Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Toda cidade tem seu mercado e todos eles têm seus encantos, mas apenas alguns são especiais. O Mercado Thales Ferraz, em Aracaju, é um exemplo dessa categoria, como bem mostrou a Revista Viagem, ao incluí-lo na lista dos oito melhores do país na oferta de comidas típicas. A classificação, no entanto, ainda está longe de ser o seu diferencial. A real importância desse mercado está em sua pluralidade e nas relações estruturais e estruturantes que estabeleceu, ao longo do tempo, com todos os segmentos econômicos e sócio-culturais da capital.
Antes de mais nada é preciso esclarecer que costumamos chamar por esse nome a um conjunto de três mercados localizados lado a lado. Construídos em períodos distintos e hoje voltados a diferentes propósitos, os três são unidos pela proximidade física e unificados pela história, que ao longo dos anos foi tecendo sua teia no local.
Dois deles – Thales Ferraz e Antônio Franco – são ligados de maneira tão orgânica que, para um visitante desavisado, fica difícil perceber a separação. Até porque, embora cada um tenha sua especialização, ambos acabam assumindo um perfil múltiplo – o que que acaba lhes conferindo uma certa uniformidade. Isso sem falar nos prédios que, embora de formatos e estilos distintos – o primeiro quadrado e eclético e o segundo em forma de semicírculo e neocolonial – são pintados com a mesma cor, o que nos dá uma sensação de continuidade.
O mais antigo, o Mercado Antônio Franco, ou Mercado Velho, foi inaugurado em 1926 com o fim de organizar o comércio de produtos que era feito de forma indiscriminada no chão da Avenida Ivo do Prado. Isso porque o antigo mercado, localizado a poucas quadras dali, já não comportava o movimento dos feirantes. Quase 30 anos depois, foi o Antônio Franco que tornou-se pequeno para o volume, cada vez maior, de comerciantes e compradores, e isso levou o governo a erguer um novo prédio, que nasceu como mercado auxiliar e, este sim, foi batizado com o nome de Thales Ferraz – um engenheiro têxtil que trabalhava em uma fábrica do vizinho Bairro Industrial e, segundo se conta, era amigo da população ambulante do mercado.
Hoje, o primeiro abriga restaurantes, artesanato, barbearias, sebos de livros e bancas de cordel, enquanto o segundo concentra peças de cerâmica, ervas, bordados, artigos religiosos e as festejadas comidas típicas que vão da pimenta aos queijos, da tapioca à castanha. A ligação entre um e outro é feita pela Passarela das Flores, construída durante a revitalização do conjunto arquitetônico na década de 1990.
O terceiro – denominado Gina Franco -, mais recente e mais próximo do bairro, em direção ao Norte da cidade, é unido aos outros dois por uma praça destinada à realização de eventos, e assemelha-se a eles pela pluralidade.
Em seu andar térreo, estão as bancas de produtos hortifrúti, que dividem espaço com farmácia, lojas de artigos para cozinha e pequenos prestadores de serviço como sapateiros e consertadores de relógios. O andar de cima é quase todo ocupado com a chamada ‘feira do Paraguai’ mas há também costureiras dispostas a fazer qualquer tipo de serviço, de confecção a conserto, desde que não esteja perto do São João porque nessa época seu trabalho é produzir roupas juninas.
Apesar do aspecto mais moderno, o Mercado Gina Franco tem história sob os pés e também em algumas paredes. Foi erguido em 1990, no lugar do antigo porto, recém transferido para o município de Santo Amaro, e reúne, em seu conjunto, uma construção contemporânea, um antigo armazém de trigo e o prédio onde funcionava o Moinho Sergipe.
A barriga e os olhos de Aracaju
O quadrilátero central e centralizador que hoje reúne os três mercados já foi o ponto aglutinador de Aracaju quando ao seu redor pulsavam todas as instâncias da cidade. Ao Norte, havia o Bairro Industrial, com as fábricas Sergipe Industrial e Confiança, a Vila Operária, o Estádio Proletário e a capela da Paróquia São Pedro Pescador, hoje cravada no estacionamento de um shopping center. Nesse lado estava também a linha de trem, meio de transporte que dividia espaço com os barcos, antes do impulso à indústria automobilística patrocinado por Juscelino Kubitschek. Ao sul, ficava o Beco dos Cocos, com sua vibrante zona de prostituição. A Oeste, estavam a Associação Comercial e o Colégio Nossa Senhora de Lourdes, onde estudava a elite feminina do Estado. E a Leste, o Rio Sergipe, com seu porto, por onde chegavam os peixes frescos e por onde iam e vinham também os navios de passageiros, alguns deles bombardeados na costa Atlântica, cerca de 20 km adiante em direção ao sul, durante a Segunda Guerra Mundial.
A modernização da cidade não tirou do mercado a sua condição de centro catalisador. Pelo contrário. Ao final da década de 1950, a estação rodoviária foi construída a poucos metros dali e mesmo quando vieram os supermercados, a cidade parecia não querer sair da zona do mercado e o primeiro deles, do lendário comerciante Mamede Paes Mendonça, foi inaugurado no início da década de 1960, ao lado da rodoviária.
A convergência de setores gerou uma concentração econômica e cultural. O mercado era escoadouro da produção artesanal de todo o Estado: a cerâmica de Carrapicho (atual Santana de São Francisco), o bordado de Tobias
Berreto, a palha de Brejo Grande, Paratuba e Pirambu, a cerâmica de Simão Dias, entre outros. Foi palco de violeiros e cantadores. E tudo isso, alimentou e inspirou várias gerações.
Mesmo quando os serviços já tinham migrado em direção à Zona Sul, o colégio das freiras deixou de existir, as classes média e alta passaram a fazer compras em supermercados e as prostitutas foram lentamente abandonando o Beco dos Cocos, o mercado continuou encantando pesquisadores e artistas.
Um Café da manhã feito ritual
Durante décadas, feirantes e boêmios dividiram, ao nascer do sol, as rústicas mesas do mercado, distribuídas em cima de tablados que mais pareciam palafitas – e serviam para drenar a lama formada pelos restos de comida. Eles ali para para tomar café com leite e comer cuscuz com ovos ou acompanhado de algum dos mais diversos pratos de carne que até hoje permanecem cardápio: de galinha ou carne ensopada (ali chamada de galinha ou carne frita) a carne do sol.
Para os trabalhadores, era a refeição inicial, o ganho de energia necessário ao dia de trabalho pesado que teriam pela frente. Para quem vinha dos bares e boates, era o alimento final, do corpo e da alma, antes de adormecer com o dia já raiado.
Mais que matar a fome depois da farra, o café do mercado tinha a função, quase ritual, de encerrar a noite com poesia, seja de textos declamados, de letras cantadas ao som de violão, ou do simples conversar observando o vai e vem do ambiente mais vivo da cidade àquela altura da madrugada.
Versos, fotogramas e coreografias
Essa vivência alimentou gerações e deu frutos. O lugar foi cantado por Alcides Melo na música Mercado Thales Ferraz, vencedora do Primeiro Festival Sergipano de Música promovido pela TV Sergipe. Cidão, como é conhecido em Aracaju, acha que o mercado é “um pertencimento do povo sergipano”. Influenciado pela literatura do escritor regionalista Amando Fontes e por sua própria vivência, ele exaltou as docas do porto, o cheiro de povo das verdureiras e prostitutas; se irmanou com os pombos e fez com que a cidade inteira tomasse conhecimento da poesia que se escondia em cada ponto daquele mercado – na época sujo e desorganizado, ao ponto de não se conseguir enxergar a beleza de sua arquitetura.
Foi ali que a sergipana Ilma Fontes e a carioca Yoya Wursch rodaram o primeiro 35 mm de Sergipe – o curta “Arcanos, o jogo”. Focado no tema da cartomancia, especialmente no tarô, o filme encontrou no ambiente e nos tipos populares do mercado o cenário ideal para a sua trama de magia e de mistério.
O Thales Ferraz também inspirou um dos maiores espetáculos de dança da história da cidade: “Feira dos Aracajus”, criado e dirigido pela bailarina Lu Spinelli. Mais que isso: foi e ainda é palco de vários espetáculos de teatro de rua, especialmente do já histórico Grupo Imbuaça.
Mais recentemente, armazéns do Mercado Antônio Franco, situados à Rua Santa Rosa, sediaram, em sua segunda fase, um dos projetos mais conhecidos da cidade: a Rua da Cultura, que reunia músicos artesãos e outras manifestações artísticas.
O Mercado Thales Ferraz virou cartão postal
Com o tempo, parte dessa magia se perdeu. As novas gerações de artistas e intelectuais já não tomam café da manhã no mercado. Talvez por isso, os restaurantes que servem a refeição matinal dos trabalhadores agora só abrem às sete da manhã. Os violeiros também são escassos. Costumam aparecer no sábado de manhã, mas nem sempre temos a sorte de encontrá-los. Na ausência deles, outros artistas ocupam a cena, usando microfone e tocando instrumentos menos populares. Os tipos folclóricos envelheceram e não surgiram outros para substituí-los.
Mesmo assim, muita gente ainda prefere fazer suas compras por lá. Uns querem apenas ter acesso a uma maior variedade e conseguir alimentos mais frescos. Outros vão saborear o ambiente que ainda guarda, em suas paredes e prateleiras, as muitas histórias vividas ali por feirantes e boêmios.
Mas já faz tempo que o Thales Ferraz deixou de ser apenas dos sergipanos. Como já foi citado anteriormente, todo o conjunto passou, em 1990, por um processo de restauração e refuncionalização. As barracas de madeira e outras construções que se acumulavam dentro e fora dos prédios foram removidas e os comerciantes recolocados no novo prédio. Com isso, a beleza da arquitetura reapareceu. Os encantos naturais – como cores, aromas, sabores, saberes e a própria diversidade – somaram-se à nova aparência, e os três mercados que nos acostumamos a chamar genericamente de Mercado Thales Ferraz foram descobertos pelos turistas. E agora os turistas estão ensinando os sergipanos a gostarem ainda mais dos seus mercados.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre Aracaju: Terra do Cacique Serigy / Cemitério dos Náufragos / Painéis de Jenner Augusto /
Mercado Thales Ferraz – Aracaju – Sergipe – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,3,4,5,6,7,8,10) Sylvia Leite
- (2) Frederico Libório
- (9) Fotografado do livro "Tempo bom, tempo ruim", autobiografia de Ilma Fontes.
- (11) Ana Libório
Referências
- Consultoria: Ana Libório, arquiteta responsável pelo Projeto de Resgate da Paisagem Urbana de Aracaju, realizado na década de 1990, que incluiu a refuncionalização dos mercados Antônio Franco e Thales Ferraz e a construção do Mercado Gina Franco.
- Música: Mercado Thales Ferraz, de Alcides Melo - Letra com grafia original:
"Nas docas do porto, nas bocas-de-fumo / nos pratos-dos-dias, das feiras de cais / do Bêco dos Côcos à Ponte do Limo / nos mictórios, nos cabarés: um cheiro de povo / se gruda aos corpos das prostitutas, nas verdureiras, / dos biscateiros e carregadores / dos camelôs e da mendicancia /// E os pombos brancos são meus irmãos, onde eles dormem / eu adormeço /// Num céu de estrelas converso com a lua. / Num chão de marquises deito minha alma. / Nas bancas de peixe, nos talhos de carne / eu canto o meu povo do Thales Ferraz."
- Vídeo Especial Mercado Municipal de Aracaju, de Ana Libório sobre o projeto de restauração e refuncionalização dos três mercados.
- Vídeo Reportagem da TV Sergipe sobre o Primeiro Festival Sergipano de Música.
Entrevistas e depoimentos:
- Luiz Eduardo Oliva
- Alcides Melo
- Ilma Fontes
- Clara Angélica Porto
- Guga Viana
- Chico Pires
- Lulu Shunk
Para saber mais
- Se você tem paixão por mercados, não deixe de ler a postagem Conhecendo Mercados de Comida Pelo Mundo, no blog Destinos Por Onde Andei
- E para conhecer cinco lugares imperdíveis da capital de Sergipe,acesse o blog de Carla Passos
Eu adoro o mercado e vou por lá, sempre aos domingos, para comprar frutas e flores. Para mim, é um ritual delicioso, que faço questão de realizar.
Beijo, Sylvinha!
sonia pedrosa
Que legal! Eu gosto muito e fui grande frequentadora na época dos cafés da manhã.
Show, deu vontade de ir já!
Bora!
Amei..o mercado é a alma do aracajuano. E tem uma vista linda pra o Rio Sergipe.
Muito bem retratado aqui.
Obrigada. Da próxima vez, por favor deixe seu nome.
Sempre que vou à Aracaju tenho que passar no Mercado. Adoro o beiju molhado de lá.
Eu também adoro o beiju molhado de lá rsrsr. Você esqueceu de se indentificar, Da próxima vez deixe o nome, ok? E volte sempre. Toda quinta tem matéria nova no blog.
Que maravilha seu texto poético-antropólogico sobre o Mercado Thales Ferraz, Sylvinha!
Perfeito!
Bjs,
Val Cantanhede
Valeu, Val. Bom te encontrar por aqui. bjs
EU ARNALDO GONÇALVES DA SILVEIRA IRMAO DO SAUDOSO ARTISTA PLÁSTICO DANIEL GONÇALVES DA SILVEIRA FICO CONGRATULANDO POR REVER ESTÁ LINDA OBRA TRATANDO-SE DOS TRÊS MERCADOS DE MINHA QUERIDA ARACAJU QUE TANTO AMO DE TODO MEU CORAÇÃO NÃO CONTENÃO AS MINHAS LÁGRIMAS DE MUITA EMOÇÃO POIS MORO MUI TÔ DISTANTE DE ARACAJU MAIS GUARDOU CADA TREINO E RUAS DE MINHA TERRA AQUI VAI MEUS CINSERIDADE ABRAÇOS A TODOS MEUS CONTERRANOS ARACAJUANO
PEÇO DESCUPA POR ALGUNS ERROS NA ESCRITA O PRÓPRIO CELULAR ARROUBOS ALGUMAS PALAVRAS
Obrigada pelo comentário, Arnaldo. Bom saber que você gostou. Toda quinta tem matéria nova no blog. Acompanhe!
OK, não tem problema.
Muito interessante o Mercado Thales Ferraz, adoro mercados e este com certeza irei conhecer quando puder visitar Aracaju. Dica anotada!
O mercado é muito legal mesmo. Não vai se arrepender.
Boa tarde. No mercado Thales Ferraz ha uma loja que vende remefios naturais. Eu perdi o contato. Estou procurando. Tem como me passar o contato? Eles vendem remedios naturais para artrose, dores, e outros….
Zenara, infelizmente não tenho os contatos das lojas. Já tentou achar pelos sites de busca?