Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite
Conta a lenda que as mulheres de uma tribo exclusivamente feminina, denominadas Icamiabas, realizavam anualmente, em noite de lua cheia, uma cerimônia sagrada para a deusa Yaci (mãe-lua) e durante o rito tinham relações sexuais com os homens da tribo Guacari, à beira do lago Yaci Uarua (Espelho da Lua). Em seguida, entravam no lago e colhiam uma argila especial com a qual produziam amuletos para dar sorte e proteção aos seus parceiros 1. Os amuletos eram esverdeados, tinham forma de animais, especialmente o sapo, e chamavam-se Muiraquitãs2. Embora as Icamiabas tenham vivido3 em uma extensa área do Norte do país, e o Muiraquitã seja conhecido em toda a Amazônia, foi Santarém, no Oeste do Pará, que o adotou como ícone.
Em Santarém tem muiraquitã por toda parte: talhado nos monumentos, impresso nos folhetos turísticos, como souvenir ou decoração nas lojas de artesanato e até na logomarca da Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Essa ‘onipresença’ parece anunciar a experiência mítica que teremos nessa cidade ribeirinha, cujo imaginário é marcado pelas lendas e pelas águas.
Tão ou mais forte quanto a lenda do Muiraquitã é a do Boto que se disfarça de homem para seduzir as mulheres nas noites de lua cheia. A visita do boto costuma acontecer em festas comemorativas durante o período do Puxirum – uma espécie de mutirão realizado na roça para colheita e replantio da mandioca. O boto se transforma em um homem bonito e elegante para deixar todas as moças encantadas, mas só uma é escolhida. Depois de dançarem a noite inteira, ele a engravida e desaparece nas águas.
Em Santarém, como em outas localidades da Amazônia, há inúmeras narrativas como essas, relacionadas aos rios. É o caso da Cobra Grande ou Boiuna. Segundo essa lenda, uma nativa foi engravidada pela cobra e pariu duas cobrinhas. Assustada com a aparência dos filhos, a nativa decidiu jogá-los no rio. Ele se chamava Norato, ou Honorato, e ela se chamava Maria Caninana. Ele era bom e ela se dedicava a assustar as pessoas e provocar naufrágios. Ao final da narrativa, Honorato livrou-se do encantamento que o tornava cobra e assumiu a forma humana enquanto Maria Caninana foi morta pelo próprio irmão que não aceitava a sua maldade.
Santarém e suas águas
Antes de habitarem o imaginário, as águas estão presentes na realidade cotidiana concreta dos habitantes de Santarém. É nas chalanas que os ribeirinhos se locomovem dentro do município e se transportam para fora dele. Como lembra a professora Raimunda Monteiro, da Universidade Federal do oeste do Pará – UFOPA, “os rios foram as primeiras estradas de Santarém e historicamente são as suas estradas primordiais”.
É por eles que se dá o comércio entre a cidade e seus distritos. Neles, muitos ganham a vida com a pesca das diversas espécies que fazem as delícias da culinária local baseada nos peixes e na mandioca. Nas mesas dos turistas, aparecem os Pirarucus, Tambaquis, Filhotes, e Surubins, mas quem quiser conhecer o cardápio do santareno comum, deve procurar peixes como Curimatã, Mapará ou Acari, também conhecido como Cascudo. É com essas espécies que os ribeirinhos costumam fazer a Piracaia – uma espécie de churrasco de peixe pescado na hora e assado em fogueira na beira do rio – costume local que eu tive a sorte de experimentar quando nosso barco quebrou e precisamos esperar socorro em uma ilha por mais de sete horas.
E, finalmente, é na beira dos rios que acontecem as festas, geralmente marcadas por lendas diretamente relacionadas com as águas. O exemplo mais significativo, seja por sua repercussão internacional, seja pelo consequente tamanho da festa, é o Çairé – um festival de cultura e religião que é realizado anualmente no distrito de Alter do Chão e se tornou conhecido tanto no Brasil como no exterior. A festa teria sido criada durante as missões evangelizadoras dos padres jesuítas com o fim de aculturar os nativos.
Çairé: um encontro de culturas
A palavra çairé, em idioma Nheengatu, originário no Tupi-Guarani, é uma saudação que quer dizer Salve! O termo é usado também para nomear um semicírculo com três cruzes alusivas à Santíssima Trindade, que é o símbolo maior da festa. O arco do Çairé é comparado ao escudo de Portugal e seria uma representação da Arca de Noé. O próprio evento, segundo estudiosos, faz uma referência à narrativa bíblica.
Originalmente, o Çairé era apenas uma procissão seguida de orações à Santíssima Trindade. Com o tempo, outros elementos foram introduzidos, a começar por dois mastros alusivos à fartura de alimentos na região, que são buscados na floresta e fincados no local das comemorações para marcar o início das atividades e, ao final, são derrubados como uma espécie de rito de encerramento. A parte religiosa da festa é composta pela procissão, rezas, cânticos e ladainhas. Já a programação profana inclui música, dança e dramatizações.
Um dos elementos mais recentes e mais divulgados atualmente é uma dramatização da Lenda do Boto – citada logo no início do texto – , que consiste em um duelo entre o Boto Tuxaua e o Boto Cor de Rosa. Tuxaua é pai da Cunhantã-iborari, seduzida e engravidada pelo boto cor de rosa. Na luta, o pai ofendido mata o sedutor, mas para livrar-se da fúria dos espíritos, ele pede ao pajé que ressuscite o adversário.
Alter do Chão: o palco do Çairé
Se o Cairé é a mais conhecida entre as comemorações ribeirinhas, a praia de Alter do Chão, onde a festa acontece, é a mais procurada pelos visitantes de Santarém. E isso ocorre, principalmente, pela fama internacional que alcançou. Mas, mas antes de ser famosa, essa vila tem História. Foi habitada, antes da colonização, pelos índios Boraris e só depois da chegada dos europeus é que acabou batizada, assim como Santarém e outras localidades da região, em homenagem a cidades homônimas de Portugal.
Sua orla fluvial tem como principal atração a famosa Ilha do Amor, um banco de areia que recebeu esse nome por causa do romance proibido entre um seminarista português e uma índia, que teriam morrido juntos no local depois de enfrentar reações de ambos os lados. A narrativa está registrada no livro da Irmandade da Companhia de Jesus e é citada pelo historiador santareno Wilde Dias da Fonseca em seu livro ‘Santarém: Momentos Históricos’.
A Ilha do Amor é ponto de partida para diversos passeios em barco pelas praias fluviais da região, mas o desenho incomum da sua ponta de areia, suas águas claras e o fato de precisarmos fazer uma pequena travessia para acessá-la, convidam a ficarmos por ali o dia inteiro em uma experiência completa de sol, água, areia e navegação. Na chegada e na saída, passamos por uma calçada decorada com muiraquitãs – os amuletos citados no mito inicial. À noite, como era de se esperar, tem Carimbó na praça para nativos e visitantes, que dançam com gosto a céu aberto.4
A tradição artesanal de Santarém
Além de lendas, música e dança, Santarém também tem, ainda, um artesanato milenar. O mais conhecido talvez seja o das cuias onde se toma o famoso Tacacá – uma tradição indígena que conservou sua técnica básica ao longo do tempo, embora os desenhos e o acabamento tenham incorporado mudanças nos últimos séculos.
As cuias mais vendidas hoje em dia são as que trazem incisões com motivos geométricos, mas, ao contrário do que se imagina, não é essa a temática original. Segundo a professora de Antropologia da UFOPA Luciane Carvalho, a geometria foi introduzida recentemente, para atender à demanda de turistas acostumados com grafismos indígenas. As incisões mais antigas de que se tem notícia trazem desenhos representativos da flora local. Há, ainda, as cuias pintadas com paisagens coloridas, que foram introduzidas na primeira metade do século 20 e também antecedem às geométricas. Além de fazerem parte do cotidiano dos santarenos – e justamente por isso –, as cuias receberam, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, o título de Patrimônio Cultural Brasileiro. 5
Tão impressionantes como as cuias são os trabalhos de cestaria em palha de Tucumã, conhecidos como Trançados do Arapiuns em referência ao rio que banha as comunidades onde são produzidos. Além da beleza das peças, esse artesanato atrai pelas características técnicas entre as quais se destaca o uso de corantes naturais como o amarelo do açafrão, o laranja do urucum, o vermelho do crajiru e o roxo da capiranga.
Atualmente, as cestas são confeccionadas por artesãos de oito localidades: Vila Brasil, Vila São Miguel, Vista Alegre, Pedreira, Tucumã, Vila Gorete, Nova Sociedade e Comunidade de Coroca. A comercialização é feita principalmente nessa última que se dedica, desde a década de 1990, ao turismo de base comunitária incluindo não apenas a cestaria, mas também a criação de abelhas e de tartarugas amazônicas.6
Tanto as cuias como os trançados são apresentados aos visitantes no Museu João Fona, localizado na orla de Santarém, junto a peças arqueológicas do período neolítico e outras preciosidades da história santarena. João Fona, que dá nome ao museu, foi um artista plástico que teve papel importante na divulgação das cuias e na consolidação de suas versões coloridas com pinturas de paisagens. Já o prédio que abriga o museu tem uma história que se confunde com a história de Santarém. É o terceiro mais antigo da cidade e nele funcionaram a Intendência Municipal, a Prefeitura, o Salão do Júri, A Câmara Municipal e a Cadeia Pública.
O encontro dos rios
Muito do que foi mostrado até aqui, embora pertença a Santarém, e carregue o seu sotaque, é também compartilhado por outros localidades amazônicas. Talvez o único elemento exclusivo desse município seja o fato de estar localizado bem em frente ao encontro do Tapajós com o Amazonas e do fenômeno ser facilmente avistado da orla sem que seja preciso pegar um barco para observá-lo.
O afluente Tapajós chega do Mato Grosso para desaguar no Amazonas, que é o rio principal da bacia. O primeiro, considerado um rio claro, com águas verdes e transparentes, custa um pouco a se misturar com o outro, de aparência barrenta, e apesar disso considerado um rio branco pelo fato de acumular sedimentos por onde passa. Os dois correm juntos, lado a lado, cada um no seu curso, e assim vão traçando um desenho que se modifica a cada momento. Ora um avança, ora o outro é quem ganha corpo enquanto o vizinho se retrai. O simples admirar dessa dança já é motivo mais que suficiente para visitarmos Santarém.
E embora nossa visita não possa nem de longe ser comparada, em importância, àquelas que os Guacaris faziam às Icamiabas, ao pisarmos em Santarém alcançamos o privilégio de, como eles, pendurarmos no pescoço o Muiraquitã – símbolo maior do município, que invoca proteção e prosperidade.7
Notas
- 1 Há várias versões dessa lenda, com variações de detalhes, mas todas se referem à tribo de mulheres que recebiam anualmente a visita de homens de uma tribo exclusivamente masculina e, em agradecimento pela fertilização, presenteavam cada um deles com um Muiraquitã.
- 2 O Muiraquitã é citado por Mário de Andrade em seu festejado romance Macunaíma, como o amuleto que o personagem central da história recebe da Mãe do Mato e que se transforma no fio condutor da narrativa
- 3 Não se sabe ao certo se as Icamiabas realmente existiram com esse nome, mas há registros de uma tribo exclusivamente feminina que teria inspirado os portugueses a região com o nome de Amazônia em referência ao mito grego das mulheres guerreiras, além de serem citadas romance Macunaíma.
- 4 Aguardem matéria sobre Alter do Chão
- 5 Aguardem matéria sobre as Cuias de Santarém
- 6 Leiam matéria sobre a Comunidade de Coroca
- 7 Leiam, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais do Pará: Theatro da Paz / Alter do Chão
Santarém – Pará – Amazônia – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1) Aegyptian_dcczfn, em Deviant Art
- (2, 3, 6, 7, 8, 9 ,10 ) Sylvia Leite
- (4 e 11) Silvio Oliveira do blog Tô no Mundo
- (5) Site do Iphan
Consultoria
- Raimunda Monteiro - professora da UFOPA
- Luciana Carvalho - Professora de Antropologia da Ufopa
- Elizangila Dezinocourt - Pesquisadora da Cultura Popular
- Alcianie Ayres - Jornalista
Referências
- Livro Santarém: Momentos Históricos, de Wilde Dias da Fonseca
- Site do Iphan
Para saber mais
- Descubra como chegar e o que visitar em Alter do Chão em matéria do blog Pé na Estdada
Esse artigo me fez ver o quão rico é o nosso folclore, e ao mesmo tempo, tão desconhecido.
Verdade. Mesmo as pessoas que se interessem pelo tema, não conseguem conhecer tudo do nosso folclore. E isso acontece tanto pelo tamanho do país, como pela falta de divulgação.
Na imensudão deste nosso País, sempre uma descoberta fantástica. Não conheço, mas ficou de pronto o desejo de conhecer. Mais um super cantinho desse nosso Brasil.
Verdade, Sidney, este país é uma imensidão e não conhecemos quase nada.
Belem tem um folclore lindo gostei muito da matéria abraços a todos vocês
Que bom que gostou, Claudio. Volte sempre. Toda semana tem matéria nova aqui no blog e breve virão outras sobre o Pará.
Amei, Sylvia Leite. Muito rica a matéria, recheada de informações que nos levam a viajar novamente
Que bom, Silvio. Fico feliz que tenha gostado, você que viu tudo isso de perto e que sabe tão bem como reportar o que vê.
Santarem, que história incrível. Quanta cultura, lenda e magia. Estou encantada e quero conhecer.
Santarém é realmente encantadora, mas é preciso saber descobrir seus encantos.
Vale a pena. É uma experiência muito interessante e verdadeira.
Alter do Chão está na minha lista de desejos kk. Adorei seu post sobre Santarém
E vem aí a matéria sobre Alter do Chão. Fique ligada.
Como é maravilhoso o nosso Brasil! Este lugar eu não conhecia, você sempre nos traz descobertas maravilhosas. Santarém: a terra do Muiraquitã é encantadora.
Santarém é encantadora mesmo, Van, e é interessante atentar para a cultura local a fim saboreá-la inteiramente.
Que historia, que lenda interessante. Adorei conhecer mais de Santarém, a terra do Muiraquitã.
É legal essa lenda, né? Em Santarém tem Muiraquitã por toda parte.
Sou apaixonada pelo Pará e espero em breve poder passar um tempo por lá vivenciando essa cultura. Santarém já estava na minha lista de desejos, agora tenho certeza de que vou lá conhecer. Obrigada por compartilhar
Eu que agradeço pela leitura e pelo comentário. Santarém é realmente muito especial.
Este foi o quarto artigo que acabei de ser relacionado a esse tem e foi o uqe mais deixou claro para mim. Gostei.
Que bom que você gostou, Juliana. volte sempre. Toda semana tem matéria nova aqui no blog. Acompanhe!
Santarém é fantástico.
Verdade, Paulo. Santarém é Fantástico.
Acabei de ler os blogs de Santarém e da comunidade Coroca. Adorei os dois e já decidi que vou fazer o programa completo de Coroca, nem que seja o único passeio que eu faça. A gente lê com outros olhos a matéria sobre um lugar que vamos visitar pela primeira vez. Muito rico seu texto. Valeu!
Que boa notícia. Adoro quando minhas matérias incentivam alguém a conhecer algum lugar, especialmente quando se trata de um lugar tão especial como a Comunidade de coroca.
Que delícia de texto, Sylvinha. Além de bem escrito, fluido, muito rico. Deu saudade da minha mãe. Como já lhe falei, cresci ouvindo as histórias dela e das minhas tias quando moraram nas várias cidades da Amazônia, inclusive, Santarém. Essas lendas me são familiares. As lembranças são muitas.
Que legal, Soninha! Não sabia que sua mãe e sua tia tinham vivido na Amazônia. Também não sabia dessa memória que você tem das lendas de Santarém e de outros lugares.