Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
Quando se fala em Inquisição – o conjunto de tribunais religiosos da Igreja Católica que durante séculos perseguiu, julgou e puniu aqueles que se desviavam de suas regras – sempre pensamos na Europa, onde o movimento nasceu e teve maior atuação. Mas o Santo Ofício, como era conhecido entre os fiéis, estendeu-se também às colônias e assentamentos europeus da Ásia, África e América. A cidade de Cartagena de las Indias, na Colômbia, foi o terceiro território do império espanhol a ter seu próprio tribunal e o prédio onde ocorriam os julgamentos torturas e execuções é conhecido hoje como Palacio de la Inquisición.
A escolha de Cartagena para instalação do tribunal deve-se à sua condição de entreposto comercial entre o Caribe e as ocupações espanholas localizadas no Oeste da América do Sul. Além dos casos locais, o Palacio de la Inquisición recebia também os réus de outras localidades. Um exemplo famoso é o de Paula de Eguiluz – uma negra escravizada nascida em Santo Domingo e vendida em Havana a João de Eguiluz -, que foi transportada de Cuba a Cartagena para ser julgada por bruxaria.
O crime de Paula era preparar poções, banhos e unguentos que supostamente teriam o poder de ligar uma mulher a seu marido ou amante se fossem usados em combinação com palavras mágicas e orações. Ela foi acusada de heresia e idolatria o que, na visão dos juízes, configurava uma prática de adoração do diabo. Levada a confessar coisas que não fez e condenada com base nessas e em outras confissões, Paula Eguiluz recebeu 200 chibatadas e foi obrigada a trabalhar dois anos em um hospital, vestindo um ‘sambenito’ – espécie de hábito em forma de saco que era usado pelos condenados que iam ser queimados nas fogueiras da inquisição. A escravizada teve ainda mais dois julgamentos e acabou condenada à prisão perpétua.
O acervo do Palácio de la Inquisición
Por incrível que pareça, a bárbara história de Paula, pelo menos como é contada hoje, parece leve quando entramos no Palacio de la Inquisición e vemos réplicas dos instrumentos de ferro destinados a punir, arrancar confissões dos acusados ou para executá-los. Caso da forquilha de herege, usada como castigo, ou do colar de pregos que servia tanto para torturar como para matar.
A cada passo que damos nessa parte do museu, encontramos um aparato diferente e tomamos conhecimento de uma nova crueldade. No quintal da casa, encontra-se a forca onde eram feitas execuções públicas e uma guilhotina, que embora não tenha sido usada em Cartagena, faz parte do acervo.
Além de todo esse ‘arsenal’, que denuncia o aspecto físico da violência cometida contra os réus, encontramos também a memória dos julgamentos e o registro de como eram feitas as delações de heresia por meio de bilhetes anônimos atirados no palácio através de uma janela.
O museu nos informa, ainda, sobre a proibição de leituras. A lista é longa e foi publicada em um livro denominado Índex Librorum Prohibitorum, editado pela primeira vez em 1551 e atualizado algumas vezes até sua abolição pelo papa Paulo VI, em 1996. Ao longo desses quatro séculos, vários títulos e autores foram demonizados e suas obras queimadas pela Igreja. Entre eles estão estão “A Origem das Espécies”, de Charles Darwin; “Meditações sobre Filosofia primeira”, de Descartes; “Cartas Persas”, de Montesquieu; Madame Bovary, de Gustave Flaubert.
A história do palácio
Embora abrigue hoje o Museu Histórico de Cartagena, cujo acervo contempla outros aspectos da cidade, o Palacio de la Inquisición está irremediavelmente ligado a esse passado obscuro, seja por guardar as as provas das barbaridades cometidas pelo tribunal, seja por ter servido de sede para julgamentos, torturas e execuções.
O prédio do Tribunal da Inquisição de Cartagena foi inaugurado em 1.770, com projeto em estilo colonial e uma portada barroca que se tornou um dos ícones da cidade. Além do museu, funciona hoje em seu interior o Arquivo Histórico da cidade. Antes desse prédio, havia no local duas casas alugadas pelo Santo Ofício, que mais tarde foram adquiridas para dar lugar à essa sede definitiva.
A Inquisição, para quem não sabe, foi uma instituição criada pelo papa Gregório IX, no século 12, na França, com o propósito de combater movimentos religiosos nascidos dentro da própria igreja, considerados heréticos.
Ao longo dos séculos, perseguiu diferentes grupos, como católicos dissidentes, judeus, luteranos, muçulmanos e adeptos das religiões de matriz africana. Seus réus eram, em geral, acusados de heresia, bruxaria ou de culto ao diabo. Mas havia também acusações de adultério e usura.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre Cartagena: Castelo de São Felipe de Barajas / Cartagena, a Musa do realismo fantástico de García Marquez
Palacio de la Inquisición – Cartagena – Colômbia – América do Sul
Fotos
- (1) Mariordo (Mario Roberto Durán Ortiz) em Wikimedia - CCBY-SA 4.0
- (2) Retrato pintado por Santiago Florez
- Paulo Aztingen do Diário do Turismo
- Dinorah Regis
- Site do Museo de Historico de Cartagena
Referências
Muito bom esse texto, Sylvia! E assim a história é contada e deve ser lembrada para que possamos refletir sobre as mazelas da religião e as crenças com sua estupidez. Parabéns!
Obrigada, Glícia. Volte sempre.Toda semana tem matéria nova aqui no blog.
Excelente matéria, Sylvinha!
A Inquisição foi um dos momentos mais obscuros e cruéis da Igreja Católica.
Atualmente, algumas vertentes do protestantismo e do catolicismo tradicionalista, que estão muito distantes do Evangelho de Cristo, buscam reeditar esse período tenebroso numa cruzada contra os valores democráticos, o meio ambiente e a diversidade cultural.
Os atos golpistas de 8 de janeiro mostraram a face hedionda desses grupos com suas crenças medievais, terraplanismo, preconceitos, ódio e disseminação de fake news.
Bjs
Obrigada pelo comentário, Val. O Palacio de la Inquisición traz realmente a memória de uma instituição cruel que, esperamos, tenha ficado no passado.
Que dolorido e necessário é visitar um lugar como este! Eu nunca deixo de visitar um museu assim e sempre me surpreendo com a crueldade humana. A igreja católica tem um passado nefasto.
Pois é, Soninha, são lugares que nos causam incômodo por terem sido palco de acontecimentos horríveis. Mas esses fatos precisam ser lembrados para que não se repitam.