Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite
Diferente de quase tudo de que se tem notícia, a Plaza Mayor de Madri, na Espanha, é contornada por uma única construção de três andares – compartimentada em vários prédios – que lhe dá forma retangular. Em contraste com essa peculiaridade de conter apenas uma edificação ao seu redor, existe outra igualmente curiosa: é, provavelmente, a praça que já teve mais nomes desde sua construção, a que foi mais foi destruída por incêndios e a que já teve, ao longo de sua história, o maior número de utilizações.
No início, a atual Plaza Mayor foi um mercado, o principal de Madri, e se chamou Plaza de Arrabal, em
referência ao fato de estar localizada fora dos muros da cidade e entre dois subúrbios, ou arrabaldes. O comércio no local estabeleceu-se naturalmente, no século 15 – antes mesmo da inauguração oficial da praça que só ocorreu em 1620, portanto, dois séculos depois. Isso ocorreu porque seu terreno encontrava-se na confluência dos caminhos que faziam a ligação entre Atocha e Toledo. Assim, reunia tanto os mercadores que vinham vender seus produtos em Madri como os que estavam de passagem.
Desde esses primeiros tempos, ainda com o nome de Arrabal, a praça era também palco de touradas, ou corrida de touros, e recebeu esse tipo de evento por mais de 200 anos. As corridas eram realizadas em dois turnos: de manhã, para o povo e, de tarde, para os reis e os nobres.
Havia, ainda, atividades competitivas como os ‘juegos de cañas’ – um tipo de disputa entre nobres que, montados em cavalos, e dispostos em fileiras, simulavam batalhas usando lanças e dardos. Esses jogos eram uma herança de Roma e tinham sido introduzidos na Espanha pelos árabes. Um deles foi registrado pelo pintor barroco Juan de la Corte na tela ‘Fiesta em La Plaza Mayor de Madrid’, que hoje integra o acervo do Museo de Historia de Madrid.
As touradas e jogos podiam ocorrer de forma isolada ou dentro das comemorações reais que também eram realizadas na praça. As últimas touradas, por exemplo, no ano de 1846, marcaram a celebração de dois casamentos: o da rainha Isabel II e o de sua irmã Maria Luisa Fernanda. Outro acontecimento histórico foi a coroação do rei Felipe IV, com 50 mil espectadores.
Cultura e religião
Era também a Plaza Mayor que abrigava os eventos culturais da cidade. Entre os mais significativos encontram-se as chamadas ‘Justas Poéticas’, que eram encontros literários competitivos e pelo menos um deles foi organizado por ninguém menos que Lope de Vega. Desses eventos participavam tanto escritores renomados como jovens poetas em busca de reconhecimento. Além, disso, a praça abrigou espetáculos teatrais e cortejos de carnaval.
As solenidades religiosas importantes eram todas celebradas na Plaza Mayor, que também servia de ponto de partida, ou de chegada, para as procissões. No mesmo ano de sua inauguração oficial, a praça abrigou a cerimônia que comemorou a beatificação de San Isidro, ocorrida em Roma dias antes. A celebração foi realizada no dia 15 de maio, razão pela qual essa data ficou marcada como dia de San Isidro, o padroeiro de Madrid. Dois anos depois, uma nova festa. Desta vez para comemorar quatro canonizações: de San Isidro, Santa Teresa de Jesus, San Ignacio de Loyola e São Francisco Xavier.
Nem todas as utilizações da praça, no entanto, são carregadas de boas memórias. Caso dos Autos de Fé
da Santa Inquisição, por exemplo, que incluíam condenações ou execuções públicas. Um desses autos, presidido pelo rei Carlos II, foi tema da famosa tela ‘Auto de Fé em la Plaza Mayor de Madri’, pintada por Francisco Rizi, que se encontra atualmente no Museo Del Prado.
Se foram muitas as utilizações, os nomes não ficaram atrás nessa conta. Além de Arrabal, nos primeiros tempos, a atual Plaza Mayor já havia sido chamada assim entre os séculos 17 e 18 e voltou a ter esse nome depois da Guerra Civil Espanhola. Entre seu surgimento, no século 16, e essa última mudança, teve inúmeras denominações, a maioria delas por motivações políticas. Em três períodos não consecutivos, recebeu o nome de Plaza de la Constitución. Foi batizada, ainda, como Plaza Real, Plaza de la República e Plaza de la República Federal. Por um curto período, teve o nome de Plaza de Calvo Sotelo em homenagem ao ministro das finanças da ditadura de Primo de Rivera.
Os incêndios, claro, foram em número bem menor, mas três destruições pelas chamas de um único
local, mesmo num intervalo de dois séculos, não parece uma quantidade pequena.
O mistério da estátua de Felipe III
Para começo de conversa, não se trata de uma obra de arte concebida para ser colocada onde está. Foi um presente do Gran Duque de Florença ao rei de Espanha e, durante mais de duzentos anos esteve em outros locais: primeiro no chamado
Jardim do Reservado, no Alcázar, e depois na Casa de Campo – o maior parque público de Madrid. Somente em 1848 é que, por ordem da rainha Isabel II, foi transferida para a Plaza Mayor.
Mas o fato mais inusitado é que, durante muito tempo, quem se aproximava da estátua sentia um odor muito forte de carne deteriorada. Várias teses tentaram explicar o mal cheiro, mas nenhuma delas parecia fazer sentido. Alguns acreditavam que o odor vinha da Casa de Carniceira onde antigamente se vendia carne. Outros acreditavam que sob o terreno da praça estava soterrado um antigo cemitério visigodo e que o cheiro vinha dos cadáveres ali enterrados.
O verdadeiro motivo do mal cheiro só foi revelado quando a estátua sofreu um atentado, em 1931, que fez explodir a barriga do cavalo e dela saltaram milhares de ossinhos e corpos putrefatos de pardais. Descobriu-se, então, que os pássaros entravam na estrutura oca da estátua pela boca do cavalo e não conseguiam mais sair. Morriam lá dentro e seus corpos iam se deteriorando. Quando a estátua foi restaurada, fecharam a boca do cavalo o mal cheiro nunca mais voltou.
Os encantos da Plaza Mayor
Todas essas curiosidades fazem da Plaza Mayor um lugar de visita obrigatória para quem vai a Madri, e, como se isso não bastasse, a praça preserva uma Arquitetura histórica que vale a pena ser vista.
O prédio original, em madeira, virou cinzas no primeiro incêndio. Foi reconstruído, mas não escapou ao segundo. Somente a terceira construção conseguiu resistir às chamas e permanece até hoje com algumas reformas. Foi a partir dela que a praça
foi reconstruída depois do terceiro incêndio, adquirindo a forma atual. O prédio chama a atenção não apenas pela cor, diferente dos vizinhos, mas, principalmente, pelos afrescos com motivos mitológicos que ornamentam sua fachada e pelo brasão da Espanha de Carlos II , o último rei da ‘Casa de Habsburgo‘. .Além disso, ostenta dois pináculos.
Em frente à Casa de la Panaderia, encontra-se a Casa de la Carnicería – o segundo prédio em ordem cronológica e de importância, erguido depois do primeiro incêndio e destruído por duas vezes. Assim como a Casa de la Panaderia, nos primeiros tempos abrigou um grêmio, o dos açougueiros, mas, ao contrário daquela, está pintado com a mesma cor dos outros prédios que compõem a construção unificada. Distingue-se dos demais apenas por também possuir dois pináculos.
Além da Arquitetura especial e da estátua que engolia pássaros, a Plaza Mayor tem outra característica
que a diferencia de todas as outras. Para acessar o seu interior é preciso passar por uma de suas dez portas, cada uma com nome e história próprios. Algumas delas, seguindo a tradição, também mudaram de nome ao longo do tempo. É o caso do Arco de las Botoneras, que foi inicialmente batizado como Arco Imperial, por ligar a praça à Calle Imperial, mas mudou de nome duas vezes junto com a rua, e agora se chama Arco de las Botoneras porque ali se concentravam as vendedoras de quinquilharias e miudezas, especialmente botões.
A porta mais famosa, no entanto, é o Arco de los Cuchilleros, chamada assim por causa da vizinha Calle de Los Cuchilleros, onde se concentravam as lojas de cutelos e facas – cuchillos, em Espanhol. E não é difícil entender sua fama: pra começar, o arco está sobre uma escada que faz a passagem de nível entre a praça e uma rua que tem o nome de Cava de San Miguel. Essa escada é considerada uma rua – certamente a menor da toda Madrid – e, ao longo dela, existem estabelecimentos comerciais.
Na altura do degrau mais alto, vemos uma espécie de varandinha, limitada por uma grade de ferro arredondada, em forma de meia lua. Dessa pequena plataforma, um certo Frei Antônio teria feito o discurso que mobilizou milhares de madrilenhos a lutar contra as tropas de Napoleão em 1808. O fato é altamente valorizado pelos madrilenhos porque a luta contra Napoleão está relacionada à Guerra da Independência e ambos teriam levado à redação da Constituição espanhola de 1812, que é considerada um marco do liberalismo europeu.
Mantendo a tradição histórica, a Plaza Mayor segue sendo palco de inúmeros e variados eventos, alguns deles já bastante antigos. Entre as atrações periódicas, encontra-se a feira de filatelia e numismática que é realizada semanalmente nas manhãs de domingo embaixo das arcadas. A feira surgiu em 1927 e destina-se especialmente a colecionadores de selos ou de moedas interessados em comprar, vender ou trocar suas peças, mas, pela beleza e curiosidade dos produtos, acaba atraindo turistas e até madrilenhos.
Já na época do Natal, a praça se transforma num grande mercado de enfeites temáticos, árvores, presépios, além de doces, torrones e outros produtos natalinos. A tradição vem desde o século 17, mas no início acontecia na quase vizinha Plaza de Santa Cruz. Com o tempo, as duas praças passaram a dividir a feira: uma ficou com os produtos comestíveis, a outra com os de decoração. Hoje, a Plaza Mayor recebe não apenas todas as barracas, mas também um carrossel e apresentações musicais.
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais da Espanha: Segóvia / Ronda / Arcos de La Frontera / Alhambra / Algodonales / Cádiz
Fotos
- (1) Sebastian Dubiel em Wikipedia, CC BY-SA 3.0
Para saber mais
- Informe-se sobre outros lugares especiais da capital espanhola lendo a postagem O que fazer em Madri em 1 dia do blog De lugar Nenhum
- E no blog D&D Mundo Afora, você vai encontrar um texto sobre O que fazer em Madri, com a indicação de 53 lugares imperdíveis
Amei o seu texto sobre a Plaza Mayor de Madri, eu amo esse lugar, demais! Parabéns e sucesso!
Valeu, Roberto. Também gosto muito dessa praça. Todas as vezes que fui a Madri passei por lá.
Super bacana a Plaza de Madri. Esse palco de um curioso jogo de quantidades. Adorei saber do contexto, da história e dos diferentes usos da praça pela população ao longo dos tempos.
Que bom que gostou, Deyse, Volte sempre!
Um dos meus locais favoritos em Madrid é a Plaza Mayor. Não só por toda sua história, que acabei descobrindo novidades ao ler esse seu artigo. Mas também pelo clima vibrante que é a praça, os restaurantes ao redor e as lojinhas charmosas.
Você tem razão, Leo. Essa praça é realmente vibrante. Aliás, os madrilenhos são vibrantes. Vão pra rua toda noite e espalham alegria.
Eu não fazia ideia da história, das curiosidades e do jogo de quantidades que envolviam a Plaza Mayor de Madri. Seu texto está incrível! Parabéns!
Obrigada, Luana. Que bom que gostou. Volte sempre. Toda semana tem matéria nova por aqui.
Como é linda a Plaza Mayor de Madri! Amei ver as fotos e descobrir todas essas curiosidades.
É uma praça muito interessante e agradável.
[…] Veja também no site World by 2 se você for ficar mais tempo, um roteiro de 2 dias em Madri e também o Lugares de Memória que tem um post sobre a Plaza Mayor e o curioso jogo de quantidades. […]
Quanta história e curiosidades, Sylvinha. Assim, com conhecimento, a gente olha com outros olhos a Plaza Mayor.
É verdade. Eu sempre gostei dessa praça, sempre achei agradável jantar naqueles restaurantes, mas sabendo da história fica ainda mais interessante, embora alguns fatos não mereçam ser lembrados a não ser para não deixarmos que se repitam.
Não sabia essas curiosidades sobre a Plaza Mayor de Madrid! Estive na cidade há uns anos e agora estou planejando voltar, seu blog tem ajudado muito. Obrigada pelas dicas e informações
Bom saber disso, Marcella. Eu que agradeço pela leitura e pelo comentário.