Dança de São Gonçalo: entre o profano e o sagrado

Tempo de Leitura: 4 minutos

Atualizado em 20/07/2023 por Sylvia Leite

Dança de São Gonçalo 4 - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAConta a lenda que o frei Gonçalo – um dominicano que viveu no século 13, em Amarante, em Portugal – foi, em sua juventude, um alegre violeiro que passava noites tocando e dançando com as prostitutas. A intenção, segundo se conta, era distraí-las com o fim de que, pelo menos nos dias em que dançavam, elas não exercessem seu ofício. Depois da morte do frei, as danças e cantorias inventadas por ele passaram a ser executadas por grupos de devotos em sua homenagem e hoje são conhecidas como a Dança de São Gonçalo.

É que ainda em vida, o frei Gonçalo começou a fazer milagres e, embora tenha sido apenas beatificado, passou a ser tratado como santo pelos devotos. Assim, a dança, que nasceu profana, acabou se transformando em um ritual para pagamento de promessas e agradecimento pelas graças alcançadas.

São Gonçalo e as mulheres

Dança de São Gonçalo 1 - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAA luta de frei Gonçalo para que as prostitutas deixassem a profissão e constituíssem família acabou lhe dando a fama de santo casamenteiro. Acredita-se que ao encostar qualquer parte do corpo em seu jazigo, na cidade de Amarante, a mulher que deseja se casar pode alcançar esse objetivo em menos de um ano.

Mas apesar de frei Gonçalo ter adquirido fama de casamenteiro, foram outros milagres que permitiram a sua beatificação. Atribui-se a ele a cura de vários doentes, além de alguns milagres relacionados à ponte sobre o rio Tâmega, hoje conhecida como Ponte de São Gonçalo.

A icônica ponte

Ponte sobre o rio Tâmega - Foto de António Amen em Wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMORIAConta-se, por exemplo, que um rico comerciante entregou a frei Gonçalo uma mensagem endereçada a sua esposa pedindo que ela doasse ao religioso o equivalente ao peso do bilhete em moedas de ouro. O dinheiro seria destinado à construção da ponte.

Apesar de todos saberem que aquele pedaço de papel era mais leve que qualquer moeda, a mulher atendeu ao pedido do marido e, para surpresa de todos, quanto mais ela colocava moedas na balança, mais o bilhete aumentava de peso. O processo só foi interrompido, a pedido do próprio frei, quando as moedas já somavam o valor necessário às obras da ponte.

São Gonçalo teria também impedido a destruição da ponte durante uma enchente, ao segurar com as mãos uma árvore gigante que ameaçava derrubá-la. Depois da façanha, as águas teriam começado a baixar repentinamente.

A dança ritual

A Dança de São Gonçalo é realizada em várias partes do Brasil e em cada lugar assume características bem distintas. O que se repete na maioria dos grupos é o roteiro, que dura pelo menos um dia inteiro e inclui ensaio (ou ensaios), procissão, almoço ritual e a dança propriamente dita.

Dança de São Gonçalo em São José do Belmonte - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAOutra coincidência é a presença de uma imagem do santo durante todo o ritual e a maneira como ele é representado. Enquanto nas igrejas, São Gonçalo é retratado com cajado na mão, nos grupos de Dança de São Gonçalo ele aparece tocando viola, em alguns casos dentro de um barco. 

A embarcação seria uma referência biográfica pois acredita-se que antes de entrar para a vida religiosa frei Gonçalo tenha sido marinheiro. Outas hipótese, talvez mais verossímil, é de que suas danças e cantorias fossem realizadas no porto, onde as prostitutas iam ao encontro dos marinheiros.

Em alguns lugares, os dançarinos organizam-se em dois cordões, um azul e um encarnado (vermelho), que representam, respectivamente, os cristãos e os mouros. Caso, por exemplo, da Dança de São Gonçalo de São José do Belmonte, em Pernambuco.

O São Gonçalo da Mussuca

Dança de São Gonçalo 2 - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAEm Sergipe, na comunidade quilombola da Mussuca, a Dança de São Gonçalo apresenta uma de suas formas mais inusitadas. Nesse grupo, os dançarinos são todos homens vestidos de mulher. Por cima das calças, eles usam saias estampadas, além de blusas e turbantes brancos adornados por arranjos de fitas coloridas. No pescoço, colares de contas lembram as guias das religiões de matriz africana.

Além dos dançarinos, que se posicionam em pares, o grupo reúne quatro músicos e uma ‘mariposa’ – nome dado à mulher que carrega a imagem do santo. O ritual é comandado pelo  marinheiro, em alusão à suposta profissão do frei antes de sua ordenação ou aos clientes das prostitutas que frei Gonçalo tentava salvar.

Durante muito tempo, a Dança de São Gonçalo da Mussuca só se apresentava de forma ritual – quando havia promessa para pagar – e seus integrantes eram todos negros. Nas últimas décadas, o grupo admitiu dançarinos brancos e passou a se apresentar também em festas populares como o Encontro Cultural de Laranjeiras. Poucos são os grupos que ainda se mantêm, exclusivamente, com a tradição das promessas.1

Notas

Dança de São Gonçalo – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1,2,4,5) Sylvia Leite
  • António Amen em Wikimedia - CC BY-SA 3.0

Referências

  • A Dança de São Gonçalo - Livro de Beatriz Góis Dantas
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Valdeci da Silva Meneses Cantanhede
Valdeci da Silva Meneses Cantanhede
9 meses atrás

Que delícia de texto, Sylvinha!
As manifestações da cultura popular em toda sua diversidade na dança de São Gonçalo.
Abraços

Linda Yazbek Rivitti
Linda Yazbek Rivitti
9 meses atrás

Oi Sylvia. Estive em Amarante, onde me senti num tempo-espaço paralelo. Atravessei essa ponte no por do sol. Lá, nos contaram a história de São Gonçalo. Mas você vai muito além ao trazer a influência de uma tradição portuguesa na cultura quilombola. Adorei. Beijos

Joaquim Sobral
Joaquim Sobral
9 meses atrás

Sempre adorei o São Gonçalo pela grande belesa das cores. Não sabia nada da sua história… tô sempre aprendendo contigo. Parabéns et obrigado.

Sonia Pedrosa
9 meses atrás

O nosso folclore é muito interessante, além de lindo de se ver!