Atualizado em 29/09/2024 por Sylvia Leite
Um morro que tem a capacidade de se comunicar com seres humanos é a principal referência cultural e geográfica do município de Morro da Garça, no sertão mineiro. Na ficção – como personagem do conto “O Recado do Morro”, de Guimarães Rosa -, ele grita emitindo um aviso de perigo e sua mensagem se transforma em fio condutor da narrativa. Na vida real, revela o passado geográfico do lugar onde está localizado, pois se trata de um ‘morro testemunho’, isto é: o resquício de uma paisagem geológica desaparecida há milhões de anos que atesta sua existência histórica1.
Além de “linguístico”, o morro é onipresente. Essa qualidade – assegurada pela altitude de quase mil metros acima do nível do mar – faz dele um guia para os viajantes que atravessam aquelas terras e foi especialmente útil na época dos tropeiros.
O Morrão, como é carinhosamente chamado na região, pode ser avistado pelos moradores e visitantes de qualquer parte da cidade. Do mesmo modo, é visto pelos personagens do conto de Rosa em todas as etapas da excursão que realizam sertão adentro: “posto lá, a nordeste, testemunho. Belo como uma palavra”.
O morro personagem
O “Recado do Morro” conta a história de cinco homens que viajam pela região acompanhando um naturalista estrangeiro em busca de informações científicas. Ao vê-los passar, o morro anuncia que um deles sofrerá “morte à traição”, mas a mensagem só é ouvida por um
Ao longo do conto, o recado cumpre um trajeto paralelo ao dos personagens principais, numa espécie de telefone sem fio invertido, que vai se tornando mais claro a cada transmissão.
A cadeia é formada por criaturas que, aos olhos do senso comum, são privadas de raciocínio lógico – três bobos, dois loucos, um menino e um artista. Esse último, sem saber direito o que está fazendo, nem as possíveis consequências do seu ato, transforma a mensagem em poesia cantada e, com isso, atinge a compreensão do destinatário.
A narrativa oferece variados níveis de leitura e incorpora, em sua urdidura, complexos simbolismos baseados na teoria cósmica de Platão e na astrologia árabe, mas sua trama é cuidadosamente tecida por elementos culturais da região – como religiosidade, misticismo e tradição oral – além de contemplar dados econômicos e geográficos locais, o que acaba criando ainda mais correspondências entre o que é aparente e o que é oculto, entre ficção e realidade.
Morro da Garça: o Centro de Minas
Uma das principais características do município de Morro da Garça, por exemplo, é abrigar o centro geográfico e geodésico de Minas Gerais. No conto, essa posição central é atribuída ao próprio morro, pois tanto o trajeto da viagem como, em certa medida, o enredo, desenrolam-se em torno dele, ou de seu recado. A informação nos é passada subliminarmente ao longo do texto e, aos poucos, vamos percebendo que o trajeto da viagem – apesar de ser descrito com a forma da letra “S” – não passa de uma volta em torno do Morrão.
Rosa vai ainda mais longe com a ideia de centralidade – e com sua representação em diversos níveis – ao atribuir ao conto uma posição intermediária na obra “Corpo de Baile”, semelhante à que ocupa a terra no mapa de Plotino.
No formato atual do “Corpo de Baile”, “O Recado do Morro” tem posição central por estar localizado no segundo dos três volumes. Na primeira edição, que reunia todos os textos em um só livro, Rosa tinha sido ainda mais radical ao localizá-lo em quarto lugar, entre os três primeiros e os três últimos textos.
Mas se no universo literário é preciso estar atento para perceber essa ideia de centralidade, no município de Morro da Garça ela está claramente definida por um marco e constitui uma das principais atrações para os viajantes.
A localização do centro geodésico de Minas no município de Morro da Garça foi determinada em 2011 pelo extinto Instituto de Geociências Aplicadas de Minas Gerais (IGA). Apesar de seu caráter oficial e científico, a medição é contestada pelos municípios vizinhos de Corinto e Curvelo, que também dizem abrigar o ponto central do Estado e respaldam suas teses em medições anteriores.
Uma história comum à região
Os três municípios em disputa têm origens semelhantes. Foram povoados a partir do século 18 por tropeiros e boiadeiros. A Fazenda da Garça, que pode ter dado origem ao município, era tida como o último curral antes das minas de Sabará para os viajantes que vinham da Bahia. Mas os baianos não seriam os únicos a transitar e se estabelecer na região. Segundo registro do padre João Batista Boaventura Leite, em seu livro “Morro da Garça”, entre os fazendeiros de gado havia um número significativo de paulistas que chegaram à região nas famosas Bandeiras.
Acredita o Padre Leite que o vilarejo de Morro da Garça se organizou em torno da capela de Nossa Senhora das Maravilhas, provavelmente erguida em 1720. Como ele próprio lembra na introdução do livro, naquela época “a paróquia não era apenas a célula mater da sociedade religiosa, mas também da vida civil”. As eleições ocorriam dentro das igrejas e recebiam o nome de eleições paroquiais.
Cerca de um século depois, a capela histórica perdeu o protagonismo para a matriz de Imaculada Conceição (foto), erguida na mesma praça e nos anos 50, foi demolida. Segundo os moradores, até hoje não se sabe onde foi parar a imagem de Nossa Senhora das Maravilhas. Se foi levada para a nova igreja e passou a representar a Imaculada, ou se tomou um rumo desconhecido.
Na economia, Morro da Garça teve uma história um pouco distinta de seus vizinhos e concorrentes Corinto e Curvelo. Embora compartilhe com eles a vocação agropecuária, o município diferencia-se em outra área: foi uma das poucas cidades da região não servidas pelos trilhos da Central do Brasil, ficando de à margem da efervescência comercial que beneficiou a região no século passado.
A exclusão provavelmente se deu porque quando a estrada de ferro chegou à região Morro da Garça ainda era um distrito de Curvelo, mas os moradores mais antigos têm uma versão curiosa: contam que, naquela época, era comum as meninas da cidade fugirem com os namorados e nunca mais voltarem para casa. Ao saberem que os trens chegariam à região, algumas famílias teriam se organizado para pedir ao governo que não colocasse estação em Morro da Garça, com medo que isso ocasionasse um aumento das fugas.
Talvez por não estar na rota dos trilhos, Morro da Garça não cresceu tanto como seus vizinhos e só conseguiu emancipação de Curvelo em 1962, cerca de quatro décadas depois de Corinto, e assim mesmo depois de muita reivindicação por parte das famílias mais influentes da cidade.
Mas se Morro da Garça perdeu de seus vizinhos no que diz respeito ao desenvolvimento econômico, ganhou de lavada no quesito da fama quando sua maior referência geográfica foi imortalizada por Guimarães Rosa como personagem do conto “O Recado do Morro” e, em consequência disso, foi a primeira sede do circuito turístico que leva o nome do escritor.
Morro da Garça hoje
Décadas depois de tornar-se famosa por meio do conto de Rosa, a cidade de Morro da Garça ainda respira Literatura e abriga duas instituições dedicadas à disseminação da obra roseana. Uma delas é a Casa de Cultura do Sertão, instalada em um casarão do início do século passado, e voltada para a valorização de todos os aspectos da Cultura local.
A outra é a Casinha da Cultura, onde as crianças são estimuladas a ler e a valorizar suas origens por meio de brinquedos e brincadeiras do sertão, do contato com a Folia de Reis e de um projeto de pintura com a terra realizado na zona rural. Os dois centros foram criadas pela Associação dos Amigos da Casa da Cultura do Sertão, mas a instituição principal, destinada aos adultos, é gerida pela Prefeitura de Morro da Garça.
A cidade tem ainda um museu particular voltado para a história do município com foco em uma das famílias mais influentes da região: os Boaventura. O acervo, formado por objetos, fotografias e documentos está exposto em um casarão do século 19, onde funcionou um grande armazém.
O movimento que levou à abertura dos dois centros culturais foi responsável, também, pela criação do Circuito Turístico Guimarães Rosa e pela estruturação de uma rádio comunitária que já funcionava de maneira informal. É que um morrense conhecido como Zé do Pão – porque já tinha sido dono de padaria – assumiu o papel de radialista da cidade e usava um carro de som para transmitir informações e até irradiar jogos de futebol. Atualmente, a Rádio Ciranda FM tem quatro locutores fixos e fica no ar 24 horas, 15 das quais com programação ao vivo. O tempo restante é preenchido com sequências musicais pré-programadas.
Na cultura popular, Morro da Garça conserva tradições como a Folia de Reis e a Guaiana – um folguedo popular que reproduz os antigos cantos de trabalho entoados durante a limpeza dos milharais. Desde 1966, o grupo participa do desfile de abertura da Festa da Lavoura – uma das mais importantes da região.
Já na tradição oral, a principal referência é a Luz Andeja – ou Mãe do Ouro – uma espécie de clarão que segue as pessoas e depois toma seu rumo, desaparecendo na escuridão. Para os mais crédulos, a aparição é um reflexo do ouro da região e serve para indicar às pessoas onde encontrá-lo. Outros acreditam que as luzes são discos voadores. Já para os céticos, tudo não passa de uma lenda.
A explicação científica pode estar na hipótese da Luz Andeja ser apenas uma denominação folclórica para o fenômeno do fogo-fátuo – um tipo de combustão espontânea provocada pelos gases gerados na decomposição de matéria orgânica. Mas a maior parte dos morrenses prefere cultuar o mistério.
Em Morro da Garça não há morador que não tenha visto ou, pelo menos, ouvido falar dessa luz. E cada um deles conta sua própria versão. Alguns a identificam como uma luz redonda, outros como um facho. Há relatos de que o clarão aparece no morro e segue para o outro lado. Mas a luz também já foi vista indo na direção contrária.
Há quem tenha visto a luz andeja dentro de um ônibus ou dentro de um carro. Somente em dois pontos há unanimidade: faz anos que essa luz não aparece e seu sumiço coincide com o aumento da devastação do Cerrado e sua substituição pela monocultura de eucalipto – um dos pilares atuais da economia do município.
Para quem não leu “O Recado do Morro”, uma visita à cidade certamente vai proporcionar grandes surpresas. Já para quem leu, fica o prazer de finalmente olhar para o morro ‘falante’ e de reconhecer, no local, os elementos transpostos da realidade para a ficção.
A ambos, no entanto, um dado pode causar estranheza. O fato desse lugar impregnado de ficção e de linguagem, ainda não ter recebido o título de Cidade Literária concedido pela Unesco.
Notas
- 1 Em outras palavras, morro testemunho é um tipo de elevação que originalmente foi planalto, mas, pela ação de movimentos tectônicos e/ou erosão, sofreu encolhimento nas encosta, sobrando apenas as partes mais endurecidas. Para os especialistas, esses resquícios são testemunhos da existência do planalto milhares de anos antes
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais de Minas Gerais: Corinto / Araçaí / Cordisburgo / Sagarana / Serra das Araras / Paracatu / Morrinhos / Gruta de Maquiné
Morro da Garça / Região do Médio Rio das Velhas / Mina Gerais / Brasil / América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
Referências
- Site da Prefeitura do municípo
- Livro Morro da Garça - No Centenário da Paróquia e da Matriz, de Padre Leite
- Artigo Recado de Viagem, de José Miguel Wisnik
- Artigo Morro da Garça - Geologia e a visão mística de Guimarães Rosa no Centro Geodésico de Minas Gerais, de Mario Luiz de Sá Carneiro Chaves, Leila Benitez, Kerley Wanderson Andrade e Ítalo Meneghetti Filho
- Site do Circuito Guimarães Rosa
- Artigo A Mensagem Geográfica em O Recado do Morro, de Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro
Participação especial
- Rosa Haruco
- Neli Defensor Martins
- Jane Neto Alves
- Marcos Viana
- Maria de Fátima Coelho Castro
Entrevistados
- Maria de Fátima Coelho Castro - presidente licenciada da Associação dos Amigos da Casa de Cultura do Sertão
- Heinz Dieter Heidemann - professor de geografia aposentado, coordenador e locutor da Rádio Ciranda
- José Maria Castro Matos - servidor público aposentado
- Maria das Graças da Rocha - Coordenadora da Casa da Cultura do Sertão
- Antônio Pereira de Brito (Antônio do Dino) - Coveiro
- José Antonio Alves Ribeiro (Miranda) - eletricista
- Vilma Matoso - servidora pública
- Valdir Antônio de Souza - integrante da Folia de Reis
- José Valter Pereira de Brito - integrante da Folia de Reis
Esta matéria está incrível! Você sempre se superando e enchendo nossos corações e mentes de informações históricas, geográficas, culturais com calor e arte
Assim eu choro rsrs.
Obrigada pelo comentário generoso. Volte sempre.
Maravilha Sylvia!!!
Que bom que gostou!