Atualizado em 16/10/2024 por Sylvia Leite
Entre os dias 14 e 16 de maio de 1838, os seguidores de um movimento sebastianista sacrificaram cerca de 50 pessoas, a maioria crianças, em duas pedras localizadas no atual munícipio de São José do Belmonte. O episódio inspirou escritores como Araripe Júnior (O Reino Encantado) e José Lins do Rego (Pedra Bonita e Cangaceiros), mas foi Ariano Suassuna que o tornou conhecido por meio do seu Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta. Mais que isso: ele instalou no local, quando foi secretário de Cultura de Pernambuco, uma espécie de santuário ao qual deu o nome de Ilumiara Pedra do Reino.
Ilumiara, para quem não sabe, é um neologismo criado pelo escritor para denominar, inicialmente, anfiteatros naturais decorados com arte rupestre, provavelmente usados como locais de culto pelos primeiros habitantes do Brasil. Mas o conceito foi depois estendido, pelo próprio Ariano, a espaços de celebração da cultura brasileira e a espaços de interação das artes. Mais recentemente, ele acabou atribuindo essa designação, também, a alguns clássicos da Literatura e ao conjunto de sua própria obra.
Além da Pedra do Reino, que remete ao mito ibérico da volta do rei menino, Ariano projetou outras tantas ilumiaras e duas delas rendem homenagem aos outros dois povos formadores de nossa cultura: os africanos e os nativos, que conhecemos como indígenas. A Zumbi, localizada em Olinda, faz alusão ao Quilombo de Palmares, ao mesmo tempo que homenageia e serve de palco ao Maracatu Piaba de Ouro, do Mestre Salustiano. A Jaúna, no sertão da Paraíba, é uma releitura do sítio arqueológico Pedra do Ingá, insculpido há mais de dois mil anos por povos originários do Nordeste do Brasil.
A casa onde o escritor viveu por décadas com dona Zélia, e que reúne um significativo acervo de arte, do casal, do filho Manuel Dantas e de outros artistas, também era considerada por ele uma Ilumiara e poderá, no futuro, ser transformada em museu. Uma quinta ilumiara seria a casa em estilo barroco da histórica fazenda Acauhan, onde o escritor viveu de um aos seis anos de idade, e que o Governo da Paraiba, seu atual proprietário, pretende transformar em um centro cultural.
A Ilumiara Pedra do Reino foi concebida por Ariano como uma espécie de arena contornada por esculturas do artista Arnaldo Barbosa, erguidas diante das duas pedras que foram cenário do episódio sangrento. São 16 imagens que representam a Sagrada Família, seis santos e os seis personagens históricos de maior destaque no movimento sebastianista.
O ciclo, que integra o sagrado e o profano, é concluído com uma espécie de Totem em homenagem a Antônio Francisco Lisboa, mais conhecido como o Aleijadinho – autor das estátuas dos profetas que adornam a escadaria do santuário de Congonhas do Campo. A homenagem concretiza mais uma integração: a de todas as facetas do Brasil, e está baseada em uma frase do escritor e critico de arte Alceu Amoroso Lima segundo a qual “De Minas para o Nordeste corre um eixo que, não por acaso, segue o curso do São Francisco, o rio da unidade nacional. A esse eixo o Brasil tem que voltar de vez em quando se não quiser se esquecer de que é Brasil”.
Os sacrifícios da Pedra do Reino
Para entender a configuração da Ilumiara Pedra do Reino e a sacralização do espaço realizada por Ariano, é preciso conhecer um pouco de sua história que começa no século 17 com um movimento popular messiânico, ou seja, voltado para a chegada de um ‘messias’. No caso da Pedra do Reino, o messias esperado era o jovem rei português Dom Sebastião, que desapareceu no Marrocos durante a batalha de Alcácer-Quibir, travada contra os Mouros.
O sumiço misterioso do jovem rei deu margem a muitas lendas. Além disso, causou grande insatisfação nos portugueses porque como Dom Sebastião ainda não tinha descendentes, Portugal passou a pertencer ao reino da Espanha. Isso fez surgir movimentos populares de inspiração mística que invocavam a volta do rei desaparecido como fator de redenção e receberam o rótulo de sebastianistas.
O grupo que participou dos sacrifícios da Pedra Bonita – hoje Ilumiara Pedra do Reino – foi movido, assim como os portugueses, pela insatisfação e pela esperança. Eram pessoas muito pobres, vítimas de de abandono e descaso por parte dos governantes e, portanto, presas fácieis de qualquer tipo de promessa.
O líder João Antônio, que se intitulava rei, convocava essas pessoas a formarem um arraial nas proximidades da Pedra Bonita – hoje Pedra do Reino -, onde esperariam a volta de Dom Sebastião. Quando isso ocorresse, seria inaugurado um reino de maravilhas em que os pobres se tornariam ricos, os pretos ficariam brancos, os velhos virariam novos e todos se tornariam imortais e poderosos, tomando o lugar dos proprietários que seriam devorados por dragões.
A condição para que Dom Sebastião voltasse, no entanto, seria lavar a Pedra Bonita com sangue de pessoas e animais, que ressuscitariam logo após a sua chegada. Mas isso só foi revelado depois de muito tempo e provavelmente com ajuda dos efeitos de um tal vinho encantado – uma bebida consumida no arraial que era feita com jurema e manacá, e, segundo alguns autores, causava, ao mesmo tempo, efeitos semelhantes ao de álcool e ao de ópio.
Mesmo antes de se iniciarem os sacrifícios, o movimento já havia provocado reações contrárias porque muitos de seus integrantes abandonaram a religião e largaram os empregos para viver no arraial, esvaziando as igrejas e deixando as fazendas paralisadas. Além disso, passaram a roubar porque não tinham recursos para se manter.
Depois de sofrer uma forte pressão da Igreja, o ‘rei’ João Antônio fugiu para um esconderijo, deixando em seu lugar o cunhado João Ferreira. E foi nesse ‘segundo reinado’ que ocorreu a maioria das mortes. Pais, mães e avós erguiam filhos e netos, “disputando-lhes a primazia no sacrifício”, como registrou Euclides da Cunha, em Os Sertões. O próprio João Ferreira ofereceu o sangue de suas duas esposas – uma delas grávida.
Insatisfeito com as mortes, Pedro Antônio, que era irmão do primeiro rei e das duas rainhas sacrificadas, usou de uma esperteza típica dos sertanejos para eliminar João Ferreira e tornar-se rei. Ele discursou aos seguidores da seita para anunciar que Dom Sebastião lhe aparecera na noite anterior alertando que faltava apenas uma morte para concluir os sacrifícios necessários ao seu ‘desencantamento’: a do rei João Ferreira.
Embora tenha assumido o trono imediatamente após a morte do cunhado, Pedro Antonio praticamente não teve tempo de governar. Ao que se sabe, sua única ação foi ordenar a transferência do arraial para um local próximo, onde havia umbuzeiros, porque a área da Pedra Bonita estava repleta de cadáveres. Mas enquanto armavam as barracas no novo terreno, foram atacados por forças federais com a ajuda de fazendeiros e a história dos três impérios sertanejos se encerrou com mais uma matança e dezenas de cadáveres, só que desta vez executadas pelas forças e repressão.
O romance de Ariano Suassuna
Impressionado com esses acontecimentos, Ariano Suassuna escreveu o Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sanque do Vai-e-volta. O enredo do livro faz um jogo de espelhos entre o acontecimento histórico vinculado diretamente ao mito da volta de Dom Sebastião e fatos ocorridos em 1938, isto é, um século depois. Naquele ano, o personagem Sinésio, que desapareceu misteriosamente logo após seu pai ter sido degolado dentro de uma torre inacessível, volta à cidade montado em um cavalo branco, no meio de uma “estranha cavalgada”, e é aclamado pelo povo que enxerga nele uma esperança de justiça social.
A história é narrada por Dom Pedro Dinis Ferreira Quaderna – personagem que se diz bisneto do João Ferreira histórico. Em função de sua ascendência, ele reivindica a condição de herdeiro da ‘verdadeira família real brasileira’, que seria, em sua opinião, a dos ‘reis castanhos’ que foram afastados do autoproclamado poder logo após os sacrifícios da Pedra Bonita, ou Pedra do Reino. Isso em oposição
Além do trono, Quaderna almeja a condição de ‘Gênio da Raça Brasileira” e pensa que alcançará esse posto ao escrever uma obra capaz de agregar todos os aspectos da cultura nacional, inclusive os contraditórios, e de criar uma consciência nacional em relação a essa cultura. Ele próprio segue os ensinamentos de dois mestres de origens e posições opostas e se considera mais completo que ambos por sua posição de congregador.
O nome Quaderna, aliás, é bastante sugestivo nesse sentido pois em heráldica designa uma figura geométrica com quatro partes de pesos iguais, o que pode ter sido usado por Ariano para simbolizar a integração e o equilíbrio entre os pensamentos e expressões culturais do Brasil.
O Romance da Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta levou dez anos para ser escrito e é considerado um marco do Movimento Armorial, criador pelo Ariano com a proposta de realizar obras brasileiras eruditas inspiradas na cultura popular. No projeto original do escritor, esse livro seria o primeiro volume de uma trilogia que sintetizasse sua obra. Mas os planos foram mudando e Ariano acabou transferindo a ideia de obra síntese para o Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores. A Pedra do Reino passou, então, por algumas alterações para servir como introdução ao livro definitivo.
A cavalgada à Pedra do Reino
O Romance da Pedra do Reino mudou a percepção dos moradores de São José do Belmonte em relação aos sacrifícios ocorridos em 1838. Em vez de tentar apagar a memória da tragédia que pôs fim às promessas do arraial encantado – como faziam antes do lançamento do livro – passaram a integrá-la em sua história, tentando compreender as causas mais profundas e a complexidade social, política e cultural do episódio.
O despertar dessa consciência histórica fez com que, a partir de 1.993, São José do Belmonte passasse a promover uma série de celebrações que rememoram os tristes acontecimentos da Pedra Bonita (hoje Pedra do Reino), além de homenagear o romance de Ariano Suassuna.
Embora seja conhecido genericamente a como Cavalgada da Pedra do Reino, o evento reúne variadas manifestações. Inicia no penúltimo domingo do mês com a missa pelos mortos no episódio e se encerra no domingo seguinte, com a cavalgada. Durante a semana, há uma extensa programação cultural, com palestras, exposições, lançamentos de livros e exibições de filmes. Sábado é a vez da Cavalgada Zeca Miron, chamada assim em homenagem ao seu criador.
Como em toda cavalgada, as disputas são travadas entre o grupo azul, que representa os cristãos, e o grupo encarnado (ou vermelho) que representa os mouros. Em São José do Belmonte, a cavalgada é precedida de duas celebrações. Na primeira, a rainha, os dois reis e os cavaleiros, com suas respectivas madrinhas, porta estandartes e outros figurantes, reúnem-se em frente à igreja matriz, ao som da filarmônica e da banda de pífaros da cidade, para pedir a benção de São José. A segunda é um cortejo que percorre várias ruas da cidade num trajeto que vai da Igreja até o local de realização do torneio.
Semelhante pedido de benção ocorre na manhã seguinte, o último domingo de maio, quando rei, rainha porta-bandeiras, moradores e visitantes reúnem-se para dar início à cavalgada. Quem leu o Romance da Pedra do Reino certamente vai reconhecer, na trilha que acompanha os cavaleiros e as amazonas, músicas que integram o seu enredo.
A beleza das celebrações, das pedras e das esculturas já seria suficiente para justificar uma visita São José do Belmonte, de preferência nessa última semana de maio, mas o lugar vai além. Não sei se por sua história, se pela magia que Ariano imprimiu aos acontecimentos históricos, ou se pela força dos símbolos ali inseridos – ou talvez por tudo isso junto -, a sensação de estar na Ilumiara Pedra do Reino é semelhante à que experimentamos em locais oficialmente reconhecidos como sagrados.
O evento exige esforço físico – tanto na cavalhada como na cavalgada -, seja para quem cavalga, seja para quem faz os percursos a pé ou de carro, mas o cansaço é sempre superado pela beleza das celebrações. O único momento de desgosto é quando, ao final de tudo, chegamos à Pedra do Reino e descobrimos que a festa preparada para receber os cavaleiros e amazonas é embalada, na maior parte do tempo, por um tipo de música que Ariano sempre criticou – pelo fato de não refletir a cultura brasileira. E o mais preocupante: a cerimônia ocorre sem os devidos cuidados para preservar as obras de arte que compõem a ilumiara. Mas isso, é claro, ainda está em tempo de mudar.12
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares relaionados à obra de Ariano Suassuna: Ilumiara Jaúna / Castelo Armorial
- 2 Leia, também, sobre outros lugares relacionados a obras literárias : Cordisburgo / Sagarana / Morrinhos / Marilia de Dirceu / Cartagena / Paquetá
Ilumiara Pedra do Reino – São José do Belmonte – Serra do Catolé – Sertão do Pajeú – Pernambuco – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,4,5,6,7,9,1,11) Sylvia Leite
- (3) Tuquez em Wikimidia
- (8) Divulgação
- (12) Manoel Prado
Referências
- Romance da Pedra do Reino e Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna
- Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores, de Ariano Suassuna
- Memória da Pedra Bonita do Reino, de Saulo de Tarcio Duarte Lima
Participação especial:
- Jane Alves, professora aposentada da UFMG
- Manoel Prado, sociólogo e auditor do Ministério do Trabalho
Agradecimento
- À Equipe de Limpeza da Prefeitura de São José do Belmonte
Ótima síntese de uma longa e complicada história, misticismo e barbárie em nome da fé na conquista de um mundo ideal. Quem for ler “A Pedra do Reino” encontra aqui uma chave, um fio condutor, para que não se perca entre personagens da Cavalgada inicial e acontecimentos extraordinários subsequentes. Primorosa pesquisa de Sylvia, mais uma vez.
Jane, você é suspeita porque viajou junto comigo hehehe, mas de qualquer forma obrigada prlo comentário generoso.
Que história! E que lugar! Não é a toa que inspirou tantos escritores. Fiquei curiosa para conhecer a Pedra do Reino
Sim, uma história bem louca. E Ariano construiu uma espécie de santuário no local que vale a pena conhecer. Mas antes de ir à Ilumiara Pedra do Reino, se puder, leia antes o livro de Ariano.
Ariano era demais! Moro em Pernambuco e ainda não conheço a Pedra do Reino, adorei saber sobre a história.
Ariano realmente era e continua sendo demais onde quer que esteja e a Ilumiara Pedra do Reino também. Não deixe de ir.
Que história heim, não conhecia a Pedra do Reino e já estive algumas vezes em Pernambuco. Muita informação bacana aqui.
Muita informação mesmo, Ana, e também muita história e muita literatura. Vale a pena visitar a Ilumiara Pedra do Reino.
Que história interessante! Gostaria muito de conhecer a Pedra do Reino. Vontade de visitar Pernambuco novamente!
A Ilumiara Pedra do Reino é um lugar muito especial. Vale a pena conhecer.
Muito interessante, adoraria assistir a essa cavalgada. E viva Ariano Suassuna, mais uma vez!
Viva Ariano Suassuna e viva a Ilumiara Pedra do Reino!
Acabei de ler seu artigo e achei o blog muito interessante, tem muita informação que eu estava procurando, parabéns. Contemplados Abraços !
Obrigada, Fátima. Bom saber que encontrou aqui o que estava procurando. Volte sempre. Toda semana tem matéria nova. Se quiser receber os links por email, whatsapp ou Signal, se inscreva na barra lateral da versão web do blog.
Que beleza de texto sobre a Pedra do Reino!! Etodosvos outros também! Estou sempre aprendendo muito com seus textos, Silvia! Obrigada por compartilhar tanto conhecimento!
Obrigada, Ana Maria, pela leitura e pelo comentário generoso. Não é difícil fazer um bom texto sobre um lugar tão especial como a Ilumiara Pedra do Reino.
Ariano imortal, maravilhoso.qusl a data da cavalgada
A cavalgada acontece sempre no último fim de semana de maio.