Alter do Chão: um encontro de duas culturas

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 30/04/2024 por Sylvia Leite

Ilha do Amor em Alter do Chão - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAConta a lenda, ou a História, não se sabe ao certo, que um jovem seminarista português trazido pelos jesuítas ao Brasil – mais precisamente ao local que hoje conhecemos por Santarém, no Pará -, apaixonou-se por uma índia tapuia e com ela viveu um romance desaprovado tanto pelos portugueses como pelos nativos. Expulsos da aldeia, foram parar em um banco de areia localizado no rio Tapajós, em frente ao lugar que hoje conhecemos como Alter do Chão, e ali morreram juntos, depois de serem bastante maltratados 1. Por causa dessa narrativa, o tal banco de areia foi batizado como Ilha do Amor e, séculos depois, transformou a vila de Alter do Chão – hoje distrito de Santarém – em um destino de importância internacional. 

Grande parte dessa fama deve-se a uma reportagem publicada no jornal The Guardian, segundo a qual Alter do Chão é a praia mais bela do Brasil. Embora a classificação seja um tanto exagerada e imprecisa – já que temos milhares de outras lindas praias certamente não visitadas pelo correspondente do periódico inglês – não é de sePraia da Ilha do Amor em Alter do Chão - Foto de idobi em wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMORIA estranhar que ele tenha se encantado tanto com o lugar.

Além da areia branquinha rodeada de água cristalina, e do próprio formato do banco de areia, que cria um desenho capaz de encantar qualquer turista, para chegar até a Ilha do Amor – que na verdade não é uma ilha e sim um cabo –  é preciso nadar ou usar uma pequena embarcação, o que torna a experiência ainda mais interessante.  E, para completar, é fascinante refletirmos sobre duas particularidades locais: a primeira é que, embora percamos de vista a outra margem do rio, como se estivéssemos diante de um oceano, a Ilha do Amor é uma praia fluvial, portanto banhada por água doce, e a outra é que, na estação seguinte, tudo aquilo desaparecerá sob as águas que inundam a região durante todo o inverno amazônico.

Floresta Encantada em Alter do Chão - Foto de Lais S Nunes em Wikimedia - BLOG LUGARES DE MEMORIAAlter do Chão: um paraíso das águas 

Água é o que não falta por aquelas bandas. Não é à toa que essa pequena vila do município de Santarém dá nome ao maior aquífero do Brasil – o Alter do Chão. Esse aquífero se estende pelos estados do Pará, Amazonas e Amapá – e seu volume de água é estimado em 86,4 mil km³, mais que o dobro do Guarani, que tem maior extensão na superfície e até pouco tempo atrás era considerado o mais volumoso do País.

Como a Ilha do Amor e grande parte dos mais de 100 km de praia da região existem apenas no período de agosto a janeiro – quando as águas baixam, e ocorre o chamado verão amazônico – essa é a época considerada ideal para se conhecer a região. Mas há quem discorde dessa tese, alegando que a estação das águas também oferece uma experiência fascinante marcada por fartos banhos de rio e por passeios de barco de tirar o fôlego.

Um desses passeios é pela Floresta Encantada, que, segundo os paraenses, é chamada assim por causa doPessoas carregam o símbolo da Festa do Çairé - Foto site do Governo do Pará - BLOG LUGARES DE MEMORIA encantamento que causa nos visitantes. Na verdade, trata-se da vizinha2 Floresta Nacional do Tapajós, conhecida como Flona, que no inverno amazônico fica alagada proporcionando uma inusitada experiência de navegar entre árvores e arbustos. 

A terra do Çairé

Além de praia lendária, muita água e uma floresta encantada, Alter do Chão tem também uma festa, denominada Çairé,  ou Sairé, que, assim como a Ilha do Amor, é internacionalmente conhecida e também reflete um encontro entre portugueses e índios, só que, nesse caso, a união foi aceita por muito tempo.

Quem escolhe visitar a vila na segunda semana de setembro, tem oportunidade de desfrutar dessa celebração que é tida como a tradição cultural mais antiga da região Norte e uma das mais importantes manifestações populares do país.Personagens e símbolo do Çairé - Foto Site do Governo do Pará - BLOG LUGARE DE MEMORIA

O Çairé dura cinco dias e mistura elementos religiosos com profanos, originários tanto da cultura portuguesa, como da cultura Borari. Historiadores acreditam que a festa exista há mais de 300 anos, mas não há unanimidade quanto a sua autoria.

Para alguns, a celebração foi criada pelos índios em agradecimento aos portugueses, para outros, foi uma iniciativa dos jesuítas com o propósito de divulgar valores europeus e incutir a religião católica na aldeia Borari.

Procissão para busca de mastros do Çairé - Foto do site da Prefeitura de Santarém - BLOGLUGARES DE MEMORIASeja quem for o autor, o traço mais marcante da festa é a mescla entre ‘o santo e o profano’, como se diz na região, e entre as duas culturas. Isso fica bastante evidente em seu símbolo maior que, por um lado, reúne três cruzes alusivas à Santíssima Trindade e, por outro também recebe o nome de Çairé – uma palavra indígena do idioma Nheengatu e usada para saudação, que pode ser traduzida como Salve!

O Çairé era realizado orginalmente em várias cidades e vilas da Amazônia, mas, talvez em decorrência de uma proibição ocorrida em 1943, por parte da Igreja Católica, desapareceu em todas as outras, permanecendo apenas em Alter do Chão. Mesmo em Alter, deixou de existir por três décadas, sendo retomado apenas em 1973.

A festa atual guarda vários elementos originais ou inseridos nos primeiros temos, como as procissões fluviais que envolvem a busca, o levantamento e a derrubada dos mastros, mas também incorpora novidades, entre as quais se destaca o Duelo dos Botos, introduzido em 1997, que talvez constitua a parte mais profana e a menos tradicional Pessoas carregam o símbolo da Festa do Çairé - Foto site do Governo do Pará - BLOG LUGARES DE MEMORIAde todas as celebrações. Ainda assim, tem raízes na cultura local.

Trata-se de uma manifestação folclórica que dramatiza episódios de uma das lendas mais conhecidas da Amazônia: a história do boto que se transforma em homem e engravida donzelas, que dão à luz os famosos ‘filhos de boto’3.

O duelo se dá entre as agremiações do boto Tucuxi e do boto Rosa. Ambas encenam a mesma mesma narrativa sobre a Cunhantã-iborari engravidada pelo boto amazônico e a reação de seu pai, Tuxaua, que mata o boto e, diante da fúria dos espíritos, pede ao pajé que o ressuscite. Vence o duelo quem fizer a melhor apresentação.

A terra do Çairé é, antes de tudo, a terra dos Boraris, que habitavam a região muito antes da chegada dos portugueses, mas sua história também está fortemente marcada pela cultura desses colonizadores, a começar pelo nome do município que presta homenagem a uma cidade portuguesa homônima, a exemplo do que ocorre com outras vilas e até municípios municípios do Pará, como é o caso de Santarém, onde Alter do Chão está localizada, além de outros como Óbidos, Alenquer, Aveiro, Bragança e Ourém.

O batismo de povoações com nomes portugueses se deu em 1758, quando o então governador Francisco XavierBar quiosque de palha na Ilha do Amor 1 - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal, visitou aldeias ocupadas por missionários jesuítas com o fim de elevá-las a vilas. Mas a história portuguesa de Alter do Chão começa por volta de 1626 com a chegada dos primeiros missionários e se firma em 1661 quando o Padre Manoel Pires institui na Aldeia Borari a Missão de Nossa Senhora da Purificação.

Hoje, mais de quatro séculos depois, Alter do Chão ainda mantém o nome recebido dos colonizadores, assim como várias outros traços culturais, mas a identidade do povo Borari, do qual descende grande parte de seus seis mil moradores, está cada vez mais forte e pode ser notada especialmente, nas duas festas mais importantes da vila: o famoso Çairé e o Festival Borari. Este último, embora menos conhecido, tem um importante significado para Alter do Chão pois é o momento em que a parcela da população identificada como Borari apresenta os próprios costumes e tradições aos outros nativos e aos visitantes, garantindo, assim, a sua perpetuação.

Mas nem tudo é festa ou turismo em Alter do Chão. A região vive ameaçada pelas atividades econômicas não sustentáveis e já começam a surgir fortes sinais de destruição. Um exemplo claro dessa ameaça é o escurecimento das águas, normalmente límpidas, do rio Tapajós, que já vinha ocorrendo em outros pontos desde 2019 e chegou a Alter do Chão em janeiro de 2022. 4

Notas

  • 1 A história, ou lenda, que narra o romance do seminarista português com a índia tapuia está registrado no Livro da Irmandade da Companhia de Jesus segundo conta Wilde Dias da Fonseca em seu livro Santarém: Momentos Históricos
  • 2 A Floresta Nacional de Tapajós está localizada nos municípios Belterra, Aveiro, Rurópolis e Placas, enquanto Alter do Chão pertence ao município de Santarém, mas devido à proximidade e ao grande movimento turístico de Alter do Chão, é de lá que saem os barcos para visitar a Floresta Encantada
  • 3 No Pará e em outras partes da Amazônia costuma-se chamar de filhos de boto às crianças que nascem de mãe solteira acreditando-se que essas mães foram vítimas do encanto do boto que se transforma em homem para seduzir donzelas
  • 4 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre o Pará: Santarém / Theatro da Paz / Comunidade de Coroca

Para saber mais

  • ‘Para

Alter do Chão – Santarém – Pará – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1 e 8) Sylvia Leite
  • (2) idobi em Wikimedia, CC BY-SA 3.0
  • (3) Lais.snunes em Wikimedia, CC BY-SA 4.0
  • (4, 5, 6 e 7) Site da Prefeitura de Santarém

Consultoria

  • Elizangila Dezinocourt - Pesquisadora da Cultura Popular

Referências

  • Livro Santarém: Momentos Históricos, de Wilde Dias da Fonseca
  • Blog do Padre Sidney Canto - Sidcanto (temporariamente fora do ar)
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Augusta Leite Campos
Augusta Leite Campos
2 anos atrás

Maravilhoso Sylvia toda a história e estória de Alter do Chão. O Tapajós é um ” marzao ” de lindas águas verdes com essa pérola que é Ater do Chão.

hebe
hebe
2 anos atrás

Alter do Chão é um destino que ainda não conheço, mas quero muito. Quero ver de perto esse encontro das duas culturas. Amei o post!

Sonia Pedrosa
2 anos atrás

Alter do Chão está na minha lista de lugares que já amo. Só preciso ir lá conferir e me emocionar.

Luciane
Luciane
2 anos atrás

Que texto maravilhoso, eu não fazia ideia dessa parte cultural de Alter do Chão. Amei conhecer essa parte através do seu blog.

Luana
Luana
2 anos atrás

Que texto incrível sobre Alter do Chão. Vai me ajudar demais a organizar minha viagem de férias