Atualizado em 19/05/2024 por Sylvia Leite
O memorial conhecido como The Wall, localizado no Constitution Gardens, em Wahsington, poderia ser apenas um dos três monumentos erguidos em homenagem aos mortos na Guerra do Vietnã – o que por si só já lhe daria um grande peso considerando-se as polêmicas que envolveram o conflito – mas acabou convertendo-se em símbolo nacional e em uma das mais respeitadas obras da Arquitetura norte-americana. A razão de todo essa projeção está, provavelmente, em sua concepção: o monumento parece ter sido pensado para interagir com os visitantes, transmitindo a eles, pelos sentidos da visão e do tato, a extensão da guerra e de suas consequências, além de possibilitar uma espécie de encontro com as vítimas.
Trata-se de uma parede de granito preto, dividida em duas partes dispostas em ‘V’, cada uma com mais de 70 metros, onde estão escritos, em baixo relevo, os nomes dos mais de 58 mil soldados mortos ou desaparecidos durante os 20 anos que abarcaram a guerra e seus preparativos. A superfície polida do granito faz com que os visitantes vejam-se refletidos sobre os nomes e experimentem a sensação de integrar, ainda que momentaneamente, aquela realidade.
Mas a interação com The Wall, também conhecido como O Muro não termina aí. Os nomes inscritos em baixo relevo podem ser decalcados em papel, com lápis ou giz de cera, e levados como recordação1. No caso de visitantes sem qualquer envolvimento com as pessoas reverenciadas, o ato pode ter apenas um caráter lúdico e de interatividade. Já para os parentes e amigos das vítimas, ou para os que vivenciaram de alguma forma o momento histórico da guerra, acaba ganhando um caráter de ritual.
A inscrição dos nomes foi feita em ordem cronológica de confirmação da morte ou desaparecimento de cada homenageado. Os que tinham morte confirmada eram assinalados com a figura de um diamante. Os que estavam desaparecidos recebiam uma cruz. Os desaparecidos que tiveram suas mortes confirmadas posteriormente receberam o diamante sobre a cruz. E foi criada uma terceira marcação para o caso de algum dos desaparecidos ser encontrado com vida. Nesse caso, a cruz ao lado de seu nome receberia um círculo para indicar que, embora tenha desaparecido por um tempo, tinha sido resgatado com vida. Mas, infelizmente, essa marcação nunca foi utilizada.2
The Wall foi concebido por Maya Ying Lin, em 1981, portanto cerca de duas décadas antes da era da interatividade digital, que acabou influenciando outras áreas3. Na época, Maya era estudante de Arquitetura na Universidade de Yale e tinha apenas 21 anos. Seu projeto venceu um concurso, que tinha mais de 1 mil 400 inscritos.
The Wall: tão polêmico como a guerra
A iniciativa de erguer um monumento que eternizasse a memória dos milhares de mortos na guerra do Vietnã partiu de Jan Scruggs, um veterano da guerra ferido no front, e foi influenciada pelo filme The Deer Hunter, que conta a saga de três sobreviventes da guerra. Com a ajuda de outros veteranos, Scruggs criou, em 1979, uma organização sem fins lucrativos denominada Vietnam Veterans Memorial Fund (VVMF) voltada para o financiamento do memorial, e conseguiu arrecadar mais de 8 milhões dólares apenas com fontes privadas.
O concurso para escolha do projeto foi realizado em 1981 e, para surpresa de muitos, a proposta vencedora tinha um desenho que rompia com todos os padrões. O design inusual, a cor preta e a falta de ornamentos assustaramrepresentantes do governo e pelo menos dois importantes apoiadores – H. Ross Perot e James Webb –, que decidiram retirar sua ajuda. O secretário do Interior do governo de Ronald Reagan, James Watt, recusou-se a emitir a licença para a construção do memorial.
A saída para o impasse foi aprovar, juntamente com The Wall, o projeto de um monumento figurativo, no estilo mais tradicional, apresentado pelo terceiro colocado no concurso: Frederick Hart. A tríade foi concluída em 1993, com a inauguração do Memorial às Mulheres, projetado pela escultora Glenna Goldcare, a pedido da ex-enfermeira militar Diane Carlson Evans, criadora da organização hoje denominada Vietnam Women’s Memorial Foundation.
Um lugar de reconciliação nacional?
A polêmica em torno do muro e o fato de o memorial acabar integrado por três partes estanques refletem, de certa forma, a divisão da sociedade americana não apenas em torno da guerra, mas também em relação ao próprio monumento. E, no que diz respeito ao muro, o desacordo em relação ao projeto foi apenas uma parte da questão. Havia também aqueles que não concordavam com a construção de um monumento que lembrasse uma guerra perdida.
Mas os anos se passaram e, embora tenha sofrido atos de vandalismo, alguns deles claramente políticos, The Wall parece ter conquistado o apoio senão de todos, pelo menos de grande parte dos norte-americanos. Alguns chegam a afirmar que se trata de um monumento de reconciliação nacional.
Seja o que for que tenha ocorrido, o fato é que The Wall recebe hoje milhões de visitantes por ano e suas paredes são constantemente enfeitadas com flores, bandeiras e outras oferendas. Todo esse material é recolhido, catalogado e já foi tema de exposição no Smithsonian Institution ‘s (Museu Nacional de História Americana).
Suas paredes cobertas de nomes já inspiraram dezenas de canções e ganharam réplicas – algumas fixas, como “Wall South”, no Veterans Memorial Park Pensacola, na Flórida, inaugurada em 1992; outras móveis,
a fim de proporcionar aos que não podem viajar até Washington, uma simulação da experiência de visita ao muro. E talvez não seja um exagero quando se fala que “The Wall” pode estar criando um gênero. Pelo menos um memorial de guerra já foi criado com suas características: o Northwood Gratitude and Honor Memorial, em Irvine, Na Califórnia, em homenagem às vítimas das guerras do Iraque e do Afeganistão.4
Notas
- 1 Um diretório (livro) mantido no local auxilia os visitantes a encontrarem nomes de parentes e amigos
- 2 Ao que se sabe, alguns soldados que não estavam entre os mortos ou desaparecidos tiveram seus nomes inscritos no muro por erro administrativo, e isso tem sido corrigido ao longo dos anos, por meio de trocas de placas, mas não houve casos de desaparecidos terem sido encontrados vivos
- 3 Os monumentos ‘vivos, isto é,’ com elementos que propiciam a realização de rituais, não era exatamente uma novidade na década de 1980, quando The Wall foi concebido por Maya Lin. Há inúmeros exemplos na antiguidade e na Idade Média, inclusive no Ocidente – caso de Alhambra, na Espanha -, mas não era comum nos monumentos da chamada civilização ocidental, com o perdão pela generalização
- 4 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares relacionados a Arte ou Arquitetura nos Estados Unidos: Art Déco District / Os Claustros / Estátua da Liberdade / Getty Center / Getty Villa
Para saber mais
- Quer saber como se locomover em Washington?, acesse o blog Lets Fly Away
The Wall – Constitution Gardens – Washington – Estados Unidos – América do Norte
Referências
Muito boa escolha Sylvia. O monumento é um testemunho de gratidão do povo americano aos seus combatentes e impressiona pela simplicidade e pela força! Parabéns! N
Washington, de um modo geral, é uma cidade incrível para se visitar, uma das mais interessantes dos Estados Unidos. Os monumentos, os museus do Instituto Smithsonian…. e a cidade linda, cheia de atrativos… dá vomtade de voltar mil vezes. Estive lá em 2005 e me apaixonei!
Valeu, Newsinho. Beijo.
É verdade. Faz muito tempo que fui. preciso voltar.
Esse memorial é lindo. Muita história por traz desses monumentos e homenagens ao veteranos do Vietnan
parabéns Sylvia pelo belíssimo post, esse memorial é mesmo uma grande homenagem aos veteranos da guerra.
Obrigada, Hebe. Concordo com você. Esse memorial é especialíssimo. E pensar que foi projetado por uma aluna de Arquitetura. Impressionante!
Muita história mesmo. E uma oportunidade de reflexão.
Eu não conhecia o The Wall: um memorial vivo que homenageia milhares de mortos achei muito interessante.
É interessante mesmo e se pensarmos que foi projetado por uma estudante de arquitetura, fica mais interessante ainda. Ela foi simplesmente genial!
Muito interessante a história do The Wall, uma guerra cujos os erros nunca devem ser esquecidos, ao mesmo tempo um projeto arquitetônico fantástico.
Sim, é fantástico e impressiona o fato de ter sido feito por uma estudante de arquitetura.
Que incrível esse monumento The Wall, aos veteranos do Vietnam, fiquei arrepiada só de ler o seu post. Mais informação e conhecimento de qualidade. Você é top.
Muito especial este post sobre o The Wall. Acho os memoriais excelente monumentos pra revermos a nossa história e prestarmos homenagens ao herois do passado.
Adorei conhecer a história do The Wall e sobre os veteranos do Vietnam, uma guerra nunca deve deixar de ser lembrada pela dor e marcas que deixam. E tem gente ainda fazendo guerra e tem gente ainda pedindo guerra, em 2021. Parabéns pelo excelente texto!
Verdade, Deyse, e The Wall tem uma maneira especial de fazer isso.
Foi assim que me senti quando li a primeira vez sobre The Wall. E pensar que foi projetado por uma estudante de Arquitetura. Simplesmente genial!
Pois é, e ainda tem gente querendo guerra. Nao dá pra entender. Obrigada pelo comentário, Roberto. Toda semana tem matéria nova no blog. Acompanhe!
Muito pertinente sua visita e artigo sobre o The Wall: um memorial vivo que homenageia milhares de mortos. As vezes dá um nó na garganta fazer esse tipo de tour, mas é muito importante!
Que incrível essas história do The Wall, fiquei impressionada só lendo seu post. Parabéns pelo texto sobre os veteranos do Vietnan
Não conhecia esse memorial, o The Wall, e especialmente por ser uma homenagem aos veteranos do Vietnan. Eu, particularmente, quanto mais penso sobre as guerras, mas fico sem entender, essa então não era realmente para os Estados Unidos terem metido o bedelho, mas que bom que pelo menos fizeram essa bela homenagem, que com certeza irei visitar quando passar por lá.
The Wall é um bom exemplo de memorial que consegue cumprir a sua missão. Mais do que uma homenagem aos veteranos do Vietnam, é um espaço de reflexão sobre a guerra.
Uma bela homenagem que não deixa barato: leva à reflexão.
Obrigada, Hebe. É impressionante mesmo. Um memorial vivo.
Dá mesmo, um nó na garganta. E é essa a ideia. Imagens de soldados heróicos legitimam a guerra. Esse memorial faz você sentir a dor de cada família.
Isso mesmo. Um espaço de reflexão e o mais interessante é que não apenas convida, praticamente intima o visitante a refletir.
Muito interessante e pertinente sua visita ao The Wall: um memorial vivo que homenageia milhares de mortos. Esse tipo de tour dá um nó na garganta da gente, mas vale demais!
Dá mesmo, um nó na garganta. Mas acho que é esta a ideia. Não basta homenagear os mortos, tem que mostrar a dor que a guerra trouxe.
Estivemos em Washington no mês de dezembro, muito frio e até chuva, mas mesmo assim fizemos questão de conhecer os principais monumentos e The Wall estava entre eles claro. Toda aquela área traz um certo peso a meu ver, pois mesmo sendo homenagens, trata-se de vidas perdidas não é verdade? Durante nossa visita, o céu estava extremamente cinza, aquilo deu um ar mais pesado ainda, tanto que pretendemos voltar em outra época. Gostamos muito da cidade e do que vimos, mas queremos ter outra visão geral de tudo.
Que legal que foram lá. Deve ter sido difícil conhecer The Wall em um dia nublado. Espero que, ainda assim, tenham conseguido usufruir de sua beleza que, na minha opinião, é mais conceitual do que física.
Excelente e me colocou em reflexão. The Wall é uma justa homenagem, um memorial vivo para os milhares de mortos.
Essa é a ideia do projeto do The Wall. Estimular as pessoas a refletirem sobre cada um daqueles que perderam a vida na guerra. Fazer com que eles deixem de ser apenas números nas estatísticas oficiais.
O filme “fomos heróis “retrada esta obra triste…
Polêmico ou não, o The Wall é um memorial para prestigiar, de forma justa, milhares de jovens mortos em guerra, muitos que sequer queriam lutar. Então, acho uma homenagem justa.
Sim, Alexandra, e além disso o The Wall é um interessante projeto de arquitetura porque propõe uma relação entre o visitante e a mamória dos hmenageados.
que interessante Sylvia. Parece ser um projeto profundamente significativo e emocionalmente poderoso. Memoriais vivos, como este, desempenham um papel importante na preservação da memória coletiva e na criação de espaços de reflexão e luto para os vivos. Achei bem interessante o decalque que pode ser feito.
Pois é. Eu acho a concepção de The Wall fascinante e a autora do projeto era, na época, apenas uma estudante de arquitetura.
Que interessante a história desse monumento – e dá pra entender os conflitos do projeto, pois a Guerra do Vietnã foi também muito controversa.
Verdade Cíntia, todo esse debate em torno do The Wall reflete os desacordos em relação à guerra. Além disso, o projeto é ousado e desafia a tradição de homenagear pessoas com estátuas, sejam elas retratos dos homenageados ou imagens representativas, que é o caso do segundo monumento.