Ikonium: a terra natal de Santa Tecla

Tempo de Leitura: 8 minutos

Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite

Ícone de Santa Tecla - Foto de autor desconhecido - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAEmbora seja justamente identificada como a terra dos Mevlevis, ou dervixes rodopiantes, por ter sido o lugar onde Jalāl-ad-Dīn Rumi criou a dança ritual do Sama, Konya tem uma história milenar que antecede, em muito, a chegada do poeta e mestre Sufi. Um dos aspectos desse passado, quando era conhecida como Ikonium, é a presença cristã marcada por visitas de pelo menos três apóstolos: Paulo, Barnabé e Silas. E disso decorre uma narrativa – não se sabe até que ponto histórica e até que ponto lendária –, de uma jovem nascida na cidade e convertida ao Cristianismo por influência de Paulo, que viria tornar-se a Santa Tecla.

As viagens dos apóstolos a Ikonium estão registradas no Ato dos Apóstolos, que é o quinto livro do Novo Testamento. Na primeira visita, Paulo e Barnabé teriam convertido tantos judeus e gregos, ao pregarem em uma sinagoga, que os judeus não convertidos juntaram-se para apedrejá-los. Paulo teria voltado à cidade outras vezes, uma delas na companhia de Silas.

Já a conversão de Tecla e sua vida de pregação cristã só aparecem em um texto intitulado Atos de Paulo e Tecla, que integra o evangelho apócrifo Atos de Paulo – um texto que não tem reconhecimento oficial na Igreja Católica embora tenha a aceitação da Igreja Ortodoxa. Apesar de seu nome não estar oficialmente citado na Bíblia, Tecla foi santificada pela Igreja e ainda recebeu dela dois importantes títulos: o de “Igual aos Apóstolos” e o de “protomártir entre as mulheres”.

Tecla de Ikonium: a primeira pregadora cristã

Ícone de Santa Tecla de Ikonium- Imagem de Olavfin - BLOG LUGARES DE MEMORIAPara a época em que viveu, o século 1 de nossa era, Tecla pode ser considerada uma mulher libertária. Negou-se a casar com o homem para o qual estava prometida e foi atrás de Paulo a fim ouvir suas pregações até que recebeu dele a autorização para pregar, batizar e fazer curas. Provavelmente essa é a razão do texto que narra sua história ter sido considerado apócrifo, pois na época não se aceitava que mulheres realizassem funções religiosas.

Tecla foi também a primeira mártir do Cristianismo, por isso o título de promártir. Escapou duas vezes de condenações, mas chegou a ser exposta ao fogo e ataque de animais selvagens, sendo salva nas duas ocasiões, segundo conta o evangelho apócrifo, por situações inusitadas, explicadas apenas pela ação divina.

De acordo com o texto Atos de Paulo e Tecla, sua história começa quando o apóstolo Paulo, alojado em uma casa vizinha à de sua família, de propriedade de um homem chamado Onesífero, começa a disseminar sua mensagem sobre a castidade. Segundo a narrativa, Tecla sentou-se junto à janela e passou três dias sem levantar-se para coisa alguma, demonstrando prazer e alegria ao ouvir o apóstolo. Detalhe de pintura da capela de Santa-Tecla-na-Catedral-de-Barcelona-Imagem-de-Didier-Descouens em Wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMORIA

A mãe de Tecla interpretou o estado da filha como paixão e foi chamar Tamires, a quem Tecla estava prometida, naesperança de que ele conseguisse arrancá-la daquele transe. Mas Tecla não atendeu ao noivo e ele, enfurecido, denunciou Paulo governador de Ikonium. Tamires contou com a ajuda de Hermógenes e Demas, os companheiros de viagem de Paulo que, desde a chegada a Ikonium estavam enciumados com o modo como o apóstolo foi tratado por Onesóforo e aproveitaram a oportunidade para traí-lo, revelando a Tamiris que Paulo pregava o novo Cristianismo.

Paulo foi preso, mas isso não deteve Tecla, que à noite subornou o porteiro e o carcereiro da prisão para chegar até ele. O primeiro com seus braceletes e o segundo com um espelho de prata. Ao alcançar o apóstolo, sentou-se a seus pés e, alisando as algemas, ouviu novas pregações. Mas o noivo e a mãe conseguiram localizá-la e, inconformados com a situação, denunciaram os dois ao governador além de incitar a população contra eles.

Os martírios de Tecla

Representação de Santa Tecla e as bestas selvagens - por Daderot em wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMORIAPaulo foi açoitado e expulso da cidade. Tecla, a pedido da própria mãe, foi condenada a morrer na fogueira. Os carrascos chegaram a atear fogo na lenha, produzindo uma grande chama, mas o fogo não a tocava. Em seguida, caiu uma tempestade de água e granizo que, segundo a narrativa, matou muita gente e Tecla foi salva, partindo em busca de Paulo. Logo encontrou um dos filhos de Onesífero e soube que o apóstolo estava jejuando junto com sua família ao lado uma cova aberta, na estrada que leva a Dafne. Foi ao seu encontro e ambos partiram para Antioquia. Mas ao chegar na cidade, o sacerdote da religião dos sírios apaixonou-se por ela e tentou convencer Paulo a trocá-la por dinheiro e presentes. Paulo fingiu que não a conhecia e o sacerdote tentou agarrá-la à força, mas Tecla se soltou, arracncando sua coroa e rasgando seu manto.

Foi levada ao governador de Antioquia que a condenou às feras. Mas desta vez, Tecla teve o apoio das mulheres, que gritavam contra sua condenação e, talvez por isso, conseguiu que o governador a atendesse no pedido de manter sua castidade até a morte. Foi, então, entregue à rainha colocada sob a proteção de Trifena, uma rainha que havia perdido a filha, e além de conseguir chegar virgem à arena das feras, Tecla conquistou o amor de TrifenaRepresentação de Santa Tecla encontrada na Cronica de Nuremberg - BLOG LUGARES DE MEMORIA e a converteu  ao Cristianismo.

No dia do castigo, Trifena tentou imedir que os guardas levassem Tecla, mas não conseguiu detê-los. Mesmo assim, a jovem de Ikonium escapou mais uma vez. Primeiro foi defendida das outras feras por uma leoa que também deveria atacá-la. Depois, decidiu entrar em fosso cheio de água, para ser batizada em seu último dia de vida. Dentro do fosso, muitas feras marinhas esperavam para atacá-la, mas uma bola de fogo impedia que as feras se aproximassem e um raio as destruiu. Houve uma terceira tentativa com touros, Tecla foi salva novamente pelo fogo.

A uma certa altura, Trifena passou mal e Alexandre, com medo de represália por parte do imperador, que era parente da rainha, pediu ao governador que encerrasse o castigo. Depois de uma conversa com a jovem, o governador a libertou com as seguintes palavras: “Eu liberto Tecla, a piedosa serva de Deus, para vocês”. As mulheres comemoraram e Trifena levou Tecla para casa, prometendo doar-lhe todos os bens. Durante oito dias, ela e suas criadas foram iniciadas no Cristianismo, mas Tecla sentia falta de Paulo. Ouviu dizer que ele estava em Mira e foi ao seu encontro.1

A licença para pregar

Convento de Santa Tecla em Maaoula - Foto de Berbard Gagnon em Wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMORIADepois de contar-lhe todos os acontecimentos e de rezarem juntos por Trifena, Tecla decidiu voltar a Ikonium e, nesse momento, recebeu autorização de Paulo para pregar. Deixou com ele tecidos e riquezas que ganhou da rainha para que ele as usasse em favor dos pobres e aparentemente não há relatos de que tenham voltado a se encontrar. Em Ikonium, soube da morte ao ex-noivo e pregou para sua própria mãe, mas logo dirigiu a Selêucia, atual Silifke ou Selefke, onde permaneceu até morrer pregando, batizando e realizando curas.

Pouco se sabe sobre esse período, que é provavelmente o maior de sua vida, pois acredita-se que tenha morrido com pelo menos 90 anos. Mesmo sobre o período de conversão e martírio, há pouca certeza. Os fatos relatados anteriormente parecem ser os mais próximos da historicidade pelo fato de fazerem parte do único documento da época. Mas, ainda assim, é possível encontrar versões ligeiramente distintas, contados por fontes da própria Igreja, que chegam a levantar dúvidas sobre se Tecla teria nascido em Ikonium ou em Isaúria.

A devoção a Santa Tecla

O culto a Tecla teria surgido logo após a sua morte, identificando-a como a protetora dos agonizantes e modelo de ascetismo feminino, invocada em cerimônias cristãs como a tonsura de mulheres. Seu dia passou a ser celebrado em 23 de setembro pelos cristãos e em 24 de setembro pelos cristãos ortodoxos.

Retabulo da Catedral de Est - Por Giovanni Battista Tiepolo - BLOG LUGARES DE MEMORIA Segundo o evangelho apócrifo, ela teria sido enterrada em Selêucia, no local onde, posteriormente, foi erguida uma igreja em sua homenagem. Em Maaoula, na Síria, existe até hoje o convento de Santa Tecla, destruído em 2013 pelo Estado Islâmico, mas reinaugurado em 2018. O convento foi encrustrado na montanha, próximo no local onde, segundo uma lenda, a rocha se abriu para escondê-la dos soldados de seu pai, que a perseguiam por haver se convertido ao Cristianismo.2

Em Konya, Santa Tecla não é mais lembrada a não ser por historiadores ou interessados na presença do Cristianismo na região. Os rastros mais evidentes de seu culto estão no ocidente, especialmente na Itália, Espanha e Portugal, onde só foi iniciado a partir do século 4.

Na cidade italiana de Este, província de Pádua, em Veneto, há uma catedral devotada a Santa Tecla cujo retábulo-mor é uma pintura de Tiepolo, que mostra a santa orando para que a cidade fique livre peste. Sob a Catedral de Milão, estão as ruínas de uma antiga igreja de Santa Tecla, descobertas em 1960, durante as obras de construção do metrô. A santa é padroeira da cidade de Tarragona, na Espanha, onde anualmente, ente 14 e 24 de setembro, é realizado o Festival em sua devoção.

E, para surpresa de muitos, Santa Tecla é também padroeira de uma cidade no Brasil. Em Capão do Leão, distrito de Pelotas, no Rio Grande do Sul, além de uma igreja com mais de cem anos, há uma avenida, uma estância, uma escola, um cemitério e até um time de futebol batizados com seu nome.

Notas

  • 1 Há relatos de fonte incerta sobre um terceiro martírio no qual Santa Tecla teria sido colocada dentro de uma gruta com serpentes
  • 2 Conta-se, ainda, que ao ser perseguida pelos soldados de seu pai e ser protegida pela abertura da rocha, Santa Tecla teria deixado os braços do lado de fora e os soldados os teriam levado como prova de sua morte. Mas nem a perseguição, nem o acidente com os braços são citados no texto Atos de Paulo e Tecla
  • 3 Leia, aqui no blog, materias sobre outros lugares especiais da Turquia: Konya / Santa Sofia / Éfeso / Pérgamo / Troia / Pamukkale / Capadócia / Cisterna da Basílica

Ikonium – Anatólia – Turquia – Ásia Menor – Ásia

Texto

Fotos

  • (1) Domínio público em Wikimedia'
  • (2) Por Olavfin - Domínio público - Wikimedia
  • (3) Por Didier Descouens - Wikimedia - CC BY-SA 4.0
  • (4) Por Daderot - Domínio público - Wikimedia
  • (5) Hartmann Schedel - Auto-digitalizada, Domínio público - Wikimedia
  • (6) Por Bernard Gagnon - Obra do próprio - Wikimedia - CC BY-SA 3.0,
  • (7) Por Giovanni Battista Tiepolo - Domínio público - Wikimedia

Referências

  • Atos dos Apóstolos - Novo Testamento
  • Atos de Paulo e Tecla - Evangelho Apócrifo
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Gilberto habib de Oliveira
Gilberto habib de Oliveira
3 anos atrás

Muito interessante e bonita a história. Apesar de todas as incertezas e debates sobre os textos apócrifos é bastante crível que as mulheres dessa época demonstrassem sua fé, sapiência e iluminação por meio da vontade firme, da “paixão” pelos pregadores e da sensitividade que as motivavam a percorrer caminhos e a buscar a verdade onde quer que estivesse. Paulo sofreu muitas perseguições mas parece tinha de fato esse dom de despertar a mente dos primeiros seguidores do Cristianismo e imantar a sensibilidade dos que desejavam o Novo Caminho. Obrigado Silvia.

Jose Marcelo Santos
Jose Marcelo Santos
3 anos atrás

Fantástico, excelente matéria, esclarecedora.

Bete Sobral
Bete Sobral
3 anos atrás

Maravilha!

Val Cantanhede
Val Cantanhede
3 anos atrás

Que fantástica a história de Santa Tecla! Não tinha conhecimento da primeira feminista cristã.
Bjs

Sonia Maria Pedrosa Silva Cury
3 anos atrás

Que história incrível, Sylvinha!!! Adorei conhecer e fiquei com vontade de saber mais, pesquisar… valeu, mesmo!!!

Diego
3 anos atrás

Não fazia ideia dessa historia de Ikonium. Muito bacana!

hebe
hebe
3 anos atrás

Que história incrível, adorei saber mais um pouco sobre Ikonium, a terra de Santa Tecla. Vou até indicar esse seu post para minha sogra, ela vai amar. Parabéns Silvia!

Sabrina Albuquerque
Sabrina Albuquerque
3 anos atrás

Eu nunca tinha ouvido falar de Santa Tecla, mas adorei a sua história. Também desconhecia a existência de Ikonium. O que só prova que temos tanto para conhecer, visitar etc.

Angela Martins
Angela Martins
3 anos atrás

Sempre interessante os seus posts! Não conhecia essa Santa Tecla e sua terra Ikonium.

Augusta Leite Campos
Augusta Leite Campos
3 anos atrás

Incrível a história de Santa Tecla. Sabia que existia uma santa com este nome mas não conhecia sua história. Li algumas vezes o texto para saborear cada detalhe. Tudo a respeito das viagens de Paulo e suas pregações me fascinam. Posso entender Santa Tecla.

Aline Laudelina Pires
Aline Laudelina Pires
3 anos atrás

Amei conhecer a história da Santa Tecla, e fico me perguntando como não a conhecia a primeira mártir do cristianismo, mesmo sendo católica. Muito obrigada por nos presentear com essa linda história

Tecla
Tecla
2 anos atrás

Me chamo Tecla, exatamente porque nasci dia 23 de setembro, dia de Santa Tecla. Adoro meu nome, é um pouco estranho, mas as pessoas logo se acostumam. Já conhecia um pouco sobre sua história, mas, não tão profundamente.Obrigada pela linda pesquisa. Amei.