Atualizado em 28/04/2025 por Sylvia Leite
Um pequeno pedaço de terra denominado Fazenda Menino, na zona rural do município de Arinos, no Noroeste de Minas, e um calhamaço de documentos arquitetônicos – como memorial descritivo, plano diretor, entre outros – são os únicos resquícios materiais de um sonho acalentado pelo empresário Max Hermann e colocado no papel por ninguém menos que o famoso arquiteto Oscar Niemeyer: a Cidade Marina.
O que chamamos hoje de Fazenda Menino é na verdade uma pequena parte dos 90 mil hectares da propriedade original onde Hermann e Niemeyer pretendiam instalar uma espécie de ‘Eldorado’ sertanejo. Sua atual proprietária é Geralda de Brito Oliveira – uma ex-funcionária de Hermann, conhecida como Vó Geralda, principal testemunha viva dos acontecimentos que sucederam à tentativa de criação da sonhada cidade. Mas antes de falar sobre isso, é preciso dar uma olhada no conteúdo e na história do projeto.
Cidade Marina: a semente que não vingou
Caso tivesse sido concretizada, Marina seria a única cidade projetada por Oscar Niemeyer.1 A ideia era criar um centro urbano autossustentável, dotado de um cinturão agrícola capaz de abastecer não apenas a sonhada cidade, como toda a região, inclusive a nova capital federal, Brasília, que começaria a ser construída no ano seguinte.
O projeto recebeu o nome de Cidade Marina em homenagem à mulher de Hermann e deveria ser norteado pelo conceito de habitação coletiva integrada à natureza. A nova cidade teria jardins e parque projetados por Burle Marx, além de escolas, hospitais, teatros, cinemas, boates, piscinas e clubes recreativos. Isso, é bom lembrar, na década de 1950.
A fim de reduzir os períodos de deslocamento e aumentar o tempo de lazer, a distância entre as residências e os locais de trabalho dos moradores deveriam ser tão curtas que pudessem ser percorridos em no máximo 15 minutos a pé.
A Cidade Marina teria capacidade inicial para cinco mil habitantes, mas no projeto já estava prevista uma grande expansão que poderia levá-la a abrigar até 200 mil pessoas. Seu abastecimento, assim como o de todo o entorno – o que incluiria a nova capital do país -, seria garantido por um cinturão agrícola composto por mil propriedades rurais.
Uma década de tentativas
Quando o projeto da Cidade Marina começou a ser divulgado pela imprensa, em julho de 1955, Brasília ainda era uma promessa e os brasileiros não sabiam se o presidente Juscelino Kubitscheck conseguiria concretizá-la. Nesse contexto, a ideia de Hermann e Niemeyer teve grande repercussão como promessa de interiorização e desenvolvimento – que eram temas centrais do governo de JK – chegando a ser comparada, do ponto de vista desenvolvimentista, com as cidades de Londrina e Marília – exemplos de crescimento longe do litoral.
A polêmica levantada por alguns veículos de imprensa – sob o pretexto de que o projeto da Cidade Marina estava levando especulação imobiliária ao sertão e fazendo promessas duvidosas sobre a rentabilidade do negócio – foi a primeira barreira enfrentada por Hermann e Niemeyer. A maior oposição, segundo levantamento feito pelo professor universitário Gabriel de Oliveira, vinha do jornal Tribuna da Imprensa e da revista Marquis, que, como registra o pesquisador, eram ligados ao Clube da Lanterna – uma organização liderada pelo jornalista Carlos Lacerda, opositor de Getúlio Vargas e de Juscelino.
Uma matéria da Tribuna da Imprensa, intitulada “Vieira patrocina Brasília-caçula”, e publicada em 1957, denunciava o fato de alguns parlamentares da base governista serem acionistas da empresa Colonizadora Agrícola e Urbanizadora S.A. – conhecida pela sigla CAUSA – responsável pelo gerenciamento e comercialização do empreendimento, entre eles o então líder na Câmara, deputado Vieira de Melo.
Já a revista Marquis, publicou quatro matérias nas quais classificava a Cidade Marina como “grossa negociata” e “marmelada”, e acusava os tais parlamentares de haverem se envolvido no projeto com o intuito de enriquecer. Tanto a Marquis como a Tribuna, posicionavam-se também, segundo o dossiê de Gabriel de Oliveira, contra a construção de Brasilia.
Embora, segundo a pesquisa do professor Oliveira, essas denúncias não tenham alcançado repercussão em outros veículos de imprensa, e não se possa mensurar o seu impacto na opinião pública, o fato é que as menções à Cidade Marina na imprensa brasileira foram tornando-se escassas, voltando à tona somente em 1960, com o anúncio da inauguração de Brasília.
Naquele ano, uma edição histórica da revista Manchete, que anunciava a inauguração de Brasília, exibia em suas quatro páginas centrais material publicitário sobre a Cidade Marina. Nela, a CAUSA apresentava uma novidade: as terras da Colônia Agrícola Menino seriam administradas em sistema de condomínio, pelo qual os proprietários teriam uma estrutura composta por mão de obra e assistência técnica, ambos remunerados pelas taxas condominiais. O projeto era inspirado nas propostas de reforma e desenvolvimento agrário que estavam em alta naquele momento e ganhariam maior força durante o governo de João Goulart, mas se tornariam motivo de perseguição a partir do governo seguinte.
A mudança no contexto político
Os erros e contratempos que levaram a Cidade Marina a não vingar certamente ainda não foram totalmente identificados, mas a mudança de governo e de perspectiva política ocorrida a partir do golpe de 1964 talvez possa ser considerada a causa final desse insucesso.
Como ressalta Gabriel de Oliveira, “o pensamento político de Oscar Niemeyer, e também o do então diretor geral da CAUSA, Max Hermann, ambos ligados ao Partido Comunista, e de diversos outros atores e acionistas da empresa – alguns dos quais membros de partidos ou deputados da base aliada de Juscelino Kubitschek na década anterior – conflitavam explicitamente com o regime que se instalava a partir de 1964.”
A última menção à Cidade Marina na imprensa nacional teria ocorrido em abril de 1965, na revista Módulo, editada por Oscar Niemeyer e dedicada principalmente aos temas de arquitetura e Urbanismo. No mesmo ano, segundo o dossiê de Gabriel de Oliveira, a sede da revista foi invadida e parcialmente destruída pela polícia do Rio de Janeiro.
O lado sertanejo da história
Pouco depois disso, em 1968, começava a história de Geralda de Brito Oliveira na Fazenda Menino. A Vó Geralda, como é conhecida na região, chegou ali em um carro de bois, para dar aula na escola rural, e acabou se tornando administradora da fazenda. Na época, o projeto da Cidade Marina já havia fracassado e Hermann arrendava o que sobrou das terras a pequenos criadores de gado.
Durante alguns anos, a Vó Geralda cuidou dos arrendamentos. “Quando alguém queria criar gado, vinha aqui e eu fazia a ficha, um cartão, declarava a pessoa como criador e podia ocupar 15, 20, 30 hectares de terra”, contou a ex-professora em entrevista a Renata Ribeiro e Isla Nakano, co-autoras do seu livro autobiográfico. E acrescentou: “Eu nunca aluguei uma área grande, não gostava de mexer com gente rica”.
Com o passar do tempo, Hermann rareou suas idas à fazenda. Por outro lado, começaram as visitas de policiais militares que procuravam por ele e queriam investigar denúncias de que ali funcionava um foco de resistência comunista. Durante três meses, a Vó Geralda recebeu visitas quinzenais dos militares. Ela conta que foi separada dos filhos, interrogada e ameaçada. Quando perceberam que a ex-professora não sabia nada sobre Hermann e muito menos sobre comunismo, pararam de investiga-la. “Só que depois disso eu não podia mais ficar aqui, tive que ir embora”.
Enquanto a Vó Geralda lutava para sustentar os sete filhos trabalhando em Brasília, a sede da fazenda foi saqueada e passou a ser usada como abrigo de gado. Max Hermann foi preso duas vezes e por razões diversas – incluindo invasões de posseiros e de grandes proprietários – acabou perdendo quase tudo – inclusive uma terra que ele havia vendido informalmente a Vó Geralda – restando somente a sede semidestruída e uma pequena área no seu entorno. Depois de anos sem notícias de sua antiga funcionária, ele conseguiu encontrá-la e, a fim de honrar e legalizar o negócio feito com ela, passou para seu nome o que restou da Fazenda Menino.
A Fazenda Menino hoje
O fragmento da Fazenda Menino que coube a Vó Geralda compreende apenas uma pequena fração de sua extensão original, mas carrega consigo a história do sonho que não chegou a ser realizado. Mesmo sem entender direito o significado do que se passou antes de suas chegada à Fazenda Menino, a Vó Geralda se dispõe a contar o que viveu, a partir do momento em que foi convidada por Max Hermann para alfabetizar as crianças da região.
Há cerca de uma década, ela repete sua história pelo menos uma vez por ano, sempre no mês de julho, quando aproximadamente 80 caminhantes acampam em seu quintal. São integrantes do Caminho do Sertão – uma caravana sócio-eco-literária que percorre em uma semana, 192 km entre o distrito de Sagarana, em Arinos, e o Parque do Grande Sertão Veredas, na Chapada Gaúcha – ambos no Noroeste de Minas.
Após o jantar, preparado por ela, e servido na varanda dos fundos, os caminhantes se aboletam na sala repleta de camas e ouvem a Vó Geralda por horas a fio. Entre relatos pessoais – como os problemas com o marido e fatos relacionados a filhos e netos -, a ex-professora rural relembra sua convivência com Hermann e os visitantes que talvez fossem alguns dos procurados pelos policiais que invadiram a fazenda na década de 1970.2
A hora mais esperada é quando a Vó Geralda enfim relata o ápice de sua experiência com a repressão. O dia em que pensou que fosse morrer. “Fiquei em pé. Eles deram cada tiro… Chegava estrondar. Eu abri o olho e não via nada, nada, nada. Escuro, mais escuro do que a noite. Daí eu pensei: É, agora eu não sei nem onde a bala pegô”3. Não atiraram para acertar. Era uma intimidação para arrancar sua confisão. Mas ela não tinha o que confessar.
Graças às visitas proporcionadas pelo Caminho do Sertão, a experiência da ex-professora na Fazenda Menino e outros episódios de sua vida foram publicadas pela Editora Relicário, no livro “A porta aberta do sertão: histórias da Vó Geralda”, que ela assina junto com a historiadora Renata Ribeiro e com Isla Nakano.
Segundo o organizador da caravana, Almir Paraca, a Fazenda Menino foi escolhida como centro Geodésico (não geográfico) do Caminho do Sertão pelo fato do lugar guardar a memória desses importantes acontecimentos da história do Brasil, que a maioria dos brasileiros desconhece.
Pensando nisso, os dirigentes da OSCIP Instituto Rosaceas, organizadora da caminhada, ergueram na fazenda uma cúpula geodésica onde pretendem abrigar o Memorial Fazenda Menino. Até lá, quem visitar o local acessará pelo menos parte dessa história ouvindo os relatos da Vó Geralda.
Além de Arquitetura e Política, as terras da Vó Geralda falam também de Literatura, pois estão localizadas na região conhecida como Gerais – paisagem escolhida por Guimarães Rosa para ambientar seu romance “Grande Sertão:Veredas“. E a fim de marcar essa relação entre a Fazenda Menino e a obra roseana, o Instituto Rosáceas instalou bem em frente à casa da Vó Geralda uma escultura de Waldiney Carvalho. Nela, o artista mineiro faz uma releitura sertaneja (foto) da instalação “Love”, do artista ucraniano Alexander Milov, atribuindo à representação externa dos dois amantes características de Riobaldo e Diadorim.45
Notas
- 1 Ao contrário do que muitos pensam, Brasília não foi projetada por Niemeyer e sim por Lúcio Costa. A contribuição de Niemeyer para a nova capital foi concentrada em prédios e monumentos
- 2 Segundo foi registrado no livro A Porta Aberta do Sertão, os militares acreditavam, com base em documentos encontrados entre os pertences de Carlos Marighela após sua morte, que a Fazenda Marina poderia ser uma área tática de resistência comunista
- 3 Depoimento publicado no livro A porta aberta do sertão: histórias da Vó Geralda
- 4 Leia, aqui no blog, matéria sobre o Caminho do Sertão
- 5 Leia, também, matérias sobre outros lugares especiais do Noroeste de Minas: Sagarana / Serra das Araras / Morrinhos / Parque do Grande Sertão Veredas
Cidade Marina – Fazenda Menino – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,9,10, 11) Sylvia Leite
- (2/3) 2:Instituto Tom Jobim / 3: Revista Modulo, ambos publicador por BN Digital
- (4) Correio Paulistano em BN Digital
- (5,6) Revista Manchete em BN Digital
- (7/8) Revista Módulo em BN Digital
Consultoria
- Renata Ribeiro - uma das autoras do livo A Porta Aberta do Sertão - Histórias da Vó Geralda
Referências
- Cidade Marina – a miragem de Oscar Niemeyer para o sertão mineiro - dossiê de Gabriel de Oliveira, publicado no site da Biblioteca Nacional - BN Digital
- A Porta Aberta do Sertão: Histórias da Vó Geralda - livro já citado da Editora Relicário
- Meu pai, um sonhador, quis dar uma cidade a minha mãe - matéria jornalística, assinada por Luiz Ribeiro e Renan Damasceno, publicada no jornal Estado de Minas
- O Modernismo de Oscar Niemeyer em Minas Gerais - inventário dos projetos e obras do arquiteto, publicado pelo Instituto Estadual do Patrimònio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA)
- Utopia na roça, uma sertaneja e a ditadura militar - matéria de Carolina Bataier publicada na revista Piauí
- Fundação Oscar Niemeyer
Não sabia deste projeto. Obrigada!
Quase ninguém sabe, Marcia. A Cidade Marina é uma miragem.
Que pena que nao deu certo! Pena que o genio era comumista. Mas comia caviar no Leblon….