Atualizado em 28/01/2025 por Sylvia Leite
No início do século 20, durante a pandemia da Gripe Espanhola, aconteceu um fato que ficaria impresso na identidade do Morro do Fogo – uma comunidade do distrito de Serra das Araras, no município de Chapada Gaúcha, em Minas Gerais, hoje reconhecida como um reduto de devoção a São Sebastião. Tudo começou quando a moradora Melquíades Pereira dos Santos – a dona Merquida – assustada com as mortes provocadas pela doença na região, prometeu tornar-se devota do santo mártir caso a família dela fosse poupada. Segundo relata sua bisneta Irene Rodrigues de Oliveira, a peste, que já estava bem perto, acalmou-se repentinamente e não atingiu nenhum familiar, amigo ou conhecido1. E foi assim que, em agradecimento pela graça alcançada, nasceu no povoado a tradição de comemorar anualmente, em 20 de janeiro, o Rezado de São Sebastião.
A festa, na verdade, começa no dia 11, com a uma novena rezada em Latim – como ocorria nas missas de antigamente – e reúne gente de toda a região. Mas o clímax das comemorações ocorre no dia 20, com a participação de mais de mil pessoas. O roteiro se inicia com uma procissão que parte da casa de seu Santo – Santilino Rodrigues Alves -, bisneto de dona Melquíades, e termina na igreja, que fica ao lado da casa de Irene. O percurso, de aproximadamente 3 km, inclui a travessia da Vereda Catarina. O cortejo é puxado por três carros de bois. No primeiro, vão as imagens de São Sebastião, de Santo Antônio, padroeiro de Serra da Araras e de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. O segundo carro leva os idosos e o terceiro leva as crianças. Durante o percurso, as mulheres cantam a ladainha e na chegada, os fiéis hasteiam a bandeira rendendo homenagens a São Sebastião e o padre reza a missa.
Depois da missa, tem uma saudação de Folia e é servido o almoço – que inicialmente era ofertado pela família de dona Melquíades, mas como a festa cresceu muito, hoje é preparado pela comunidade com doação dos noiteiros, festeiros e devotos. Quando a missa acaba, uns descansam e outros caem no samba. Às 3h da tarde, vêm as mulheres rezadeiras, que dão início a uma longa cerimônia religiosa, com reza, oferta de louvores, a ladainha e os benditos. E ao final de tudo, a festa continua com samba e lundu”.
Irene assume atualmente o papel de guardiã da festa ao lado do primo Santilino, dono da casa de onde sai a procissão. Não se sabe se por coincidência ou por intenção dos pais, seu nome é o mesmo da santa que cuidou das feridas de São Sebastião quando ele foi martirizado com flechadas por praticar o Cristianismo. E foi Irene que, por sugestão do padre de Serra das Araras – distrito onde a comunidade está localiza -, liderou a arrecadação de recursos para construir a igreja de Morro do Fogo, devotada ao santo.
Há dúvidas sobre as razões que levaram a matriarca Melquíades a escolher São Sebastião para fazer sua promessa. Sabe-se que, na época, o Brasil vivia um período de turbulência política com movimentos armados e, segundo Irene, a Gripe Espanhola foi levada à região por soldados, em seu retorno à casa, após participarem ‘de uma revolta’. 2. Coincidência ou não, São Sebastião havia sido soldado romano. Mas apesar de toda devoção ao santo mártir, a comunidade de Morro do Fogo é devota também de São Roque, este sim conhecido como o santo protetor contra doenças e pragas.
Morro do Fogo: uma história a ser resgatada
A devoção a São Sebastião tornou-se a tradição dominante de Morro do Fogo e o povoado parece não ter outra referência histórica. Sem documentação escrita e com relatos orais que não alcançam os tempos mais remotos, os moradores não conhecem quase nada de sua origem nem do que ocorreu antes da promessa de dona Melquíades.
Relatos esparsos de alguns moradores e registros genéricos sobre o povoamento da região, nos dão uma idéia de como a comunidade de se formou. Segundo a historidora MarIa Roseclay de Araújo Almeida, conhecida como Rose, os primeiros habitantes de Serra das Araras – distrito onde se localiza Morro do Fogo – foram os Caiapós.
No século 18, teriam chegado ao local, segundo a historiadora, cinco descendentes de negros escravizados, nativos da Bahia, mas que já haviam se deslocado anteriormente para Tremedal – atual Monte Azul de Minas, na divisa entre os dois estados -, todos a família Bito – do qual descende seu Santilino – um dos bisnetos de Melquíades.
Essas informações baseiam-se em registros de historiadores do sertão mineiro, como Xico Mendes e Brasiliano Braz e estão registradas em em livro publicado pela prefeitura de Chapada Gaúcha sob o título “A Saga dos Gaúchos no Sertão Norte Mineiro”. Além disso, coincidem, de certa forma, com o depoimento de outro bisneto de dona Melquíades, Adilson Rodrigues Barbosa, segundo o qual a bisavó teria chegado ao Morro do Fogo com os seis filhos, vinda de um lugar chamado Coxá, também na divisa com a Bahia.
Embora seja vista na região como uma Comunidade Quilombola, Morro do Fogo ainda não se autoreconheceu como tal e não há sinais de que isso venha a ocorrer em curto prazo porque há divergências entre as famílias da comunidade tanto quanto à sua ascendência como quanto às vantagens do reconhecimento oficial.
Na verdade, os negros fugitivos e seus antecessores Caiapós não teriam sido os únicos a povoar Morro do Fogo. Acredita-se que a região recebeu também bandeirantes e outros descendentes de europeus que viajavam pelo São Francisco, vindos de diversas partes, especialmente da Bahia. Traços culturais da comunidade nos permitem arriscar o palpite de que houve ali a presença dos que predominam na formação do povo brasileiro.
Os portugueses teriam deixado como legado a religião católica, a tradição dos doces, além de uma grande contribuição nos folguedos, com destaque para a Folia de Reis, que além de sobreviver até hoje, exerceu grande influência nas danças e na música da comunidade.
Dos povos originários teriam vindo o artesanato em palha e o cultivo da mandioca, que acaba se incorporando às receitas de biscoitos e, principalmente, à do feijão tropeiro – iguaria tradicional do Sudeste, originada no Tropeirismo. Os negros teriam contribuído com o Lundu e o Samba que animam as festas da comunidade, além de influenciar a dança, a música e a própria Folia de Reis. Podem ter influenciado, ainda, no uso de esteiras.
Todas essas influências encontram-se hoje mescladas entre si e atreladas aos recursos naturais da região. Casos dos doces feitos predominantemente com abóbora – que junto com à mandioca forma a base vegetal da culinária da região – ou mesmo de buriti – árvore típica das veredas, que fornece tanto a palha usada no fabrico de esteiras como a madeira para móveis, brinquedos e outros objetos.
O Turismo de Base Comunitária
Assim como ocorre em outras comunidades tradicionais, Morro do Fogo está inserido em roteiros do Turismo de Base Comunitária. O mais significativo parece ser o Caminho do Sertão – uma jornada a pé, com duração de sete dias, entre Arinos e Serra Gaúcha, passando por Morro do Fogo e mais seis localidades.
O projeto, definido por seu criador Almir Paraca como uma caminhada sócio-eco-literária, vai além da visita em si, buscando estimular o desenvolvimento sustentável dos lugares por onde passa, tanto a fim de criar uma estrutura mínima de recepção aos caminhantes como para retribuir a acolhida dos moradores. Mas, há, também, agências que promovem roteiros de visita mais formais.
Quem chega por qualquer uma dessas vias tem a oportunidade de vivenciar um pouco da vida na comunidade e de conversar com moradores a fim de conhecer um pouco de sua cultura e do seu dia a dia. Além disso, vai saborear um delicioso feijão-tropeiro que, segundo moradores de Serra das Araras, é o melhor da região. Podem, ainda, visitar a igreja da comunidade e assistir a uma exibição do carro de bois que carrega os santos na procissão do dia 20 de janeiro, na festa de São Sebastião.
Os mais festivos vão gostar de assistir, e quem sabe participar, da apresentação das mulheres do grupo de danças tradicionais com acompanhamento dos músicos locais. E aos que têm um pouco mais de tempo são oferecidas oficinas de dança, de doces ou de esteira de buriti.
Essa parte da visita é realizada na Cúpula Geodésica construída em mutirão pelos próprios integrantes do Morro do Fogo. O espaço multifuncional, destinado à integração socio-cultural da comunidade, foi feito com aproveitamento de materiais típicos da região – como palha de buriti – e utilizou tecnologia social desenvolvida pelo Instituto Rosáceas – organizador do Caminho do Sertão -, certificada junto ao Banco de Tecnologias Sociais da Fundação Banco do Brasil3.
A luta pela posse e pela qualidade da terra
Além de realizar trabalhos coletivos, a comunidade de Morro do Fogo se une em torno de uma luta constante, que acontece em duas frentes: por um lado a posse da terra e por outro a preservação do ecossistema. A primeira, mais visível, ocorre no campo jurídico, contra o Governo do Estado de Minas Gerais, pelo fato do Parque Estadual da Serra das Araras ter sido delimitado sobre grande parte de suas terras.
A outra, mais difusa, é pela preservação ambiental. Na qualidade de veredeiras – nome dado àqueles que dependem das veredas para sobreviver – essas famílias sofrem com o rebaixamento do lençol freático da região, decorrente especialmente do desmatamento do cerrado e de sua substituição por monoculturas de soja e capim.
Segundo o ativista Almir Paraca, essas plantações têm um impacto direto sobre os recursos hídricos da região, pois além de desequilibrarem o ecossistema, utilizam um esquema de irrigação que retira água das veredas, tanto de forma direta, como por meio de poços artesianos profundos.
O exemplo mais gritante desse processo de degradação, de acordo com Paraca, é a vereda São José, que se mantém seca em boa parte do ano – especialmente nos meses que antecedem a temporada de chuva – deixando várias famílias sem abastecimento de água potável. Embora essa vereda nasça e corra dentro do Prarque Estadual Serra das Araras e, portanto, protegida da ação direta do desmatamento e dos pilares de irrigação, acaba sendo alcançada pela extensão do dano, que atinge o lençol freático como um todo. O mesmo ocorre com diversas outras veredas da região que vêm secando ao longo do tempo.
A relação com a obra de Rosa
Morro do Fogo não é nominalmente citada em nenhum dos livros de Guimarães Rosa, mas o distrito Serra das Araras, onde está localizada, aparece no Romance “Grande Sertão: Veredas” quando o personagem Riobaldo se refere à decisão do chefe do bando de atravessar um perigoso raso, identificado no texto como “Liso do Susssuarão”. O mesmo personagem também menciona o Vão dos Buracos – um enorme canion com várias veredas, córregos e rios – que faz fronteira com as terras da comunidade.
Foi na região de Serra das Araras – e portanto do Morro do Fogo – que viveu e foi enterrado o famoso Antônio Dó – um jagunço chefe de bando, espécie de Lampião mineiro – que virou personagem do “Grande Sertão: Veredas” e foi mencionado em cinco passagens do romance de Rosa. O túmulo de Antônio Dó – hoje visitado por historiadores e outros estudiosos – fica entre a área urbana de Serra das Araras e a comunidade do Logradouro, a poucos quilômetros de Morro do Fogo.
O interesse de historiadores, escritores e jornalistas por essa área começa com a criação do Parque Nacional Grande Sertão Veredas que homenageia o romance de Rosa. Na sua esteira vieram o Encontro dos Povos do Grande Sertão:Veredas, realizado anualmente no município de Chapada Gaúcha e o Caminho do Sertão – a caminhada literária inspirada na obra, que transformou-se num dos principais vetores de desenvolvimento sustentável da região.
De resto, a comunidade de Morro do Fogo faz parte do cenário geral do romance e alguns de seus moradores, assim como ocorre em comunidades vizinhas, parecem ter saído do livro, ou, como seria mais correto dizer, alguns personagens do livro parecem ter saído de lá.
Notas
- 1 Um cartaz fixado na parede da igreja, apresenta uma versão ligeiramente distinta. Segundo o texto - assinado genericamente pela comunidade -, a promessa foi feita depois que dona Melquíades já havia perdido alguns parentes
- 2 Há quem fale em Coluna Prestes, mas as datas não coincidem. A Coluna Prestes só teve início em 1924, enquanto a Gripo Espanhola chegou ao Brasil no segundo semestre de 1918 e se estendeu por 1919. Nesse período, houve a Revolução Sertaneja, que se estendeu de 1919 a 1930, e a Insurreição Anarquista que, entre 1918 e 1919, envolveu militantes de vários estados, inclusive Minas Gerais
- 3 Dados completos: Tecnologia Social Geodésica Sertaneja Multifuncional desenvolvida, sistematizada e certificada pelo Instituto Rosáceas junto ao Banco de Tecnologias Socais da Fundação Banco do Brasil, com apoio de diversos parceiros institucionais
- 4 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares relacionados à obra de Guimarães Rosa: Morro da Garça / Serra das Araras / Araçaí / Corinto / Cordisburgo / Sagarana / Paracatu / Morrinhos / Gruta de Maquiné
Morro do Fogo – Serra das Araras – Chapada Gaúcha – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2) Rose Almeida
- (3) Ivan Carlos Maglio
- (4,5,6,7,9,10,11) Sylvia Leite
- (8) Regina Tinoco
Referências
- Site Oficial do Parque Nacional Grande Sertão Veredas
- Site oficial Onçafari
- Livro Grande Sertão:Veredas
- Livro Itinerário de Riobaldo Tatarana, de Alan Viggiano
- Livro grandesertão.br, de Willi Bolle
- Artigo A Hidrografia na trajetória de Riobaldo em Grande Sertão:Veredas - Revista Cerrados - Unimontes
- Trabalho de Conclusão de Curso Grande Sertão: Veredas - Resgate e Conservação de uma Paisagem Cultural, de Guilherme Braga Neves, UNB
Consultoria
- Almir Paraca - ativista socioambiental, idealizador e criador do Caminho do Sertão
- Xico Mendes - historiador e professor da UNB
- Maria Roseclay Araújo Almeida - Historiadora
- Rosamelia Silva - Professora UNB
- Henrique Leroy - professor UFMG
- Renata Ribeiro - Historiadora
Colaboradores
- Rosa Haruco
- Neli Defensor Sant'Anna Martins
- Edilberto Assumpção de Araújo
- Marcos Viana
- Ivan Carlos Maglio
- Jane Alves
- Maria Marismene Gonzaga
Texto maravilhoso
Que bom que gostou, Ruanita! Volte sempre. O blog já tem mais de 200 matérias e eu sempre posto textos novos. Acompanhe!
Um olhar muito atento sobre nossa história e cultura, incrível e tão pouco conhecida. Parabéns!
Obrigada, Míriam. Bom te ver por aqui. Volte sempre!
De arrepiar!! Sempre maravilhosos os textos de Sylvia Leite…por entrarmos na cultura verdadeira, com referências amorosas e humanas! Vivaaaa
Assim eu choro, Hilda!!! Comentário generosíssimo. Muito Obrigada. Volte sempre!!
Excelente texto que registra um lugar tão bonito e seu povo acolhedor e gentil.
Obrigada, Marcos. Seu comentário é muito generoso. O Morro do Fogo é realmente m lugar especial. Espero que continue lendo as matérias do Lugares de Memória.
Sylvinha, parabéns por mais um texto maravilhoso que resgata e valoriza a nossa cultura. Deve ser muito especial estar entre essas pessoas e vivenciar essas histórias.
Obrigada, Soninha! É muito especial mesmo estar entre essas pessoas e conhecer sua cultura.