Atualizado em 16/10/2024 por Sylvia Leite
Qualquer cidade, povoado ou paisagem do sertão mineiro é capaz de nos fazer lembrar os textos de Guimarães Rosa, mas há alguns lugares que, de diferentes maneiras, parecem impregnados por sua obra.
Entre eles estão Cordisburgo, sua terra Natal; Morro da Garça, cenário do conto Recado do Morro; Andrequicé, onde viveu o vaqueiro que inspirou o personagem Manuelzão, da novela “Uma Estória de Amor”; e, mais recentemente, Sagarana – um distrito do município de Arinos, provavelmente visitado pelo escritor nas andanças que ele fez pela região, e que, ao longo do tempo, foi tecendo relações com seu universo literário.
A Vila de Sagarana, como é conhecida, é resultado da desapropriação, pelo governo, das fazendas Boi Preto e Logradouro para a implantação de um dos primeiros assentamentos da reforma agrária em Minas Gerais. Conta-se que a escolha do nome deveu-se a uma experiência vivida pela equipe do Incra, na volta para Belo Horizonte depois de uma visita ao local. Os técnicos teriam decidido parar em Cordisburgo para visitar o Museu Guimarães Rosa e, ao informarem-se sobre as obras o escritor, um deles teria percebido que as narrativas da obra Sagarana retratam tanto a paisagem como o povo do lugar onde o assentamento seria implantado.
Sagarana foi o primeiro livro publicado1 de Rosa, lançado em 1946. É uma coletânea de nove contos – alguns deles muito conhecidos, como A hora e a vez de Augusto Matraga – todos ambientados no sertão mineiro. O título, como várias outras palavras que aparecem em sua obra, é um neologismo que une o substantivo saga, de origem germânica, ao sufixo ‘rana’, de origem ‘tupi’. O primeiro nomeia jornadas heróicas ou histórias e lendas repletas de incidentes. O segundo é usado para designar semelhança2. A junção dos dois resultaria em algo como “Semelhante a uma saga” ou “Parecido com uma lenda”.
Na vila, a paisagem e a cultura retratadas por Rosa misturam-se à realidade concreta de aproximadamente 600 moradores, que vivem da pecuária de leite, da agricultura familiar e da extração de frutos do cerrado, como pequi e baru. Embora não chegue a ter peso direto na economia local, por reunir um pequeno número de pessoas, o artesanato também é parte importante da cultura de Sagarana, especialmente a fiação, a tecelagem e o bordado.
As mulheres que realizam esse trabalho fazem parte de uma associação e da rede solidária Central Veredas, que reúne cerca de 150 artesãs de dez localidades da região. Além de perpetuar a cultura sertaneja, com suas técnicas de trabalho manual e seus cantos de trabalho, a central tenta contribuir para a sustentabiliade da região, buscando um incremento da produção de algodão.
Uma de suas líderes, a fiandeira Gersina Maria, foi homenageada com uma escultura em frente à sede da Associação de Fiandeiras, logo na entrada da vila. Outros personagens, reais e de ficção, também estão representados ao longo da cidade.
O circuito de esculturas de Sagarana
Uma complexa mistura entre literatura, religião e pensamento acadêmico caracteriza o jardim de esculturas 3 que se transformou em um dos maiores atrativos de Sagarana. De um lado, as referências literárias, com destaque para a imagem do próprio Guimarães Rosa, com sua famosa caderneta de anotações pendurada no pescoço. A escultura faz menção à viagem feita pelo escritor em 1952, que lhe rendeu dados e inspiração para sua principal obra, o Grande Sertão: Veredas.
A poucos metros, encontra-se um conjunto de esculturas que retratam a cena da pregação de São Francisco aos animais, representados, aqui, por uma onça parda, um lobo guará, um veado campeiro, um tamanduá, uma anta, uma ema e uma arara – animais que integram a fauna do cerrado. A influência franciscana aparece, ainda, em um presépio e no canteiro da entrada da cidade, que abriga uma imagem do santo e outra de Nossa Senhora Aparecida.
A terceira vertente é composta por apenas uma escultura: a imagem do educador brasileiro Paulo Freire segurando uma tela de computador com cenas do sertão. A ideia, segundo os guias locais, é evidenciar a afinidade entre os pensamentos de Rosa e de Freire, especialmente no que diz respeito à igualdade de valor entre as diversas culturas e visões de mundo.
A preservação da cultura e da natureza
O compartilhamento de culturas, saberes e fazeres foi o cerne do Festival de Sagarana, criado em 2008, em comemoração ao centenário de Guimarães Rosa, e realizado por sete anos seguidos. O objetivo do evento foi o de chamar a atenção de sertanejos e visitantes sobre a importância da preservação do cerrado e de suas veredas para a sustentação socioambiental e cultural da região.
O festival era realizado com a participação de profissionais, estudantes e pesquisadores de diferentes origens, formações e faixas etárias. Conhecedores do sertão e da tradição oral ao lado de estudantes e pesquisadores; agricultores familiares ao lado de aprendizes e praticantes de permacultura e da agroecologia; artesãos e grupos de folia de reis ao lado de artistas urbanos.
Embora não tenha sobrevivido, o festival parece ter ajudado a criar uma consciência de valorização e preservação das tradições e da natureza da região, que permanecem vivos em várias iniciativas como a organização dos artesãos, a Folia de Reis e a Estação Ecológica de Sagarana.
A Unidade de Conservação foi criada em 2003 e abrange uma área 2.340 hectares, que inclui importantes cursos d’água, vários tipos de vegetação – como mata seca, veredas e cerrado – além de inúmeras espécies vegetais e animais, inclusive espécies raras como a maria-preta-do-nordeste (knipolegus franciscanus).
O Caminho do Sertão
Pelo menos parte dessa movimentação cultural e socioambiental da vila deve-se a um projeto denominado Caminho do Sertão, que conduz anualmente dezenas de andarilhos por quase 200 km ao longo dos municípios de Arinos e Chapada Gaúcha.
A caminhada de sete dias é organizada por várias entidades do sertão mineiro e tem paradas em povoados e comunidades tradicionais relacionados de alguma maneira ao universo de Guimarães Rosa – caso de Morrinhos, já retratado aqui no blog.
Sagarana, marco inicial da carreira de Rosa, é o ponto de partida da jornada. Sua meta final é a sede do Município de Chapada Gaúcha – lugar onde está localizado o Parque Nacional Grande Sertão Veredas batizado assim em homenagem à principal obra de Guimarães Rosa. 4
Notas
- 1 O primeiro livro escrito por Rosa foi Magma - uma coletânea de poemas premiado pela Academia Brasileira de Letras em 1936 e publicado somente depois de sua morte.
- 2 Significados obtidos a partir de uma compilação livre de verbetes de diversos dicionários como Houaiss, Caldas Aulette, Aurélio e Pequeno Dicionário Tupi-Português, de Paulo Lemos Barbosa.
- 3 Todas as esculturas de Sagarana são obras do artista plástico Valdiney Carvalho.
- 4 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares que nos remetem à Literatura de Rosa: Cordisburgo / Serra das Araras / Morro da Garça / Paracatu / Especial (Dez lugares que nos remetem...)
Sagarana – Arinos – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3,4,5 e 7) Sylvia Leite
- (6) Arquivo/Divulgação do Festival de Sagarana
Referências
- Site da Prefeitura de Arinos
- Guia de Sagarana publicado pela Agência de Desenvolvimento Integrado e Sustentável dos Vales dos Rios Urucuia e Carinhanha
Colaboração
- Almir Paraca, professsor de História, ex-deputado estadual, ex-prefeito de Paracatu e coordenador do Caminho do Sertão.
- Toda equipe do Caminho do Sertão.
- Gasparina Borges Kriugre, moradora de Sagarana.
Livro
- Sagarana, de Guimarães Rosa
Sempre um conhecimento a mais, com as postagens do seu BLOG! obrigada!
Exquisito!!! Placer de lectura, de paseo y reconocimiento a Guimarâes Rosa! Muchas gracias Sylvia!
a memória pessoal agradece por mais uma dose de substancial contribuição para seu crescimento e, consequentemente, a memória coletiva também. obrigado e parabéns, Sylvia por nos apresentar mais um pedacinho desse nosso e incrível país..
Que delícia seu relato sobre Sagarana, Sylvinha!
Reportar Guimarães Rosa, Paulo Freire e Francisco de Assis num contexto de práticas agroecológicas só pode ser bom demais!
Bjs,
Val Cantanhede
Sagarana é especial mesmo, Val. Obrigada pelo comentário. Bjs
Eu que agradeço pelo comentário, Marcos. Volte sempre. Toda quinta tem matéria nova.
Eu que agradeço pela constância e pelo comentário.
Gracias a ti Liliana.
Valeu, Sidney, bjs
Sylvinha, lembrei dos meus tempos de colégio, quando li Sagarana! Preciso reler.
Muito legal, ler tudo isso escrito por você, que o faz com tanta leveza. Parabéns!
Gostei muito deste seu blog. E muito bom porque você faz um resumo de alguns livros da nossa literatura brasileira,relembrando os nossos conhecimentos adormecidos pela falta da leitura cotidiana. Parabéns!
O brigado por postar essa maravilhosa obra de sagarana so aprendi com ela Deus te ilumine!
Eu que agradeço pela leitura e pelo comentário. Pena que você não deixou seu nome.
Que bom que você gostou! Toda quinta tem postagem nova no blog. Acompanhe!
Valeu, Soninha. Bom saber que está sempre por aqui. Gente, Soninha escreve um blog de turismo muito legal. Vale a pena conhecer. http://existeumlugarnomundo.com.br/
Sylvia querida, mais um lugar que fiquei querendo conhecer através de sua linda matéria!! Li Sagarana no ginásio, ameiii, mas não sabia desse vilarejo vindo de fazendas após reforma agrária.
Amei saber, fiquei muito curiosa para conhecer.
Parabéns!! ������
Obrigada mais uma vez por outra matéria deliciosa. Guimarães é TUDIBOM…… ��������✨✨❤❤�������� Andrea
Eu que agradeço pelo comentário e por sua constância aqui no blog. Beijão
A cada vez me deliciando mais com seus textos�� parabéns pelo belo e significativo trabalho! Nilva Sadr
Obrigada, Nilva. Toda quinta tem matéria nova. Não perca. E se quiser ajudar o blog a crescer, compartilhe as postagens com seus amigos. Abraços, Syvia.
Adorei.
Esqueceu de deixar seu nome, mas obrigada pelo comentário.
Que interessante! Não conhecia a Vila de Sagarana. Fiquei animada em conhecer esse lugar que tem uma conexão com a obra de Guimarães Rosa.
É um lugar muito interessante mesmo. Vale a pena conhecer.