Bumba meu boi: uma mescla cultural que virou Patrimônio da Humanidade

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 06/02/2024 por Sylvia Leite

O boi - Foto de Edgard Rocha no site do Iphan - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAO Bumba meu boi já foi perseguido e até proibido, em certo período do século 19, por ser considerado uma manifestação da população negra descendente de escravos, mas há quem diga que em outros tempos e lugares foi incentivado pelos jesuítas como veículo de evangelização. A dança é, na verdade, uma mescla de elementos africanos, indígenas e europeus e sua riqueza cultural acaba de ser reconhecida pela Unesco, que concedeu ao Bumba meu boi do Maranhão o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

Embora o seu primeiro registro tenha ocorrido em Pernambuco – e existam grupos em vários outros estados – é de fato no Maranhão que o folguedo se projeta com maior força. Aliás, folguedo não. Para os maranhenses, o Bumba Meu Boi é um complexo cultural que reúne teatro, dança, música, artesanato e bordado. São mais de 300 grupos espalhados Bumba Meu Boi - Acervo do Iphan - BLOG LUGARES DE MEMÓRIApelo Estado e os maiores chegam a ter em média 150 integrantes.

O ciclo festivo no Maranhão começa no sábado de aleluia com uma temporada de ensaios que se estende até o início de junho. Na véspera de São João – dia 23 – é feito o batismo dos bois e nesse momento os grupos obtém a permissão divina para brincar. Começa aí o período de apresentações que dura até o fim do mês. Entre julho e dezembro, a depender do calendário do grupo, são realizados os rituais de morte do boi.

Elementos religiosos e sobrenaturais do bumba meu boi

O enredo da dança tem várias versões. A mais conhecida, e adotada pelos grupos do Maranhão, baseia-se na seguinte história, considerada por uns como lenda e por outros como fato real: a negra escravizada Catirina, ou Catarina, estava grávida e desejou comer a língua do boi mais precioso da fazenda. Para satisfazê-la, seu marido Chico, ou Pai Francisco, matou o boi, provocando a ira do fazendeiro que, depois de investigar junto a negros e índios, acabou descobrindo o responsável. A única forma de salvar Pai Francisco do castigo do fazendeiro era fazer o boi ressuscitar e o milagre foi alcançado por pajés com a ajuda de seres sobrenaturais.Bumba Meu Boi no Maranhão - Foto de Edgard Rocha no site do Iphan - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A história é contada com vários personagens entre os quais estão Pai Francisco, Catrina (normalmente representada por um homem vestido de mulher), o Dono da fazenda (também chamado de Amo) e o próprio Boi que tem uma característica interessante – a pessoa que o representa recebe o título de Miolo. Além deles há personagens que podem ser encenados por uma ou mais pessoas, a depender do tamanho do grupo, e são: Índio, Índia, Vaqueiro, Caboclo de Pena, Caboclo de Fita e Mutuca. Esse último é encarregado de distribuir cachaça com os espectadores para que eles não durmam durante as apresentações.

O sincretismo aparece em vários aspectos, com maior ou menor incidência das três culturas envolvidas na manifestação, mas vale ressaltar a religiosidade indígena, representada pelo pajé que evoca seres sobrenaturais, e a devoção a três santos católicos – São João, São Pedro e São Marçal. Estão presentes, ainda, elementos de cultos religiosos afro-brasileiros – como o Tambor de Mina e Terecô -, por meio da correspondência entre os santos juninos e os orixás, voduns e encantados.Bumba Meu Boi no Maranhão - Foto de Universidade de Brasília,- BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

A diversidade e os sotaques

No Maranhão, a diversidade cultural que compõe o Bumba meu boi não se limita aos aspectos internos da celebração. Há, ainda, as variações externas que permitem a classificação dos grupos em diferentes conjuntos denominadas sotaques.

Originalmente, os sotaques decorriam das diferenças culturais entre as nações – grupos étnicos de negros que foram trazidos para o Brasil -, mas, com o passar do tempo, cada um deles foi seguindo seu próprio caminho. O de Orquestra, por exemplo, tem influência europeia, com instrumentos de sopro e de corda. É considerado o sotaque mais aberto a inovações, inclusive com aproximações da estética do carnaval, e reúne o maior número de grupos.

Já o mais antigo e talvez mais próximo das origens, é o Sotaque de Zabumba, originário do Município de Guimarães, região que reúne comunidades remanescentes de quilombos. Entre de suas principais características estão os ritmos africanos – marcadosBumba Meu Boi no Maranhão- Foto de Edgard Rocha no site do Iphan - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA por instrumentos de percussão como zabumba, maracá e pandeirinho – e as toadas, que relembram o lamento dos negros nas senzalas. O mais original entre eles talvez seja o Sotaque de Costa de Mão, chamado assim porque sua música é tocada com a parte de trás dos dedos, em pandeiros pendurados no pescoço. O surgimento desse sotaque deve-se aos danos que o trabalho da roça causava nas mãos dos trabalhadores. Como não conseguiam usar as palmas cheias de calos, inventaram uma nova forma de tocar a percussão. Talvez por ter uma cadência mais lenta, e menos animada, o sotaque tem um número menor de grupos e vive sob a ameaça de extinção.

A diversidade é tamanha que há espaço até para um sotaque ‘importado’ de outro Estado. É ocaso do Sotaque de Matraca, que pode ter sido trazido do Piauí por vaqueiros fugidos da seca. Mas mesmo que a suposição seja verdadeira, o Sotaque de Matraca já virou maranhense ao incorporar o pandeirão, que não existe no Piauí.

Toada Amazônica - Foto de Por CulturaGovBr em Flickr- BLOG LUGARES DE MEMÓRIAE se o Sotaque de Matraca veio de fora, o da Baixada, ou de Pindaré, fez o caminho inverso e deu origem ao Boi de Parintins, no Amazonas. Uma de suas principais características é o personagem Cazubá, que tem uma conotação mística capaz de beneficiar os brincantes e o público.

O Sotaque da Baixada é talvez o mais luxuoso de todos, com roupas bordadas à mão, cobertas por lantejoulas e canutilhos, e essa característica foi passada ao Bumba meu boi de Parintins.

O boi de Parintins

O Bumba meu boi foi levado à Amazônia por maranhenses que chegaram à região atraídos pela extração da borracha e lá absorveu tantos traços da cultura local que passou a se chamar Toada Amazônica.

Com o tempo, a palavra ‘boi’ foi resgatada e hoje existem duas grandes agremiações que, juntas, realizam um evento popular de alcance internacional. O Festival Folclórico de Parintins consiste na disputa entre o Boi Garantido, ou coração vermelho, e o Toada Amazônica - Bianca Paiva em Agência Brasil - BLOG LUGARES DE MEMÓRIABoi Caprichoso, ou estrela azul.

Durante três dias, no último fim de semana de junho, os dois grupos duelam em um lugar construído especialmente para a disputa, que ficou conhecido como Bumbódromo, e tem capacidade para 35 mil espectadores. A disputa é realizada ao som de ritmos locais e com enredos inspirados em mitos amazônicos.

De onde vem o boi?

Não se sabe ao certo qual é a origem do Bumba meu boi. A julgar pelo primeiro registro, pode ter surgido em Pernambuco, no século 17, durante o domínio holandês, e talvez tenha relação com o ciclo do gado, ocorrido mais ou menos no mesmo período.

Alguns pesquisadores consideram a hipótese de que história de Catrina e Pai Franciso tenha sido inspirada em um conto ibérico segundo o qual um certo fazendeiro tinha um vaqueiro que não mentia e, diante do questionamento de alguns amigos, apostou com eles que o rapaz nunca iria decepcioná-lo.Menina dança o Boi Bumbá - Foto de Marcelo Camargo em Agência Brasil - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Como tinha certeza da lealdade do empregado, o fazendeiro enviou a própria filha à sua casa para tentar seduzi-lo. Em sucessivas visitas, a moça, sem se identificar, mostrou partes do corpo ao vaqueiro e todas as vezes que ele tentou se aproximar, ela impôs uma condição: ele deveria matar o boi preferido do fazendeiro e fazer um pirão com o coração e o fígado,para eles comerem juntos. A sedução chegou a tal ponto que o vaqueiro não resistiu e atendeu ao pedido da moça.

Mesmo assim, o fazendeiro ganhou a aposta porque o vaqueiro, apesar de ter caído na tentação de satisfazer o desejo da moça, mostrou que era confiável. Além de não ter tocado nela, manteve sua tradição de não mentir – contando toda a verdade ao fazendeiro – e acabou sendo duplamente recompensado: foi perdoado pela morte do boi e teve autorização para casar com a filha do fazendeiro que, àquela altura, havia se apaixonado por ele. A história é contada no Brasil em versos de cordel atribuídos ao escritor paraibano Francisco Firmino de Paula.1

Bumba meu boi – várias cidades – Maranhão e outros estados – Brasil

Texto

Fotos

  • (1, 3 e 5 ) Foto Edgar Rocha - Site do Iphan
  • (2) Acervo do Ipham
  • (4) Universidade de Brasília, - Teodoro Freire bumba meu boi honoris causa - 22out12 - Emília Silberstein-26, CC BY 2.0

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Sidney Menezes
4 anos atrás

Excelente. Por mais que já tenha acompanhado, hoje o detalhamento foi exemplar. Beijos.

Marcelo
4 anos atrás

Matéria fantástica, riquíssima, parabens Silvinha

sonia pedrosa cury
4 anos atrás

Quanta história, quanto simbolismo por trás do colorido do boi bumbá…lindo demais! Parabéns, Sylvinha!
sonia pedrosa

Unknown
4 anos atrás

Já assisti ao ensaio do Boi na Maranhão. Muito lindo.

Fabíola Moura
3 anos atrás

Que mergulho cultural e na história do bumba meu boi, texto super completo e elucidador. Ainda não tive a chance de ver uma apresentação ao vivo, imagino que deve ser lindo demais!

Angela Beatriz Camara Martins
3 anos atrás

Que lindo esse post! Não sabia que a história do Bumba meu Boi era tão interessante. Merece ser patrimônio da humanidade.