Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite
Há mais de três décadas, estudiosos da cultura popular são atraídos a Laranjeiras, no interior de Sergipe, durante a primeira semana do ano, para participar de um encontro cultural. A programação da festa inclui shows musicais, exposições, apresentações de grupos folclóricos e até um simpósio, mas a origem e a razão de tudo situam-se em uma celebração religiosa: a Festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
O sincretismo dá o tom das comemorações, a começar pela história dos santos: ele, um italiano negro, filho de escravos etíopes e correspondente a Ogum. 1Ela, a mãe misericordiosa que prometeu à Santa Ifigênia, que era negra, proteger os africanos escravizados e, por isso, tornou-se padroeira das principais instituições culturais de cunho sincrético no Brasil – as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos.
O papel central da Taieira
Quem protagoniza a festa popular é a Taieira – um tipo de dança-cortejo organizada por integrantes da Casa de Santo Irmandade de Santa Bárbara Virgem, de tradição Nagô Puro2, mas que cultua também os dois santos católicos.
Uma das peculiaridades do grupo está no fato de ser composto principalmente por moças virgens – as taieiras – que cantam, dançam e tocam um instrumento de percussão conhecido como querequexé. Os cinco personagens masculinos – o rei, o ministro, o patrão e os dois capacetes – também participam e um deles, o patrão, toca tambor. Há, ainda, duas rainhas, representados por pessoas mais velhas, que apenas acompanham as taieiras sem dançar.
A celebração acontece no domingo mais próximo a 6 de janeiro, Dia de Reis, data que integra o calendário litúrgico da Igreja católica. Logo cedo, os integrantes da Taieira reúnem-se na Casa de Santo para fazer uma espécie de preparação. Por volta das 9 horas, dois outros grupos vêm buscar a Taieira para um cortejo até a igreja de São Benedito: primeiro a Chegança do Almirante Tamandaré e depois o Cacumbi de mestre Deca.
Embora o trajeto seja bem curto, a caminhada da Casa de Santo até a Igreja de São Benedito e Senhora do Rosário dura cerca de uma hora. É que antes de se dirigir ao destino final, os grupos vão até a beira do rio para louvar Yemanjá.
A chegada à igreja é esperada pelos fiéis que apoiam-se nas grades do pátio para assistir ao espetáculo da subida dos grupos pela longa escadaria.
Coroação e louvores na Festa de São Benedito
Depois de assistirem à missa ao lado dos fiéis, os grupos fazem suas louvações dentro da igreja. Mas antes do início da cantoria, ocorre a apoteose da festa, quando o padre retira a coroa de Nossa Senhora do Rosário e pousa na cabeça de cada uma das rainhas da Taieira.
O ritual remete às coroações dos Reinados do Congo – uma espécie de instituição criada pelo Estado Português a fim de aliviar as tensões com os escravizados e assim manter sua dominação, mas que acabou abrindo brechas para a preservação da cultura que eles trouxeram da África.
Ao final de tudo, a Taieira inicia as visitas a residências onde seus integrantes cantam e dançam para os donos de cada casa. Mas só fazem isso quando são convidados a entrar.
O Encontro Cultural de Laranjeiras
Embora já esteja incorporado à história da cidade, o Encontro Cultural de Laranjeiras tem sua existência inteiramente vinculada à Festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
Seu evento principal, o Simpósio do Encontro Cultural de Laranjeiras, estuda temas relativos a essa tradição e a outras manifestações culturais brasileiras. Os grupos folclóricos que sempre saíram às ruas na Festa de São Benedito e Nossa Senhora da Glória para louvar os santos católicos fazem apresentações individuais e um cortejo coletivo.
A única parte da programação que não tem vínculo com a festa original são algumas exposições e apresentações de artistas locais e os shows musicais da noite que, assim como em outros eventos culturais, servem de chamariz para o grande público.3
Notas
- 1 A correspondência sincrética dos Santos varia conforme a religião de matriz africana. Consideramos aqui a religião Nagô Puro que será citada mais adiante
- 2 Segundo a coordenadora da Taieira, e mestra pela Universidade Federal de Sergipe, Maria do Espírito Santo, a denominação Nagô Puro refere-se ao fato dessa linha religiosa não admitir misturas com outra prática religiosa, a não ser o catolicismo
- 3 Leia, aqui no blog, matérias sobre outras manifestações culturais do Nordeste: Dança de São Gonçalo / Mussuca / Bumba Meu boi
Festa de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário – Laranjeiras – Sergipe – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3) Sylvia Leite
- (4) Irineu Fontes
- (5) Prefeitura de Laranjeiras/divulgação
Referências
- Livro A Taieira de Sergipe, de Beatriz Gois Dantas
- Documentário sobre a Taieira produzido pela Tv Aperipê, com direção de Pascoal Maynard
- Matéria jornalística produzida pela TV Alese
Agradecimento
- A Bárbara, líder da Taieira
Textos de Sylvia Leite sempre me surpreendem por sua beleza poética ,ao mesmo tempo que aprendemos fatos significativos de nossa história dr uma forma viva!!!
Obrigada pelo comentário generoso, Hil. Bom saber que você está sempre atenta ao blog.
Muy buena información y racconto de identidad!!
Que bom que gostou. Breve teremos matéria sobre a Taieira. Fique ligada!
Muito interessante Sylvia este tema do sincretismo religioso entre tradições africanas e o catolicismo. Especialmente a tradição Nagô. Gostaria de conhecer mais sobre essas festas em Laranjeiras que nos levam a entender mais essas tradições religiosas de matriz africana. Aguardo Sylvia que nos leve nessas viagens.
A Festa de São Benedito é realmente muito interessante. Quanto ao seu pedido, sempre que eu tenho oportunidade de presenciar essas manifestações, escrevo aqui no blog sobre o que vi para que os leitores possam ter pelo menos um vislumbre de seus significados.
Tão bom quando a gente conhece a história e assiste a essas apresentações! Muda tudo. Valeu, Sylvinha!!!
Verdade, Soninha. Manifestações como as da Festa de São Benedito são lindas, mas tornam-se brm mais significativas quando conhecemos sua origem e trajetória.