhos foram realizados pela empresa de arqueologia a A Lasca, que localizou as primeiras peças em abril de 2022.
A descoberta do material arqueológico provocou a interrupção das obras da estação e o início de um processo junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, em que A Lasca solicita “autorização para o salvamento emergencial do sítio Saracura/14 Bis” e apresenta pesquisa histórica sobre a importância do Quilombo Saracura na formação da região do Bixiga e da cidade de São Paulo.
Embora até o momento, os relatórios da empresa A Lasca ainda não garantam a relação dos primeiros achados com o Quilombo Saracura, está evidente, pelos relatórios apresentados ao Iphan, que sua equipe acredita tanto na possibilidade de se confirmar a relação desses objetos com o quilombo, como na perpectiva de serem encontrados outros objetos – talvez mais específicos da cultura africana – na medida em que se aprofundarem as escavações.
Enquanto a empresa A Lasca avança em suas análises, a empresa responsável pelas obras da estação, hoje chamada de 14-Bis, trabalha em obras de contenção para viabilizar a continuidade das escavações. Ao mesmo tempo, o coletivo Mobiliza Saracura Vai-Vai prepara um amplo Programa de Educação Patrimonial que prevê o resgate e a divulgação da memória do Quilombo Saracura e deverá incluir desde ações museológicas até projetos educativos e de divulgação, com assessoria do arqueólogo Rossano Lopes Bastos.
Segundo Bastos, faz parte do programa, ainda em elaboração, a exigência da participação da comunidade no processo de resgate do quilombo, inclusive nas análises técnicas por meio de arqueólogos negros.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre a presença negra Brasil afora: Bixiga / Liberdade / Mussuca
- 2 Leia, também, sobre outros destinos culturais de São Paulo: Theatro Municipal / Estação Júlio Prestes e Sala São Paulo / Bixiga / Teatro Oficina / Galeria do Rock / Vila Itororó / Beco do Batman / Minhocão / Cemitério da Consolação / Parque Augusta / Vila Itororó / Pavilhão da Bienal
Quilombo Saracura – Bixiga – São Paulo- São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3,4,8) Paulo Santiago de Augustinis
- (5,7 ) Reprodução de documento do Iphan
- (6) Dornicke em Wikimedia - CC BY-SA 4.0
Referências
- A Lasca /Iphan- Projeto de Resgate do Sítio Saracura/14 Bis PDF
- Site do Vai-Vai
- Revista Argumentos, da Universidade de Montes Claros - Unimontes
- Site Guia Negro
Agradecimentos
- Paulo Santiago de Augustinis, diretor do Museu Memória do Mixiga - MUMBI
- Rossano Lopes Bastos, da Rede de Arqueologia Negra
Sensacional essa matéria!
Obrigada por trazer esse assunto tão importante para nossa cultura
Eu que agradeço pela leitura e pelo comentário. Volte sempre!
Uma reportagem muito importante, registrar esse momento é de fundamental importância para a nossa memória ancestral! Que as instituições envolvidas prezem por esse patrimônio e por esse registro histórico.
Pois é. Que as reivindicações sejam plenamente atendidas e que a memória do Quilombo Saracura seja preservada da melhor forma.
Adorei essa matéria, Sylvinha!
Morei por alguns anos na Brigadeiro Luiz Antônio, tão pertinho do Quilombo Saracura e nem sabia que ele existia…
Bjs
Pois é. Por isso que precisa ser divulgado. Quase ninguém sabe. E faz parte do início da história da cidade.
Que texto gostoso de se ler. Grato!
Eu que agradeço, pela leitura e pelo comentário generoso. Temos mais de 200 textos no blog e toda semana tem matéria nova. Acompanhe! Você pode receber os avisos de publicação semanalmente por email, whats app ou signal. Basta se inscrever na barra lateral do blog no computador.
Sylvinha, muito importante, esse resgate. Aposto que todo mundo que passa por ali, todos dia, nem se dá conta da existência do quilombo, tempos atrás.
Com certeza, Soninha. Pra começo de conversa, pouca gente sabe que ali havia um quilombo e os que sabem esquecem disso quando entram na correria da rotina. Por isso é preciso sinalizar, mostrar, divulgar.
Interessantíssimo saber mais sobre Saracura. Desconhecia a presença de um quilombo no coração de São Paulo.
Acho que pouca gente sabia da existência do Quilombo Saracura, mas com as pesquisas arqueologicas provavelmente issi irá mudar.
Nossa que bacana seu post, nem sabia que existia o Quilombo Saracura no coração de São Paulo. Acredito que muitas pessoas não sabem mesmo né?
Sim, muitas pessoas não sabem da existência do Quilombo Saracura, inclusive os moradores de São Paulo.
Que incrível a história do Saracura! Amei conhecer mais sobre esse quilombo que existiu em São Paulo, não tinha conhecimento.
Realmente é pouco divulgado, Marcella. Mas acho que com a pesquisa arqueológica essa história vai ganhar visibilidade.
Nunca imaginei que o Bixiga tivesse recebido uma herança dos negros, muito menos do quilombo Saracura. Pra mim era um bairro 100% descendente dos italianos.
Pois é, muita gente pensa como você. E acontece o mesmo com a Liberdade que ficou conhecida apenas como bairro oriental. Tem matéria sobre isso aqui no blog.
Eu não sabia que existia esse Quilombo Saracura onde hoje é o Bexiga em São Paulo. Adorei o post!
Que bom que gostou. Volte sempre! Muita gente não sabe da existência do Quilombo Saracura, mas a tendência é que esse sítio arqueológico seja bastante divulgado de agora em diante.
Interessante resgatar a cultura e compartilhar isso com as novas gerações, ótimo post sobre o Quilombo Saracura!
É importante mesmo resgatarmos a história dos africanos que chegaram ao Brasil e incluí-la nos relatos oficiais.
Pois é em epoca de eleições as poderosas construtoras conseguem tudo, agora dia 30 mais um pedaço da historia fo Bexiga sera apenas algumas letras em um livro ! Uma grande construtora ira demolir um estacionamento cujo parte do rio saracura esta embaixo, deve ter custado algo perto de um milhão para ter a liberação da obra , ja que era proibido qualquer edificação! Se alguém tiver como evitar mais este crime historico, cultural a hora é essa!