Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite
O nome Coroca vem de um pássaro preto de dorso azulado – também conhecido como Anu-Coroca – que hoje anda isolado porque está rareando por lá, mas anos atrás, quando ainda existia em grande quantidade, vivia em bando. Não se sabe se por coincidência ou por influência da ave, os moradores da Comunidade de Coroca – chamada por alguns de Vila Coroca – também se organizam em grupo e ganham seu sustento de forma coletiva. O que os une é um projeto de turismo de base comunitária que envolve a criação de animais – especialmente peixes, abelhas e tartarugas amazônicas –. e o artesanato de palha – os famosos e premiados ‘Trançados do Arapiuns’.
A comunidade nos moldes atuais é relativamente recente, tem cerca de três décadas, mas o costume de trabalhar conjuntamente é uma tradição que vem de longe. Em toda a Amazônia, já foi comum e ainda persiste em algumas áreas o chamado ‘puxirum’ – uma espécie de mutirão para colheita e replantio da mandioca ou para outras atividades de interesse comunitário. No caso de Coroca, o trabalho coletivo tem razões ainda mais fortes: todos os seus moradores descendem – ou se casaram com descendentes – de apenas um casal, ou seja: são todos parentes.
Comunidade de Coroca: o território de uma só família
Fausta Santos Amaral e Anastácio Guimarães chegaram ao local com os seis filhos na década de 1920. Vieram de Lago Grande e encontraram ali uma mata primária – ambiente ideal, segundo os conceitos da época, para o cultivo da mandioca. Mais tarde, durante o período conhecido como Segundo Ciclo da Borracha (1942 e 1945), a família Santos iniciou a plantação de seringueiras, com sementes colhidas em comunidades vizinhas, visando a extração de látex, mas houve nova retração do mercado e a família voltou-se novamente para a monocultura da mandioca.
Nos primeiros tempos, a viagem de Coroca até Santarém, onde os nativos conseguiam vender seus produtos sem se sujeitar a atravessadores, durava dias. Além disso, tinha que ser preparada com muita antecedência, pois exigia que se levasse comida e aparatos para os pernoites em praias localizadas ao longo do caminho.
Desde aquela época, a religiosidade ocupava um lugar importante na comunidade, que tem uma igreja devotada a Santo Antônio. Conceição dos Santos Pereira, filha do casal fundador de Coroca, contava que seus bisavós tinham uma imagem do santo, que foi passando de pai para filho e, por causa dessa a imagem, Santo Antônio acabou se tornando padroeiro de Coroca. Há quem diga que a imagem teria sido esculpida em madeira pelo próprio bisavô de Conceição, que seria marceneiro e devoto de Santo Antônio. Além da devoção da família fundadora, Coroca teve outras influências religiosas. Foi um padre católico, da ordem Verbita (do Verbo Divino), quem teve a ideia de implantar no local um projeto turístico de base comunitária que poderia gerar mais renda e recuperar a mata já bastante destruída.
De tambaquis a quelônios
José Gross era alemão e conseguiu levantar em seu país o dinheiro necessário para as primeiras ações. O propósito inicial era criar tambaquis no lago Coroca mas, ao pedirem autorização ao Ibama, os ribeirinhos foram aconselhados a trocar os peixes por quelônios (tartarugas amazônicas). Os tambaquis não foram abandonados, apenas perderam o protagonismo no projeto turístico, seja pelo atrativo visual das tartarugas – que podem ser vistas e alimentadas a partir de uma balsa –, seja pelo apelo ecológico que elas representam pelo fato de, ao menos por enquanto, servirem apenas para observação e preservação da espécie, que já esteve bastante ameaçada de extinção.
Quando a criação chegar a um determinado patamar, o Ibama poderá autorizar a comercialização de um pequeno percentual de tartarugas, já que sua carne é um prato apreciado na região. Caberá à comunidade decidir o que fazer. Enquanto isso não acontece, a remuneração dos ribeirinhos por essa atividade vem apenas da visita guiada. Quanto aos tambaquis, sua função é alimentar a população local e os visitantes, complementando a pesca no Arapiuns que, por ser um rio claro, não é rico em sedimentos nem tampouco em peixes.
Para organizar a criação, foi fundada a a Associação dos Produtores Rurais e Criadores de Peixe da Comunidade de Coroca – Aprucipesc, que mais tarde incluiu entre suas atividades a produção de mel.
Da polinização à venda de produtos
A decisão de incluir a criação de abelhas no rol de atividades comunitárias de Coroca levou em conta, segundo o guia Orimar Pereira, não apenas a renda gerada pelos produtos, como mel, pólem e própolis, mas também a importância desses insetos para a preservação ambiental.
As abelhas, para quem não sabe, são responsáveis por grande parte da polinização das plantas e hoje em dia assumem um importante papel nos projetos de reflorestamento e de recuperação da biodiversidade. Seu desaparecimento, segundo os especislistas, seria capaz de comprometer toda a cadeia alimentar.
Em Coroca, foi adotada não apenas a apicultura, mas também a meliponicultura – criação de abelhas sem ferrão, nesse caso, a Jandaíra – que além de proporcionarem um manejo mais fácil, por não exigirem equipamentos de proteção, têm como principal característica a seletividade, ou seja, polinizam apenas as espécies nativas, contribuindo mais intensamente para a preservação ambiental.
O gerenciamento das colmeias de ambos os tipos é feito pelos próprios moradores que vão passando o conhecimento para as próximas gerações. Além das técnicas de criação, eles aprendem a beneficiar o mel e tudo é feito em parceria com moradores de São Francisco e Camuci.
Para fortalecer a atividade, e divulgar o trabalho comunitário, foi criada a Festa do Mel, realizada na primeira quinzena de janeiro, quando ocorre o ápice da produção. Além dos produtos originais, são preparados pudins, bolos, doces e até sabonetes. Os moradores aproveitam o apelo do mel para divulgar outros produtos como, por exemplo, a banha de tartaruga e o artesanato.
Tradição ancestral na Comunidade de Coroca
Ao lado dos quelônios, dos tambaquis e das abelhas é produzido o artesanato conhecido como Trançados do Arapiuns, feito a partir da palha de uma palmeira espinhosa, uma espécie de tucumã, que recebe o nome de tucumã piranga. O trabalho começa com a coleta do broto e a retirada dos espinhos. Em seguida, é preciso colocar a palha para secar ao sol durante três dias. “Coloca de manhã e retira de tarde”, conta a artesã Neida Pereira Rego, neta dos fundadores da comunidade.
A próxima etapa é a de tingimento, feito com corantes naturais como o amarelo da batata do açafrão, o laranja do urucum, o vermelho da folha do crajiru, o roxo da folha da capiranga e o preto do fruto do jenipapo. Isso sem falar nas misturas como a das sementes do jenipapo e do açafrão que resulta no verde e a das folhas de capiranga e língua de vaca que dão origem ao azul petróleo. Com a palha tratada e tingida, é hora de escolher o tipo de trança e os desenhos, geralmente geométricos, mas sempre criados livremente por cada artesão.
A tradição é ancestral, mas não há informações sobre a época em que surgiu nem sobre sua origem étnica exata. É possível que tenha vindo dos Arapiuns, um povo que viveu na região e deu nome ao rio, mas a única coisa que se sabe concretamente é que, ao longo das décadas, esse conhecimento foi passando de mãe para filha.
Com Neida foi assim. Ela aprendeu com a mãe, Conceição, que aprendeu com a avó Fausta. Neida, por sua vez, já ensinou às quatro filhas – Neiduane, Neuciane, Niete e Niely – e às netas Sofia, Isabela e Ana Luiza, ainda meninas. Quando começou a aprender, a própria Neida ainda era criança e fazia cestinhas para as bonecas. Aos 12 anos, já sabia tudo e começou a participar da produção, mas demorou para que a atividade se tornasse realmente vantajosa. Foi preciso criar a Associação de Artesão e Artesãs Trançados do Arapiuns – Aarta e obter ajuda de programas governamentais para que as artesãs tivessem acesso a pontos de venda e se vissem livres de atravessadores que adquiriam as peças a preço de banana. Os programas também ajudaram no aperfeiçoamento das técnicas de acabamento.
No mesmo ano em que foi criada, a entidade já recebeu dois prêmios: o Iespes – concedido pela instituição de ensino superior de mesmo nome, voltada para o desenvolvimento da Amazônia – e o Top 100 do Sebrae, que se repetiu em 2008. Depois vieram outros e um deles possibilitou a construção da sede da associação que abriga uma loja e é abastecida com energia solar. No início eram apenas 15 pessoas de três comunidades: 12 mulheres, e, sinal dos tempos, três homens. Hoje a Aarta reúne 80 artesãos de sete comunidades: Coroca, Vila Brasil, Vila Gorete, Vista Alegre, Nova Pedreira, Tucumã e São Miguel.
Não bastasse a criação de renda para as mulheres e homens engajados no projeto, a associação despertou novas necessidades. Neida talvez seja o exemplo mais radical: ela decidiu retomar os estudos, chegando a se formar em Administração, e seguiu buscando formação complementar. Em 2010, recebeu o prêmio Prêmio Sebrae Mulher de Negócios nas categorias municipal (Santarém), estadual (Pará) e regional (Norte), na condição de representante da Aarta. E ainda foi finalista do prêmio nacional. Hoje está lutando pelo registro de uma marca coletiva para os produtos da associação. Em sua opinião, os trançados do tucumã não são apenas um artesanato. Embora as peças tenham funções utilitárias, decorativas e até de ornamento pessoal, como brincos e colares, Neida enfatiza o seu valor imaterial:
A gente não vende só um artesanato. A gente comercializa valores, cultura, sonhos, conquistas e também natureza.
O sistema agroflorestal
Todas essas atividades ganham respaldo no sistema de Agrofloresta – uma forma de produção milenar, inspirada nos ecossistemas naturais, que adquiriu base científica a partir da década de 1970. Por esse sistema, as espécies perenes como árvores, arbustos, palmeiras e bambus dividem espaço com a cultura agrícola e os animais. Essa associação mantém o solo sempre coberto, evitando erosão. As espécies se favorecem mutuamente com a troca de nutrientes e ocorre um aumento da infiltração de água. Tudo isso resulta na recuperação da fertilidade.
Em Coroca, o sistema agroflorestal aplicado conjuntamente na produção e na agricultura familiar fornece desde a mandioca, que está presente em uma variedade de alimentos e bebidas da culinária local, até os elementos que compõem o artesanato. tanto a palha do tucumã como os frutos, folhas ou raízes de espécies como açafrão, jenipapo e urucum, de onde se extrai os corantes. Além disso, algumas espécies fornecem ração para a criação de peixes e tartarugas. Caso da bacaba, uma palmeira da família do açaí.
Além de toda essa integração orgânica que aos poucos vai tornando o sistema autosustentável, o cultivo em forma de agrofloresta permitiu que os ribeirinhos replantassem uma área de mata estimada em cerca de 20 hectares. A má notícia é que, ao lado de todo esse esforço de recuperação, existe uma força contrária que ainda não se conseguiu controlar: a entrada de grupos estranhos à comunidade que fazem extração ilegal de madeira.
O turismo na Comunidade de Coroca
O turismo é uma das principais fontes de renda da comunidade, que cobra pela visita e ganha, também, com o Restaurante Pés na Areia, capaz de servir até 100 pessoas por dia. Além disso, comercializa o mel, seus derivados, e o artesanato. Mas as atividades turísticas ocorrem somente durante o verão amazônico, que se estende entre julho e dezembro, pois nos outros meses os rios sobem alagando as praias e grande parte dos atrativos ribeirinhos, como é o caso da Ilha do Amor, em Alter do Chão. Isso afasta os turistas de toda a região até mesmo de Coroca que não é tão atingida pela elevação das águas.
Quem chega para visitar Coroca no verão, pode fazer o programa completo. Ao longo de uma pequena trilha, tem a oportunidade de observar as colmeias de abelhas jandaíra, alimentar centenas de tartarugas e visitar a lojinha dos trançados, que enche os olhos de qualquer um. Tudo com suporte de um guia da própria comunidade, que possui a vivência das atividades e descende ou se agregou a descendentes dos fundadores. Depois da caminhada, é hora de saborear um tambaqui criado no lago Coroca ou uma galinha de capoeira trazida dos quintais da comunidade.
Os que se encantam com o lugar podem permanecer mais tempo para aproveitar a praia ou descansar nas redes. E se o dia não for suficiente, é possível pernoitar na comunidade. Hoje já existem duas pousadas em Coroca, mas pertencem a pessoas que não fazem parte da comunidade. Há também as famílias que se dispõem a hospedar. Mas o abrigo oficial da comunidade é o redário, instalado em um quiosque na beira do rio.12
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais do Pará: Santarém / Alter do Chão / Theatro da Paz
- 2 Leia, também, matérias sobre trabalhos comunitários sustentáveis: Barefoot College, em Tilônia /
Comunidade de Coroca – Margem esquerda do Rio Arapiuns – Santarém – Pará – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1) Silvio Oliveira
- (2,3,4,5, 11, 12, 13 e 14) ) Sylvia Leite
- (6,7,8,9, 10 Niete Pereira
Consultoria
- Neida Pereira - sócia fundadora da Associação de Artesãos e Artesãs Trançados do Arapiuns- Aarta
- Luciana Carvalho - Professora de Antropologia da Ufopa
Referências
- 1. “Tessume de histórias: os trançados do Arapiuns” Iphan, Instituto do Patrimônio Histórico – Santarém – Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa)
- Instagram da Comunidade de Coroca
Para saber mais
- Você pode conhecer os detalhes do passeio turístico à Comunidade de Coroca no blog Tô no Mundo, do jornalista Silvio Oliveira
Excelente história de desenvolvimento comunitário. Conheci Coroca através do Projeto Bagagem, um turismo de base comunitária . Adorei reviver e aprender sobre sua história. Parabéns Sylvia!
Que legal, Gusta. Bom saber que já foi lá e que a matéria lhe trouxe boas recordações.
Adorei conhecer um pouco mais sobre a Comunidade de Coroca e a forma como eles utilizam o turismo sustentável para ter alguma fonte de rendimento.
É muito interessante mesmo. Um exemplo a ser seguido.
Matéria sob perspectiva muito interessante. Atiça a curiosidade do leitor. O Blog está cada vez melhor.
Valeu, Márcio. Volte sempre!!Toda semana tem matéria nova por aqui.
Gente! Que bacana conhecer a Comunidade de Coroca através de seu post. Uma ótima opção de passeio, descanso e aprendizado. Como é bom fazer turismo e aprender sobre sustentabilidade.
Muito bom mesmo. Dá alegria testemunhar o trabalho de uma comunidade que ganha dinheiro sem destruir. Mais que isso, ganha dinheiro recuperando e preservando.
Delícia de texto, Sylvinha! Belo exemplo de arranjo comunitário. Ainda quero conferir tudo isso de perto!
Você vai adorar, Soninha. Além de ser uma experiência pra lá de interessante, o lugar é lindo e ainda tem o banho de rio. Isso sem falar na loja de artesanato, que dá vontade de comprar tudo.
Estou relendo este seu post e aprendendo mais! Muito especial saber da existência da Comunidade de Coroca. É incrível ver cada vez mais comunidades como essa trabalhando no turismo e sustentabilidade.
Verdade, Deyse. Eu também fiquei encantada com essa comunidade e impressionada como essa ideia do turismo de base comunitária está se espalhando e dando certo. Uma grande contribuição para a preservação ambiental.
Sylvia, que legal conhecer a Comunidade de Coroca através de seu post.
Uma ótima opção de passeio, descanso e aprendizado.
Como é bom aprender sobre sustentabilidade. Eu adoro muito esse tipo de turismo. Valeu!!!
Eu também, Hebe, gosto muito desse tipo de turismo e quero conhecer muitos lugares como a Comunidade de Coroca..
Adorei saber mais sobre o turismo com sustentabilidade da Comunidade de Coroca! Acho que esse tipo de passeio só vai aumentar nos próximos tempos:)
Concordo. Acho que vai aumentar bastante porque as pessoas estão começando a entender a importância desse tipo de projeto.
Não conhecia a Comunidade de Coroca. Adorei ler seu post! Fiquei com vontade de visitar.
Você não vai se arrepender. è muito interessante o trabalho que eles fazem. Sem contar que a paisagem é linda e o artesanato também.
Bela história parabéns por divulgar cada beleza desse pais
Obrigada, Rutinha. a Comunidade de Coroca é mesmo uma beleza. Volte sempre. Toda semana tem matéria nova no blog.
Por favor pode me informar o telefone que é DIRETO com na Comunidade COROCA .
Passa pelo whats 11 999003418
Grata a Rita
Vou passar seu número para o pessoal da comunidade.