Atualizado em 07/05/2024 por Sylvia Leite
Quando se fala em Paris, as primeiras imagens que nos vêm à mente são o rio Sena, os boulevards, os charmosos cafés e museus como Louvre ou d’Orsay. Isso para não falar de ícones como a Torre Eiffel1, a catedral de Notre-Dame e o Arco do Triunfo. Mas Paris tem encantos que não fazem parte desse roteiro e, mesmo sendo antigos, permanecem desconhecidos de muita gente. É o caso das passagens cobertas conhecidas também como Passagens Parisienses.
Construídas, em sua maioria, no século 19, elas surgiram em consequência do desenvolvimento da indústria têxtil, que impulsionou o comércio e trouxe consigo a modernidade. Naquele momento tinha início a utilização das barras de ferro e a introdução do vidro nas construções, elementos que, juntos, deram forma a suas coberturas transparentes.
São becos abertos entre os prédios, inspirados nos souks orientais, que atravessam quarteirões encurtando distâncias e oferecendo a possibilidade de se viver a experiência das ruas em ambientes protegidos do frio, da chuva e de outros desconfortos do ambiente exterior. É o fora como se fosse dentro ou o dentro como se fosse fora.
Essa condição de ambiguidade e de intermediação marca as passagens parisienses desde o seu surgimento. Na época em que foram criadas, dizia-se que proporcionavam a comunhão entre o comércio e a arte – utilizada em vitrines e decorações – e faziam a ponte entre o passado e o futuro, já que uniam os antigos hábitos aos desejos de consumo que começavam a ser despertados.
Símbolos da transição
As passagens surgiram em meio às Exposições Universais em que a Agricultura, as Belas Artes e a Indústria apresentavam seus produtos a espectadores ávidos por novidades. Apesar de efêmeros, esses eventos deixavam rastros que se materializavam especialmente em monumentos arquitetônicos como é o caso da Torre Eiffel, inaugurada na Exposição Universal de 1889, em comemoração ao centenário da Revolução Francesa.
Na mesma época, despontavam os famosos panoramas – entretenimento precursor do cinema que proporcionava a observação da natureza dentro de um ambiente fechado, alterando a relação dos espectadores com a paisagem. Eram recintos redondos, com paredes cobertas por pinturas murais que, por meio de recursos luminosos e sonoros, infundiam no espectador a ilusão de visualizarem paisagens reais.
A cidade estava mudando e as passagens cobertas expressavam aquele momento de transição. A tal ponto que, décadas depois, tornaram-se tema e título de um monumental estudo sociológico empreendido por Walter Benjamin sobre as transformações econômicas e tecnológicas do Século 19 e seus impactos sobre a sociedade parisiense, especialmente em sua forma de percepção.
Tomando como base alguns conceitos psicanalíticos, Benjamin estudou diversos personagens que povoavam esse cenário de mudanças, entre os quais se destaca o flâneur– espécie de observador que traz consigo uma ambiguidade semelhante à das passagens.
São figuras tão complexas que, como disse o poeta e crítico de arte Charles Baudelaire, “a linguagem não pode definir senão toscamente”. Carateriza-se, segundo ele, pelo prazer que sente em “estar fora de casa, e contudo sentir-se em casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto ao mundo”.
O flâneur é o personagem símbolo das passagens parisienses, ora visto como vagabundo e ocioso, ora tido como um contestador da divisão do trabalho e considerado por Benjamim como um intermediário entre o burguês e a multidão. Sua atividade, a flânerie, é comumente traduzida por passear calmamente, apenas observando, e pode ser tranquilamente confundida com a contemplação exercida por muitos artistas.
O livro de Walter Benjamin nunca foi concluído e, mesmo assim, tornou-se um clássico, com publicações pelo mundo afora em edições que reúnem mais de mil páginas.
As passagens parisienses inspiraram um projeto social
Charles Fourier, considerado precursor do cooperativismo, viu nas “ruas-galerias” a possibilidade de integração entre as várias partes de Paris e, portanto, entre as classes sociais. Além disso, o fato de as passagens poderem abrigar, em um mesmo espaço, todo tipo de estabelecimento comercial ou artístico, fez com que lhe parecessem sistemas auto-suficientes.
Com base nessa ideia de completude e integração, Fourier criou um projeto urbano revolucionário, batizado como Falanstério ou falange, que teve eco em várias partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos e no Brasil
Eram organizações voluntárias, que deveriam ter no máximo 1.600 moradores e formar uma extensa rede colaborativa para dar origem a uma nova realidade social. Nesse sistema, cada um podia escolher seu trabalho e trocar de função quando desejasse.
Por inúmeras razões, a maioria durou menos de cinco anos. O único que quase chegou a uma década foi construído em Guise 2, no Norte da França, por Godin – um industrial de origem operária que era seguidor de Fourier. Apesar de não existir mais como falanstério, suas instalações estão preservadas e hoje funcionam como museu.
Passagens parisienses: um convite à ‘flânerie’
As passagens, ao contrário dos falanstérios, não desapareceram, mas chegaram a agonizar. Das cerca de 150 citadas na maioria dos registros, restam apenas 20 e algumas delas tiveram que ser resgatadas pois encontravam-se em estado de abandono.
A Jouffroi talvez seja a que preserva com maior nitidez seus traços originais. Nela sobrevivem o museu de cera Grévin, de 1882 – um dos mais antigos da Europa – e o hotel Chopin, tradicionalmente conhecido como um local romântico. Ali também podem ser encontradas lojas especializadas em brinquedos antigos, livros raros e bengalas.
No quesito luxo, enquadram-se a Véro-Dodat e Viviene. A primeira deve seu nome a dois ricos salsicheiros, Véro e Dodat, que decidiram contruí-la para encurtar caminho entre o Palais Royal e o Les Halles, antigo mercado da cidade. Hoje, a galeria reúne elegantes lojas e galerias de arte. A segunda é a mais famosa de todas, provavelmente por combinar uma arquitetura suntuosa, que inclui mosaicos e esculturas, com lojas de grifes famosas e lugares especiais para tomar vinho ou chá.
Algumas dessas passagens parisienses apresentam maior especialização. É o caso da Brady, que concentra lojas e restaurantes indo-paquistaneses. Em contraste com as anteriores, não possui qualquer luxo, mas revela uma face de Paris que só é conhecida pelos franceses ou por quem consegue visitá-la em companhia de um morador da cidade. Está localizada no Fraubourg Saint-Denis, uma região muito badalada e frequentada por jovens.
A du Caire, composta quase exclusivamente por lojas de armarinho, aviamentos e roupas, é a mais antiga de Paris. Foi foi construída em 1798, durante a campanha de Napoleão no Egito, e nos primeiros tempos concentrava ateliês de impressão e litografia.
Há ainda outras bastante famosas como a du Grand-Cerf, considerada uma das mais bonitas, e a Colbert, que pertence ao Instituto Nacional de História da Arte e reúne instituições dessa área e do Patrimôno Cultural. Todas as passagens remanescentes sofreram reformas ou restauros, mas até nessa transformação reside aquela característica inicial de ambiguidade: elas não foram completamente alteradas, mas já não são mais como antes, especialmente em seu significado.
O mais curioso, no entanto, é que dois séculos depois, e tendo atravessado tantas mudanças históricas, as passagens parisienses ainda consigam exercer fascínio e sigam convidando seus visitantes a, pelo menos por alguns momentos, aderirem à flânerie.3
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre a Torre Eiffel e o Museu dOrsay
- 2 Em algum momento teremos uma matéria específica sobre o Falanstério de Godin, construído em Guise. Aguardem!
- 3 Leia, também, matérias sobre outros lugares especiais da Europa: Alhambra / Murano / Guadix / Kilkenny / Óbidos / Fátima / Ronda / Assis / Guimarães
Para saber mais
- Quem deseja conhecer outros cantinhos especiais da capital francesa, pode acessar o blog Descobrir Viajando que preparou uma postagem sobre Passeios Românticos em Paris
- Para saber o que incluir em um roteiro de dois dias na capital francesa, acesse o blog Berço do Mundo
- Outra opção tentadora é descobrir lugares para conhecer na França inspirados na série Emily Em Paris
Passagens parisienses – Paris – França – Europa
Fotos
- Fotos de Laura Zacarelli e Adriana Straumann
- Ilustração de Paul Gavarni em Wikimedia- domínio público
Participação especial:
- Esta matéria contou com a colaboração de Adriana Straumann (Didi) que anos atrás me levou para conhecer as passagens e agora me ajudou a compor o mosaico da memória, complementando informações e tirando dúvidas.
Referência bibliográfica
- Passagens, de Walter Benjamin
Está melhor a cada semana… Parabéns pelo lindo blog, uma leitura obrigatória, toda quinta-feira!
Obrigada, Leandro! Bom saber que você é leitor assíduo. Beijo.
Excelente!
Obrigada. Faltou deixar seu nome!
Delícia …. de passeio. Gracias
Como sempre um texto claro e inusitado. Esse ano volto a Paris vou salvar o texto para me guiar por lá. Parabéns mais uma vez
Eu que agradeço, Hilda. bj
Faça isso. Você não vai se arrepender. As paisagens são fascinantes.
Maravilha de texto. Tudo bem organizado. Achava, que ter ido em Paris eu conhecia. Agora com todos esses detalhes para guardar na memória, foi muito legal. Parabéns, cada dia melhor. Beijos
Obrigada, Maria Helena! Bom ter você aqui toda semana. Beijo.
Eu conheci muitos anos atrás, levada por uma amiga que mora lá, Didi, e fiquei encantada. É uma viagem a um passado que não vivenciamos na época áurea, mas que podemos vivenciar agora. Uma sensação incrível. Bem diferente de visitar uma ruína, ou qualquer monumento histórico, porque lá continua pulsando.
Me senti inativada por essa sua excelente matéria, a conhecer essas passagens cobertas de Paris. Oxalá em breve possa conhecê-las. Grata. Beijs
Ops, acima quis dizer: fiquei instigada por ….
Corrigindo: me senti instigada por essa sua …
kkk
Eu entendi rsrs
São lindas. Você vai adorar!
muito inspirador. Obrigada por reunir estas informações sobre as passagens deixando-as à disposição. devidamente anotadas…. agora é partir para visitá-las!
Diva
Eu que agradeço, Diva, pela leitura e pelo comentário. Volte sempre. Toda quinta tem matéria nova no blog.
Delícia de texto! Obrigada!
Como sempre com matérias perfeitas. Um texto delicioso de ler. Parabéns!
Eu que agradeço, Marta, pela leitura e pelo comentário.
Obrigada, Hebe! Toda semana tem matéria nova no blog. Acompanhe! Abraço.
Que leitura incrível e deliciosa o seu texto sobre as passagens parisienses. Eu nunca tinha atentando para isso e desconhecia a história por trás dessas passagens. Paris é uma das minha paixões e adoro conhecer mais sobre aquela cidade. Obrigada pelas informações.
Eu que agradeço, Normeide. Pela leitura e pelo comentário. Toda quinta tem matéria nova no blog. Acompanhe.
Amei saber mais sobre as passagens parisienses. Estou com viagem marcada pra lá, anotei algumas para conhecer.
Ah, que legal! Depois me conte o que achou.
Seu post sobre as passagens parisienses me transportou diretamente para a cidade luz e suas ruelas, cafés e bistrôs. Muito bom relembrar!
Bom saber disso. As passagens parisienses são mesmo fascinantes e é u desafio passar esse clima para o leitor.
Há tanto o que descobrir em Paris que uma vida inteira não daria. Ótimo post, Sylvinha!
Verdade, e muitas das maravilhas de Paris ainda são pouco conhecidas pelos brasileiros, como é o caso pas passagens parisienses ou passagens cobertas.