Auto de Natal: memória, tradição e alegria

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite

Cena do nascimento em Auto de Natal do Grupo Imbuaça - foto-edinah-mary -Tá caindo fulô - BLG LUGARES DE MEMORIAConta a tradição cristã que num tempo mais tarde convencionado como o primeiro ano do calendário cristão, uma estrela no céu anunciou a boa nova: havia nascido o Menino Jesus. Mais de dois milênios depois, o evento ainda é comemorado pelos seguidores da religião católica e seus acontecimentos são lembrados por meio de duas tradições: o Presépio e o Auto de Natal. 

O presépio, todos sabem, pertence ao reino das artes plásticas, e reúne imagens do Deus menino, de seus pais, Maria e José, podendo ser acrescido  dos três Reis Magos Magos, que teriam chegado de longe para visitá-lo, e de animais presentes na manjedoura onde ocorreu o nascimento.  Já, o auto pertence às artes cênicas. É uma representação viva do nascimento, encenada por atores, com diálogos ou narração, música e movimentação cênica. 

Cena de Auto de Natal do Grupo Imbuaça - foto-edinah-mary- Tá caindo fulô - BLOG LUGARES DE MEMORIAEnquanto o presépio tem caráter duradouro e pode ser feito em qualquer escala, o que facilita sua presença todos os tipos de ambientes – de praças a lojas, de igrejas a residências -, e pode permanecer nos locais durante todo o Ciclo Natalino, o auto exige espaço para as encenações e tem dia e hora para acontecer. Talvez por isso, esteja menos presente e seja menos conhecido.  

A história até onde se conhece 

Se o presépio nasceu na Itália, como informa a maioria das fontes, o auto de Natal surgiu na Península Ibérica, isto é, em Portugal e na Espanha. Sua origem está em três tipos de encenações litúrgicas medievais denominadas Milagres, Mistérios e Moralidades. A primeira era usada pela Igreja para contar a vida dos santos, apóstolos e mártires da religião católica, ou ações milagrosas da Virgem Maria; a segunda narrava passagens da vida de Cristo e a terceira tinha o propósito de difundir valores moralizantes. EssasPúblico assiste o Grupo Imbuaça em Aracaju - foto-edinah-mary- Tá caindo fulô -BLOG LUGARE DE MEMORIA encenações não deixaram registros literários. 

Os Autos, por sua vez, constituem um subgênero da Literatura Dramática, e quase sempre estão focados em temas religiosos, mas, ao contrário dos Milagres, Mistérios e Moralidades, não possuem objetivo doutrinário. Além disso, têm um caráter satírico e mesclam o universo sagrado com o profano. 

A palavra auto vem do Latim ‘acto’, que significa ação ou ato, o que está de acordo com sua estrutura, pois os Autos são peças teatrais curtas, com apenas um ato e escritas em redondilhas, ou seja: versos que contém de cinco a sete sílabas. 

É claro que nem sempre um ato segue todas essa especificações, o que dificulta sua definição. Houve época, inclusive, que qualquer peça curta com apenas um ato era considerada um auto.   Cena do Grupo Imbuaça - foto-edinah-mary- Tá caindo fulô - BLOG LUGARES DE MEMORIA

Seja como for, o que parece ter ocorrido é que o teatro litúrgico foi aos poucos recebendo influência dos autos, o que teria feito surgir o Auto de Natal. Além disso, essa narrativa do nascimento foi extrapolando o ambiente das igrejas e ganhando ruas e feiras, o que pode ter determinado a mescla, tão característica do Auto de Natal, entre o tema religioso e a cultura popular. 

Não se sabe exatamente qual foi o primeiro Auto de Natal, nem quando foi encenado, mas há quem localize a primeira manifestação do que viria a ser um Auto de Natal na montagem do primeiro Presépio.  

É o caso da dramaturga, folclorista e professora Aglaé d’Ávila Fontes.  Segundo a professora, “se diz que quando São Francisco montou o primeiro Presépio Greccio, na Itália, eles cantaram e louvaram o Menino Jesus” e Auto-do-menino-do-quilombo-Grupo-Imbuaca-Foto-cedida-pelo-grupo-BLOG-LUGARES-DE-MEMORIAessa junção de narrativa, personagens e música é o que, segundo ela, caracteriza um auto do ponto de vista da montagem teatral.   

O nascimento: um símbolo de esperança 

Os Autos de Natal nem sempre contam a história literal do nascimento de Jesus, especialmente os que foram escritos na atualidade. O que os caracteriza como tal é ter no centro da narrativa um nascimento que simbolize a natividade cristã por trazer esperança para a comunidade. 

 “O nascer de uma criança está sempre ligado ao menino Jesus”, diz a professora Aglaé, que escreveu um Auto de Natal com essas características: “O Auto do Menino do Quilombo”. A peça conta a história de um casal de negros que foge da usina onde escravizados e, ao chegar em um Quilombo, ela dá à luz uma criança, que passa a Cena da Cigana - Grupo Imbuaça - foto-edinah-mary- Tá caindo fulô- BLOG LUGARES DE MEMORIAsimbolizar a esperança daquele povo.  

Mas é comum, também, que o nascimento do Menino Jesus esteja explícito na narrativa, ainda que contado de forma indireta, ou com a ajuda de personagens alheios ao contexto original. Exemplo disso é o Auto de Natal do  Grupo Imbuaça, também de Aracaju, que é narrado por uma cigana.  

Segundo um dos integrantes do grupo, o dramaturgo, ator e diretor de teatro Lindolfo Amaral, a presença da cigana traz a magia das cartas. É também uma forma, segundo ele, “de utilizar uma personagem do Reisado, que é tão tradicional no Ciclo Natalino de Sergipe, para narrar o nascimento do Menino Jesus a partir dos fatos bíblicos do Novo e do Velho Testamentos”.

Além do próprio Auto, o Imbuaça, que atua como grupo de teatro de rua desde 1977, já encenou, também, o  AutoAuto de Natal do Grupo Tá Na Rua - Foto de Pradop nonstagram do grupo - BLOG LUGARES DE MEMORIA do menino do Quilombo, de Aglaé d’Ávila Fontes, citado anteriormente.

Assim como na Idade Média, grande parte dos autos encenados hoje mesclam o sagrado e o profano, são repletos de humor e sátira, e utilizam elementos da Cultura Popular. Em sua maioria, são apresentados na rua, nos dias ou semanas que antecedem o Natal. 

No Rio de Janeiro, o Grupo Tá Na Rua, do diretor Amir Haddad, realiza anualmente um dos autos de Natal mais conhecidos no Brasil. As apresentações costumam ser feitas nos Arcos da Lapa ou na Cinelândia – dois movimentados pontos da região central da cidade. Os autos do Tá na Baile do menino Deus - Foto divulgação - BLOG LUGARES DE MEMORIARua são marcados pela liberdade de expressão tanto nas imagens como nas palavras, e pelo caráter de teatro de rua. 

Já em Recife, a peça “Baile do Menino Deus”, que é apresentada desde 1983, teve início em um palco italiano e depois foi transferido para a praça do Marco Zero, no Centro da cidade. Ao longo dos anos, o auto foi ganhando corpo de grande espetáculo e hoje é considerado uma das peças teatrais mais encenadas do Brasil. Nos anos de pandemia, a festa na praça foi substituída por filmes transmitidos em cadeia nacional de televisão.   

Autos de Natal ou presépios vivos Publico assiste Auto de Natal - foto-edinah-mary-Tá caindo fulô- BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Em alguns lugares, como é o caso de Greccio, cidade onde São Francisco montou o primeiro presépio e de Matera, – ambas na Itália – há encenações anuais do nascimento de Jesus. Mas embora, como nos outros, exista narrativa, personagens e música, essas apresentações não são chamadas de Autos de Natal e sim de Presépios Vivos. O que os diferencia é o fato de contarem literalmente a história do nascimento de Jesus, de não incorporarem a cultura popular e de não terem elementos de humor ou de sátira.

Morte-e-vida-severina-joo-cabral-de-melo-neto- Capa de livro - BLOG LUGARES DE MEMORIAOs Autos de Natal na Literatura 

O escritor que mais representa os autos na Literatura é o português Gil Vicente, autor do famoso Auto da Barca do Inferno, mas em seu repertório nenhuma obra costuma ser identificada como Auto de Natal. Talvez a única que pode ser considerada dessa forma é o Auto dos Reis Magos que conta a viagem de dois pastores, Gregório e Valério, até Belém para visitar o Menino Jesus. 

No Brasil, os autos foram disseminados inicialmente pelo padre José Anchieta, que escreveu obras como “Auto da Pregação Universal” e o “Auto de São Lourenço” com o propósito de catequisar os nativos. Na atualidade, o gênero foi utilizado principalmente por Ariano Suassuna, criou o famoso Auto da Compadecida. Entre os escreveram Autos de Natal está o pernambucano Joaquim Cardozo, com seu “De uma noite de festa”. Mas o Auto de Natal mais conhecido e festejado entre nós foi escrito por João Cabral de Melo Neto e não leva a palavra auto em seu titulo, por isso, muitas vezes não é reconhecido como tal. Trata-se do “Morte e Vida Severina”, que se tornou um dos poemas mais importantes da Literatura nacional.

Notas

Auto de Natal – Brasil (Nordeste / Rio de Jeneiro)/ Portugal / Espanha / Itália – América do Sul e Europa

Texto

Fotos

  • (1,2, 3,4,6 e 9) Auto de Natal do Grupo Imbuaça - Foto de Edinah Mary - Tá caindo fulô
  • (5) Grupo Imbuaça encenando o Auto do Menino do Quilombo - Arquivo Imbuaça
  • (7) Grupo Tá na Rua - Foto de Pradop no Instagram
  • (8) Baile do menino Deus - Divulgação
  • (10) Capa de livro

Consultoria

  • Aglaé d'Ávila Fontes (Dramaturga e diretora de teatro)
  • Lindolfo Amaral (Dramaturgo, ator e diretor de Teatro)
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Maria Consuelo Leite de Melo Sampaio
Maria Consuelo Leite de Melo Sampaio
2 anos atrás

Texto muito interessante e agradável de ler!
Você sempre nos premiando com boas informações.
Parabéns, Sylvinha!

Ma. Elisa
2 anos atrás

Muy interesante contenido sobre un tema q no tenia idea! Felicitaciones Sylbia

Sonia Maria Pedrosa Silva Cury
2 anos atrás

Que legal, Sylvinha. Gosto muito e me emociono com tudo o que diz respeito ao Natal. Seu texto foi providencial!

sidneyjs
sidneyjs
2 anos atrás

Muito legal. Na época certa.

Deyse
Deyse
2 anos atrás

Que lindooooo!! Essa é uma época muito bonita, emocionante. Esse auto de Natal é maravilhoso e cativante, linda, memória, tradição.

Hebe
Hebe
2 anos atrás

Eu sou apaixonada por essa época do ano e os autos de natal me emocionam sempre. Parabéns pelo texto. Adoro suas postagens

Angela Martins
Angela Martins
2 anos atrás

Não sabia que os Autos de Natal possuem sua origem na Península Ibérica. Eu adoro assistir. As celebrações de Natal sempre me emocionam.