Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
A cidade de Khiva, no Uzbequestão, foi historicamente um dos pontos da Ásia Central com maior presença da tradicional cultura islâmica e, ao mesmo tempo, tornou-se o berço de conhecimentos que podem ser considerados precursores da computação atual. A explicação para essa coexistência aparentemente díspar é simples: na Idade Média, alguns pensadores islâmicos contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento da Matemática e um deles – al-Khwarizm (ou Aucuarism)1 – nasceu e viveu nessa pequena cidade amuralhada.
Khiva é um oásis localizado entre os desertos Kyzyl kum e Karakum que a partir do século 10 tornou-se um importante ponto de descanso da Rota da Seda. Em seus caravançarais pousavam milhares de comerciantes que voltavam da China em direção à Pérsia levando, entre outros produtos, tecidos, porcelanas, papel e especiarias.
Talvez por ser muito pequena, e não tão importante como Samarkanda2 e Bukhara, teve seu centro histórico, conhecido como Ichan Kala (que significa cidade interior), praticamente todo preservado3, razão pela qual foi a primeira cidade do Uzbequistão a receber da Unesco o título de Patrimônio Mundial da Humanidade.
Khiva – um museu vivo a céu aberto
Andar por Khiva é como visitar um museu no meio do tempo. São mais de 50 monumentos, em uma área de 260 m², protegida por uma enorme muralha de tijolos aparentes com quatro portas de entrada – uma em cada lado de sua estrutura retangular. Na porta ocidental está a imagem do matemático al-Khwarizmi, considerado o avô da computação.
O contraste entre as estruturas de tijolo e a decoração em mosaicos coloridos de argila vitrificada, faz de Khiva uma paisagem inconfundível. É uma combinação que nos faz lembrar a terra, na crueza dos tijolos, e o céu, no azul brilhante dos mosaicos.
Um dos detalhes mais impressionantes em sua arquitetura está nos azulejos que revestem as paredes internas de alguns monumentos – em parte pela beleza das cores e dos padrões geométricos, ou arabescos, mas, principalmente, pela maneira surpreendente de fixação das peças que estão presas por tachas de metal.
Os prédios que no passado serviram como palácios, madrassas, mesquitas e até casas de moradores comuns, hoje estão ocupados principalmente por museus e oficinas de artesanato, especialmente de entalhe em madeira, uma das especialidades locais.
Quem dispõe de tempo e paciência, pode sentar numa dessas oficinas para apreciar alunos que conseguem trabalhar em público, usando martelos e cinzéis de forma precisa e sem perder a concentração.
Depois, se quiser admirar trabalhos prontos, é só procurar os monumentos da cidade que são fonte de inspiração para os artesãos atuais e testemunham a antiguidade dessa técnica preservada ao longo de séculos. Sem dúvida, o exemplo mais significativo está nas 112 colunas de madeira de olmo que sustentam o teto da sala de orações na Mesquita Djuma (ou Mesquita da Seta-feira) – principal templo da cidade, construído no século 104.
A história envolta em lendas
Não se sabe ao certo como nem quando Khiva surgiu, mas várias lendas, que ainda hoje são contadas pelos moradores, trazem em comum alguma referencia ao herói bíblico Noé – aquele que, segundo a Bíblia, construiu uma arca a mando de Deus para salvar todas as espécies da Terra de um dilúvio.
Segundo uma das versões, Noé teria chegado ao local em caravana e, para matar a sede dos seus companheiros de viagem, e a sua própria, teria cavado um poço que deu origem à cidade. A água fresca desse poço teria um sabor tao especial que mereceu dele a observação “Khey vakh!” – expressão que significa “que prazer” e teria derivado para Khiva.
Outra versão conta que foi Sem, o filho mais velho de Noé, quem cavou o poço, tornando-se, assim, o fundador de Khiva.
Há lendas também sobre o Kalta Minor (ou minarete curto) – um monumento inacabado que é considerado o símbolo de Khiva. A obra foi iniciada em 1852, pelo governante Mohammad Amin Khan, e interrompida três anos depois, em decorrência de seu assassinato. No projeto original, a torre deveria ter uma altura entre 70m e 80m, mas acabou ficando com menos de 30m. Diz a lenda que o desejo de Amin Khan era erguer um minarete tão alto que lhe permitisse avistar Bukhara – uma das cidades das mil e uma noites – que fica a 400 km dali.
O avô da computação
Em meio às lendas e às tradições, Khiva teve seu período de progresso intelectual. Era a época da Casa de Sabedoria (ou Casa do Saber) – nome dado à Biblioteca Real de Bagdad, onde inúmeros eruditos trabalhavam sob o comando de califas abássidas e entre eles estavam pelo menos dois matemáticos nascidos em Khiva: al-Biruni e al-Khwarizm.
Como ocorria com a maioria dos sábios antigos e medievais, ambos realizaram estudos em diversas áreas. A al- Biruni são atribuídos 146 livros, dos quais 95 são dedicados à matemática, à astronomia e a assuntos relacionados com as duas áreas. Al-Biruni teria contribuído ainda para o desenvolvimento da Física, Geografia, Farmacologia, Mineralogia, Antropologia e também para a História das Religiões.
A al-Khwarizm atribui-se a criação da Álgebra. Seu “Livro da Restauração e do Balanceamento”, escrito em árabe por volta do ano 820, apresenta resoluções para dois tipos equações (lineares e quadráticas) que seriam os alicerces desse ramo da matemática.
Os conhecimentos de al-Khwarizm seriam precursores, também, da criação do algoritmo – uma sequência de ações que devem ser executadas para solucionar um problema e que constitui a estrutura de um programa de computador. Embora haja várias versões para a etimologia da palavra algoritmo, há quem afirme que se trata de uma derivação da forma latina do nome de al-Khwarizm.
Além do saber e das lendas
Em paralelo à charmosa memória da Rota da Seda, dos monumentos decorados com mosaicos e azulejos, dos estudos de matemática e da tradição artesanal – que além do entalhe em madeira, inclui a tecelagem, cerâmica e bordados – Khiva teve um história de instabilidade.
Foi invadida por diversos governantes como Alexandre, o Grande, Gêngis Khan e Amir Timur. Os últimos a chegar foram os russos que dominaram a região por mais de um século e, nesse período, Khiva foi aneada ao Uzbequistão.
Em 1991, com o fim da União Soviética, o Uzbequistão tornou-se independente e Khiva passou a receber viajantes do mundo inteiro interessados na beleza arquitetônica da cidade e em suas tradições.5
Notas
- 1 Leia, neste log, matéria sobre Samarcanda.
- 2 Abū ʿAbd Allāh Muḥammad ibn Mūsā al-Khwārizmī
- 3 Poucos monumentos são da época de sua fundação, mas o conjunto preserva o estilo original.
- 4 A mesquita foi reformada no século 18, mas as colunas oram aproveitadas da primeira construção.
- 5 Leia, aqui no blog, matéria sobre outros oásis da Rota da Seda: Samarcanda / Bukhara / Merv Antiga / Mausoléu de Yasawi
Khiva – Khorezm – Uzbequistão – Rota da Seda – Ásia Central
Fotos
- (1, 2, 3, 7, 8) - LoggaWiggler / Pixabay
- (4, 5, 6) - Sylvia Leite
Adorei… E como voltar a Khiwa, agora com detalhes que eu não havia notado antes, talvez pelo ancantamento de tudo que vi, na cidade onde também viveu Nasrudin…
Lindo e interessantíssimo. A cada semana uma nova.hstotia de conhecimento. E sério.que nosso Mula nasceu lá ?
Legal saber que alguém que foi lá se identificou com a matéria. Sinal de que consegui passar a mensagem rsrs Obrigada, Leandro, beijos
Sylvia seu texto é uma aula de cultura geral. Parabéns
Mais uma matéria fascinante, Sylvinha!
A beleza e a genialidade da cultura islâmica se manifestam em Khiva.
Abraços
Val Cantanhede
Obrigada, Val. Bom constatar que é uma leitora assídua. Abraços.
Encantada com seu texto. Vontade de arrumar a mala e ir logo.
Quando a fé se faz arte anestesia nossa doença terminal, imortaliza a vida!
Que bonito! Só faltou assinar. Não esqueça de fazer isso da próxima vez, ok? E obrigada pelo comentário.
Obrigada, Júnia. É muito bom saber que meu relato provocou uma mobilização. É o melhor retorno que eu posso ter. Toda quinta tem postagem nova aqui no blog. Volte sempre!
Não conhecia. Muito interessante.
Muito. Fiquei encantada. Mas com quem estou falando? da próxima vez deixe seu nome, ok? Abraço
Delícia!
É mesmo. Adoraria voltar, mas a lista é grande o o tempo é curto.
Adoro os detalhes das construções islamicas! Sempre cheias de detalhes e cores! Quero me aventurar mais por esses países em breve
Conheço apenas alguns, mas já foi o suficiente para me deixar fascinada.
Não sabia que Khiva era berço da computação. Muito interessante. E lindas obras da cultura islâmica.
Lindas mesmo, Ângela. AS fotos não conseguem mostrar o quanto são lindas.
Khiva parece ser uma cidade impressionante. Fiquei curiosa para ver os azulejos assentados com taxas de metal, com certeza deixam o visual bem diferente do que estamos acostumados. Muito interessante saber mais sobre o Uzbequistão.
Esses azulejos são lindos. Uma das coisas mais bonitas que já vi por esse mundo afora. Aliás, a Rota da Seda é toda encantadora. Tem que ir.
Eu não vejo a hora de conhecer o Uzbequistão, tem sido meu sonho por muito tempo! Acabei de incluir Khiva no meu roteiro graças ao seu blog. Obrigada pelas informações!
Ah, legal! Adoro quando as matérias do blog ajudam quem vai viajar. Se tiver um tempinho a mais, considere conhecer o Turcomenistão que fica ao lado.
Que post bacana sobre Khiva, te confesso que não sabia que lá era o berço da computação. Bem interessante também a parte cultural né? Parabéns pelo post, adorei.
Obrigada Hebe, pela leitura e pelo comentário. Interessante descobrir essas coisas não é? Além de tudo, Khiva é uma cidade linda.
Gente que incrível que lugar surpreendente, fascinante. Eu não conhecia Khiva, esse museu a ceu aberto. Muito interessante saber sobre esse ícone da cultura islâmica e berço da computação.
Acho que pouca gente ouviu falar em Khiva. As cidades mais conhecidas do Uzbequistão são Samarcanda e Bukhara. Aliás, tem matéria sobre as duas aqui no blog. Se quiser da uma olhada …..
Nesse próximo ano vou conhecer a Ásia Central e estou amando suas dicas. Khiva vai entrar no roteiro com certeza, que cidade impressionante! Não vejo a hora 🙂
Khiva é realmente linda. E o blog tem matérias sobre outros lugares muito legais no Uzbequistão, Turcomenistão e Cazaquistão. Dê uma olhadinha. Os links estão ao final da matéria de Khiva.
Acabo de retornar do Uzbequistão e fiquei absolutamente encantada com Khiva e seus mistérios. Seu post está excelente e realmente captou o espírito desse ícone do mundo islâmico.
Que bom que você gostou e concordou com a abordagem. Obrigada pelo comentário. Eu também fiquei encantada com Khiva.