Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite
Quem passeia pela Rambla de Montevidéu, no elegante bairro de Punta Carretas, não pode deixar de perceber que, perdida entre os altos edifícios residenciais de estrutura moderna e janelas de vidro, encontra-se uma construção avermelhada, em estilo medieval, com uma escultura branca na altura do primeiro andar. É o que restou de um casarão erguido no início século 20 por Humberto Pittamiglio – arquiteto ítalo-uruguaio conhecedor e praticante da Alquimia. Naquela época, segundo se conta, o edifício era usado por ele não apenas como moradia, mas também como laboratório alquímico. Hoje funciona no local um dos dois museus que levam o seu sobrenome: os Castelos Pittamilgio.
O outro, localizado a menos de 100 km dali, no balneário Las Flores, na província de Maldonado, é uma residência de veraneio, também construída por ele, e parece ter servido aos mesmos fins. Embora muito diferente em termos de estrutura, o segundo Castelo Pittamiglio abriga inúmeros elementos comuns ao primeiro: ambos têm fachadas de tijolo aparente, estão repletos de símbolos alquímicos e misturam estilos, culturas e crenças. Mas enquanto em montevidéu o terreno está quase todo construído, em las Flores, a casa ocupa apenas uma pequena parte da área cercada por muralhas. O resto da área está tomada por um jardim.
O primeiro dos Castelos Pittamiglio
O elemento que mais se destaca no castelo de Montevidéu é a escultura da fachada – uma réplica da Vitória de Samotrácia, produzida em Rhodes no período período helenístico e chamada assim porque foi encontrada nessa ilha, aos pedaços e sem cabeça, em 1863. Pitamiglio teria escolhido essa obra como uma espécie de símbolo de sua mansão porque na ilha onde ela foi resgatada praticava-se um culto a deidades conhecidas como Cabiros e entre elas estava o deus da fertilidade Cadmilo, que era identificado com Hermes Trismegistus.
Embora exista dúvida sobre a existência histórica desse personagem, cujo nome está relacionado tanto a um sábio egípcio como a um deus grego, a ele se atribui a autoria de dois livros fundamentais para a Alquimia árabe e européia: a Tábua de Esmeralda e o Corpus Hermeticum. Além disso, a escultura, que retrata uma mulher alada sobre um barco, representaria a vitória da vida – que, segundo os alquimistas, pode ser comparada a uma viagem.
Do lado de dentro da construção, quase nada nos remete aos castelos que um dia visitamos ou vimos no cinema. A distribuição dos cômodos é quase sempre descontínua, intercalada por pátios. Há muitas escadas e nem todas levam a algum lugar. Isso ocorre também com uma ou outra porta que pode simplesmente não dar passagem para outro ambiente, por ter sido erguida rente a um muro. E se engana quem pensar que isso se deve à degradação do prédio. As portas com esse tipo de bloqueio representam, de acordo com o simbolismo usado por Pittamiglio, os caminhos obstruídos.
O ponto mais interativo da visita é a torre cilíndrica, denominada Templo Solar da Perfeição, que fica atrás da Vitória de Samotrácia. Quem se posiciona no círculo central do piso passa por uma experiência inesquecível. Sem a ajuda de qualquer equipamento ou truque, a pessoa tem a voz amplificada como e estivesse falando ao microfone. O efeito é possível, segundo a equipe do museu, graças a uma ‘qualidade energética daquele ponto específico’, provavelmente combinada com alguns detalhes da construção, entre eles a abertura do teto.
Outro fenômeno que ocorre na torre está relacionado tanto ao sol como ao uso simbólico das letras. No dia do solstício de verão, que no hemisfério Sul cai no mês de dezembro, há uma hora específica em que a luz passa por duas aberturas da torre – uma vertical e uma horizontal – e proteja a letra Tau1 sobre a mesma lajota redonda central onde se obtém a amplificação da voz. Simbolicamente, essa projeção da luz em forma de Tau sobre uma torre que tem forma de atanor – o caldeirão onde ocorrem as transformações alquímicas – serviria para infundir movimento à matéria e proporcionar a realização da obra.
A importância das letras para Humberto Pittamiglio e para a sua prática alquímica era tamanha que ele incluiu o H no início de seu nome pelo fato dessa letra ter um significado simbólico para os alquimistas. Seu amigo e professor Francisco Píria chegou a construir um hotel em Piriápolis2 – o balneário criado por ele em Maldonado – que, visto de cima, tem a forma de H.
Os números também são elementos importantes no castelo e estão por toda parte. Aparecem nos padrões de pisos e tetos, marcados pelo 4, número que representa a terra, ou em outros detalhes decorativos baseados no 8, que é o número do equilíbrio e do caminho espiritual. Os polígonos de oito lados são usados em azulejos, mosaicos e até como base de uma espécie de pináculo em uma torre localizada no meio do castelo.
A visão desse octógono só é possível a partir da antiga entrada principal da casa que fica na Rua Francisco Vidal, do outro lado do quarteirão, e hoje está ocupada por um restaurante. Nessa área do castelo, onde se localizam as salas, a cozinha e o pátio de entrada, encontra-se também o que Pittamiglio chamava de quarto de reflexão – um pequeno cômodo, sem móveis ou decoração, separado dos outros ambientes por uma porta de ferro.
É nessa entrada principal do castelo – onde hoje se encontra o restaurante – que está mais evidente a mistura de referências. Ali já existiu uma escultura de São Francisco de Assis e ainda resta uma ‘pietá’ e outras imagens cristãs. Não muito longe, está um busto de Napoleão e um balcão em alusão à obra de Shakespeare, Romeu e Julieta. Em uma espécie de copa, que fica embaixo da cozinha, há um vitral com as iniciais de Pittamiglio que lembram um quadrado mágico.
As curiosidades sobre o castelo de Montevidéu não param aqui. Há quem diga, inclusive, que no período de 1944 a 1955 a construção abrigou o Santo Graal, mas é preciso falar um pouco, também, sobre a construção de veraneio.
O segundo castelo Pittamiglio
Ao atravessar o portão de entrada do Castelo de las Flores, em Maldonado – o segundo dos Castelos Pittamiglio-, tem-se a impressão de que não há castelo e sim um grande jardim cercado por muros. De fato, o jardim ocupa uma enorme parte do terreno, enquanto a casa se encaixa, de forma quase imperceptível, em uma pequena ao longo da muralha frontal.
Diferente do castelo de Montevidéu, os cômodos dessa construção são bem mais simples e, pelo menos em sua configuração atual, possuem decoração discreta e um pequeno número de obras de arte. Aqui tudo parece estar em função do lado de fora. É o caso da janela do banheiro, de onde se pode enxergar uma das peças mais expressivas do jardim: uma imagem de Cristo.
É também do lado de fora que se encontram esculturas de cegonhas, caminhos simbólicos traçados entre os canteiros e uma representação das cenéforas – jovens virgens de famílias poderosas que residiam no templo de Minerva. Elas, as cenéforas, participavam das festas de adoração aos deuses portando cestas onde escondiam os objetos sagrados para que não fossem vistos pelos profanos.
Se comparado com o castelo de Montevidéu, las Flores oferece muito pouco. Quem tem tempo para apenas uma visita certamente deve escolher o outro, não apenas por conter uma decoração mais elaborada e um maior maior volume de obras de arte, mas também porque, segundo os estudiosos em Alquimia, sua localização corresponde a uma das pontas de um importante triângulo de energia. As outras duas estariam no castelo de Píria, em Piriápolis, e na Praça Matriz, na cidade antiga de Montevidéu. Mas os que conseguirem visitar os dois Castelos Pittamiglio certamente sairão com uma imagem mais completa: em parte porque o castelo de veraneio também impressiona e principalmente porque ambos parecem ter sido construídos para assumir funções complementares.3
Notas
- 1 Tau é o nome da décima nona letra do alfabeto grego e a última do alfabeto hebraico. A forma da letra grega lembra um T e foi usada e pelo Cristianismo como símbolo da cruz - e ainda hoje é mantida pelos franciscanos.
- 2 Leia, aqui no blog, matéria sobre Piriápolis.
- 3 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares do Uruguai: Chuí e Chuy / Tira del Tiempo / Colônia do Sacramento / Casapueblo
Castelos Pittamiglio – Punta Carretas / Montevidéu –
– Las Flores/Maldonado – Uruguai
Fotos
- Sylvia Leite
Livros:
- LAS VOCES EN LA PIEDRA - El legado del Alquimista Humberto Pittamiglio, de Fernando Rodriguez.
Colaboração e apoio:
- Inês Bagnasco (jornalista uruguaia), que me levou em seu carro para conhecer o castelo de Maldonado e me contou tudo que sabia sobre Pittamiglio.
- Roque Baldeán, (jornalista uruguaio e presidente da CIPETUR), que me apresentou a Inês para que fizéssemos a viagem
Belo registro, Sylvinha!!! Adorei recordar essa viagem maravilhosa!
Foi maravilhosa mesmo! beijo
Que maravilha sua matéria, Sylvinha!
Os alquimistas e seus insondáveis mistérios são fascinantes.
Abraços,
Val Cantanhede
São mesmo, Val. Obrigada pelo comentário.
Como sempre adorei
Que bom! Adoraria saber seu nome. Da próxima vez não esqueça de informar, ok? Abraço.
Gente que bacana! Sensacional conhecer essa dica passeio. Adorei conhecer esses castelos de origem alquimista, adoro esse tipo de passeio diferente.
Os dois são incríveis,Deyse. vale a pena colocar em seu roteiro.
Que discrição incrível, já fiquei com vontade de conhecer os dois Castelos Pittamiglio.
Que bom que gostou e sentiu vontade de conhecer. É legal quando isso acontece. Sinal de que o blog está se comunicando com os leitores. Obrigada pelo comentário.
Um passeio bem diferente esse e não menos bacana! Adorei conhecer esse estilo alquimista dos castelos, bem legal que foram transformadas em museus né
Siiimmm. É maravilhoso ter a oportunidade de conhecê-los, imaginar como foi sua construção e a vida de quem os ocupou e frequentou.
Adorei ler seu post! Visitei os dois Castillos Pittamiglio. Uma verdadeira viagem
pelo mundo da alquimia
Verdade. Uma verdadeira viagem. Você não imagina os malabarismos que tive que fazer para conseguir visitar os dois museus. Estava em grupo e a programação estava mais ou menos fechada. Mas forcei a barra, fui e não me arrependo.
Que indicação preciosa! Ainda não conheço Montevidéu, mas com toda certeza incluirei os dois Castelos Pittamiglio no roteiro! Fiquei fascinada pela ideia de construções alquímicas transformadas em museus.
É fascinante mesmo, Luana. Fiz de tudo pra conhecer esses dois museus e não me arrependo nem um pouco. Valeu o esforço. E perto do castelo de veraneio tem a cidade de Piriápolis que foi toda planejada por outro alquimista. Tem matéria aqui no blog sobre isso.
Adorei saber sobre esse passeio dos Castelos Pittamiglio, quando estive por lá não tive a oportunidade de conhecer esses museus. Vou ter que voltar.kkkkk
Pois é, vai ter que voltar rsrs
Que legal seu post dos Castelos Pittamiglio, eu adoro esses castelos que são transformados em museus e nos permitem viver uma experiência próxima ao que era
Sim, são muito interessantes mesmo.
Ai se eu tivesse visto esse texto a 2 anos atrás quando visitei a região. Adorei os castelos Pittamiglio.
É bom que você tem motivo pra voltar. E daqui pra frente, não esqueça; antes de viajar, leia o blog ‘lugares de memória’ rsrsr
Apesar de conhecer Montevidéu, não tinha conhecimento sobre os Castelos Pittamiglio: construções alquímicas transformadas em museus. Quero visitar em minha próxima visita ao Uruguai.
Não vai se arrepender. São muito interessantes.
Já visitei esses dois Castelos Pittamiglio. Adorei ler mais sobre a historias desses dois lugares cercados de tantas curiosidades. Ótimo post
É difícil encontrar alguém que já visitou os dois castelos Pittamiglio. Bom saber que você é uma delas.