Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Por vezes surge uma dúvida: o lugar de memória é o espaço físico onde ocorrem fatos dignos de serem lembrados ou os elementos que o qualificam como tal? Isso ocorre com a Estação Biológica de Canudos 1 e a Reserva Ecológica Raso de Catarina2 , moradas da arara-azul-de-lear, A espécie caminhava para a extinção até ser localizada por cientistas e sertanejos que deram início a uma luta por sua preservação. São as iniciativas de preservação ou a própria arara e toda a sua história que constituem o lugar de memória? Talvez seja tudo isso junto.
Nas duas áreas de proteção, localizadas no Raso da Catarina, onde se deu toda a luta de Canudos e de Antônio Conselheiro, pesquisadores e funcionários dedicam-se a pesquisa, educação ambiental e, principalmente, à fiscalização das áreas de moradia da arara. A primeira está aberta à visitação e mantém um alojamento para observadores de aves e curiosos. Na segunda, só é possível entrar com objetivos educacionais ou científicos e depende de autorização. Juntas, elas estão salvando a arara-azul-de-lear da extinção e preservando o equilíbrio da caatinga – o único bioma exclusivamente brasileiro.
O mistério secular da arara-azul-de-lear
A história da arara-azul-de-Lear pode soar, inicialmente, como assunto para ambientalistas e observadores de aves. Um passo adiante, vemos o contraste de seu corpo azul com a aridez do sertão e, no mínimo, acrescentamos aí um interesse estético. Seduzidos com a beleza e com o exotismo, acabamos fisgados pela curiosidade e o que encontramos é uma saga de resistência que vai além da sobrevivência de uma espécie misteriosa. É a luta do sertanejo, apoiado por ambientalistas, para manter vivos a sua terra, a sua cultura, o seu habitat. Além disso, envolve interessantes personagens .
Por aproximadamente 150 anos, pesquisadores de diversos países esquadrinharam o território brasileiro em busca dessa espécie rara registrada em 1832 por um jovem escritor inglês do estilo ‘nonsense’ que, para conseguir pagar as contas, trabalhava como ilustrador, desenhando aves silvestres levadas das Américas para a Europa.
Edward Lear, segundo se conta, não tinha qualquer conhecimento sobre as aves que retratava e, talvez por isso, nada anotou além de um nome científico provavelmente informado pelo autor da encomenda: Macrocercus hyacintinus.
Um desenho que intriga e mobiliza gerações
Quando fez a ilustração, Lear tinha apenas 19 anos. Pouco tempo depois, ele e o desenho da arara seguiram rumos distintos. Lear tornou-se conhecido por seus escritos absurdamente cômicos e por consolidar um tipo de poema batizado como limerick. Sua obra teria influenciado Lewis Carroll e, tempos depois, James Joyce. No século 20, serviu como base para a construção dos personagens principais do filme Laranja Mecânica e foi citada pelo Beatles na música Paperback writer.
Já o desenho feito por ele ganhou vida própria inspirando e instigando zoólogos, biólogos e amantes das aves. Entre os que se encantaram pelo tema estava o zoólogo francês Charles Lucien Bonaparte, sobrinho do histórico Napoleão, para quem a arara azul com gota amarela nos olhos era uma espécie particular – não se tratava de uma simples variedade das já conhecidas nem do resultado de um cruzamento entre elas – e decidiu batizá-la como Anodorhychus Leari em homenagem ao ilustrador.
Na época, os estudiosos europeus já tinham acesso a exemplares vivos, mas apenas como resultado do tráfico – que fornecia aves para zoológicos e coleções particulares da Europa – não conseguindo, portanto, descobrir de onde ela era retirada. A busca se transportou para o Brasil e várias expedições foram feitas sem qualquer resultado. O movimento ganhou a adesão de Olivério Mário Oliveira Pinto, autor do livro Catálogo de Aves do Brasil , que encontrou apenas um exemplar em cativeiro. A uma certa altura, duvidou-se oficialmente da existência da arara azul, mas a obstinação de outro pesquisador, o alemão Hellmut Sick, o levou até o esconderijo da ave.
Encontrada e protegida pelos conterrâneos
Sick vivia no Brasil desde 1942, e já fazia quase vinte anos que andava atrás da arara azul mas, nessa escalada final, ele entrou apenas com fotos, desejo e obstinação.Quem sabia os passos a serem dados até o santuário das aves misteriosas eram os sertanejos que viviam por ali: primeiro, foi o velho caçador Maninho, que procurou o jovem tocador de gado Aderbal, que lembrou de um amigo do pai, o velho Eliseu, e assim, finalmente, a ave misteriosa foi encontrada. Restava saber o que fazer para protegê-la e lutar por sua preservação.
Ainda há muito a fazer
As soluções estão vindo aos poucos: os paredões de arenito da Toca Velha, usados pela arara azul como dormitório e local de reprodução, foram progressivamente comprados pela Fundação Biodiversitas, criadora e administradora da Estação Biológica de Canudos. Outra extensa área de moradia da espécie pertence à Reserva Ecológica Raso da Catarina. Alguns dos sertanejos envolvidos em sua busca passaram a trabalhar como guardas ambientais e foram seguidos por seus filhos e outros conterrâneos que surgiram pelo caminho. Tudo isso protege as aves de caçadores e traficantes. Se quando foram encontradas elas não chegavam a cem, hoje são mais de mil.
O que ameaça a espécie, agora, é a fome. E a luta atual é pela preservação da palmeira que dá um fruto conhecido como Licuri ou Ouricuri, seu principal alimento. Essa árvore vem sendo dizimada pelo desmatamento, pelas queimadas, pela movimentação do gado e pelo bode, com quem as araras precisam disputar os coquinhos.3
Notas
- 1 Estação Biológica de Canudos - Fundação Biodiversitas
- 2 Reserva Ecológica Raso de Catarina- ICM Bio
- 3 Você acaba de ler a matéria Canudos 2. Leia também Canudos 1, que conta a história do Arraial de Canudos e de Antônio Conselheiro. Leia, ainda, aqui no blog, matérias sobre outros lugares, monumentos ou museus do sertão do Nordeste: Lajedo do Pai Mateus / Piranhas / Ilumiara Jaúna / Museu do Sertão / Museu de Xingó / Pedra do Ingá
Fotos
Referências
- Projeto de preservação e recuperação da área de alimentação da arara azul: Jardins da Arara de Lear
Livros
- Jardins da Arara de Lear, de João Marcos Rosa e Gustavo Nolasco
Esplêndido!
Valeu, Thati! Beijo
Elas quase
chegaram a extinção.
É verdade. E ainda não estão livres disso.
Meu Deus, coisa mais linda!!!
Linda mesmo. Um azul indescritível e uma história de arrepiar!
Linda história, Linda Arara, Linda caatinga e muito interessantes os personagens humanos de varios paises e culturas envolvidos na odisseia. Com certeza o Conselheiro iria proteger as Araras, gente de Deus, contra o Maligno, os traficantes de animais. Ele também iria converter muitos cacadores para a causa do Bem e transformar a vida desses homens, de matadores para protetores dessa Ave filha do Sertao. ������ Augusta Leite Campos
Que texto lindo amigo, não consigo não me emocionar o carinho pelo sertanejo e pela nossa espécie rara
Valeu, Gusta. E obrigada por ter me apresentado a Gustavo que me cedeu suas belas fotos para enriquecer a matéria. Beijo
Obrigada pelo comentário. Gostaria muito de saber quem escreveu. Um abraço, seja quem você for rsrs.
Lindo, Sylvinha! Adore!
Valeu, Soninha! beijo
Texto maravilhoso, Parabéns!
Obrigada, Gilca! beijo
Show. Super interessante. Como se diz na Marinha “ Bravo ZULU Silvinha “
Obrigada, querido!
Lindo saber sobre a Arara Azul. Detalhes perfeitos e bem colocados. Como sempre, a cada quinta feira, conheço mais lugares e fico encantada. Obrigada Sylvia.
Eu que agradeço, maria Helena, por sua constância aqui no blog. Beijos
Muito obrigada por dividir suas viagens.
Eu que agradeço. Pela leitura e pelo comentário. Da próxima vez deixe seu nome.
Achei emocionante, elucidativo e oportuno o texto-história sobre a quase mística Arara azul de Lear. Parece- me que texto foi escrito antes da real e perigosa ameaça a Arara de Lear que a instalação do projeto de energia eólica já liberado pelo Inema, muito mais preocupante do que a diminuição do coco licuri na região.