Atualizado em 05/06/2024 por Sylvia Leite
O arquipélago de Murano, na Itália, seria hoje apenas um dos muitos lugares pitorescos que se pode visitar a partir de Veneza, não fosse um fato histórico ocorrido no finalzinho do século 13: a transferência compulsória para suas ilhas, de todos os vidreiros venezianos.
O motivo alegado pelos governantes foi dar fim aos constantes incêndios, pois a fabricação dos vidros envolve fogo e grande parte dos edifícios da cidade ainda era de madeira. Outra razão seria a poluição que os fornos provocavam na cidade. Em Murano, isso não seria problema por causa do vento que passa pelas ilhas e consegue dispersar a poluição.
Há quem afirme, no entanto, que a real intenção da mudança era confinar os mestres vidreiros, a fim de proteger seu conhecimento e evitar que as técnicas desenvolvidas ou aperfeiçoadas na região fossem levadas a outros países.
Seja qual for a verdade, o fato é que os especialistas em vidro foram mesmo proibidos de sair de Murano e conta-se que – talvez para compensar a proibição, ou mesmo para evitar o seu descumprimento, que seria punido com a morte – esses artistas tinham regalias que iam desde a autonomia para cunhar uma moeda própria das ilhas até a permissão para casar as filhas com qualquer integrante da nobreza.
Um dos segredos que os vidreiros não podiam divulgar seria o uso de soda cáustica na mistura logo depois que a areia é derretida, o que tornaria o vidro mais puro e mais flexível, aumentando a limpidez e facilitando o seu manuseio. Além disso, aqueles artistas guardavam sofisticadas técnicas de coloração em camadas utilizadas em vasos e peças de decoração e teriam descoberto como fabricar espelhos em vidro soprado plano utilizando uma mistura de prata e ouro em vez de estanho, como era comum na época.
Em pouco tempo, Murano tornou-se conhecida em toda parte tanto pelos espelhos como pelos lustres, que eram feitos sob encomenda para decorar palácios e castelos. Chegou a ser o maior produtor de cristal da Europa e, com o tempo, seu nome foi sendo associado a produtos obtidos a partir de diversas técnicas como Aventurine (cristais com fios de ouro), Millefiori (vidro multicolorido com padrões de flores) e Lattimo (leitoso), entre outras.
Murano: um objeto de desejo permanente
Apesar de terem aprendido a fazer vidro com bizantinos e islâmicos, e de não serem os criadores de boa parte das técnicas que utilizavam, os vidreiros venezianos estabelecidos em Murano aperfeiçoaram esse conhecimento e acabaram criando uma identidade ainda hoje respeitada no mundo inteiro.
A mistura de cores, os pigmentos metálicos ou a transparência, aliados à criatividade aguçada pela competição entre as famílias, parecem envolver as peças de Murano em uma espécie de fetiche que as fazem desejadas como verdadeiras joias.
São lustres, candelabros e vasos que vêm decorando as residências da nobreza europeia ao longo de séculos e acabaram se tornando peças indispensáveis nos mais requintados projetos de decoração – fruto de técnicas artesanais, passadas de pai para filho, sem nenhuma concessão às facilidades industriais – o que as torna exclusivas.
Millefiori: uma das ‘marcas registradas’ de Murano
Mas nem tudo que se produz em Murano é destinado à nobreza ou a ambientes requintados. A técnica Millefiori, por exemplo – que em Português significa mil flores – ficou conhecida principalmente pela utilização em pingentes e em pesos de papel.
Sua metodologia consiste na produção de canudos denominados ‘murrines’ que são recheados com outros mais finos e se organizam de maneira a formar desenhos de flores visíveis apenas nas superfícies superior e inferior. Depois de prontos, os canudos são fatiados dando origem a pequenas lâminas que, dispostas lado a lado, são fundidas e formam padrões .
Já a autoria é atribuída a romanos, fenícios ou alexandrinos e essa denominação italiana (Millefiori) teria surgido somente a partir de 1849, quando o fabricante inglês Apsley Pellatt a utilizou em seu livro “Curiosidades da fabricação de vidro”, mas foi com esse nome que ficou conhecida no mundo inteiro e hoje suas peças são automaticamente associadas a Murano.
A Milleifori adquiriu tanta fama em Murano que, na década de 1980, foi criada uma espécie argila semelhante a uma massa de modelar, que permite a aplicação dessa técnica de forma caseira, com fundição em forno doméstico. O resultado final é bem diferente do que é obtido em vidro, mas a técnica também é denominada Millefiori.
Do confinamento à exploração turística
Se na Idade Média os vidreiros eram escondidos para não passarem seus conhecimentos, hoje, que os segredos já foram espalhados pelo mundo, Murano parece estar sempre à espera de visitantes. Isso fica claro ao percorrermos a Fondamenta dei Vetrai – uma rua que margeia o canal e está repleta de lojas.
Nas vitrines, ao lado dos requintados lustres e peças de decoração, encontram-se copos, bijuterias e pequenos objetos – como cinzeiros, pesos de papel e miniaturas de animais – que parecem criados especialmente para serem vendidos como lembranças de viagem. E, para completar, as boas vindas aos visitantes são dadas também por esculturas de vidro localizadas em praças.
O lado oculto da produção de Murano
Pouca gente sabe, mas grande parte dos mosaicos históricos da Itália – como é o caso, apenas para exemplificar, dos encontrados na vizinha ilha de Torcello – são compostos por pedacinhos de vidro em forma de paralelepípedo produzidos em Murano e conhecidos como tesselas.
Atualmente, grande parte da produção moderna dessa arte é feita com pastilhas ou azulejos cortados por uma ferramenta denominada turquês, mas quem deseja compor um mosaico em estilo romano, com material igual ou semelhante ao usado nos monumentos antigos, precisa usar as tesselas de Murano. Mesmo assim, enquanto os lustres, candelabros, vasos e peças de Millefiori são divulgados por toda parte, as tesselas, além de não terem qualquer publicidade, não estão à venda no comércio.
Buscar pelos depósitos onde essas tesselas são comercializadas é algo que só interessa a quem trabalha ou trabalhou com mosaico, mas saber de sua existência aumenta o encanto do lugar e cria, para os visitantes, uma espécie de alerta que ajudará na identificação de materiais em cada obra de mosaico que eles forem observar de agora em diante.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais da Itália: Ponte Vecchio / Fontana di Trevi / Assis / Pantheon
Murano – Lagoa de Vezeza – Vêneto – Itália – Europa
Fotos
- (1) Fxxu / Pixabay
- (2) Kconnors / Morguefile
- (3) Artheos / Pixabay
- (4) Sylvia Leite
- (5) Lucian Petru / Pixabay
Para saber mais
- Próximo a Murano está a ilha de Burano, que também merece ser visitada. Para saber mais, acesse a postagem O que conhecer em Burano, no blog Vamos viajar para onde Agora? de Hebe Carvalho
Aiii Sílvia que demais seu trabalho !!!!!! Acabo de saber que tenho uma
Peça de Millefiori , meu pai me trouxe certa vez q foi pra Europa , eu não sabia q era uma peça dessa …. e ainda tenho o lustre de meu avô todo de cristal Murano , de geração a geração … e que demais saber que os vidreiros foram confinados lá …. Pütz , sou fã do seu trabalho viu !!! Paula Cecília
Obrigada, Paula Cecília. Bom saber disso. Volte sempre! bjs
Ótimo aprender tantas coisas interessantes sobre Murano, que em geral visitamos como turistas apressados, "chimando" os belíssimos cristais e levando de consolo uns pratinhos e bichinhos minúsculos (lindos, também). Obrigada, Sylvinha, por mais essa "viagem" que nos oferece, com sua marca de objetividade e concisão de sempre. Jane Netto
Já fui lá , mas não sabia da história. Adorei!
Sylvinha, muito bom saber mais sobre Murano! Com história, a visita se torna melhor, sem dúvida! parabéns!
ps. as fotos estão ótimas!
Valeu, Soninha! bj
Que bom. Mas queria saber seu nome. Não esquece de colocar da proxima vez?
Eu que agradeço, Jane, pela leitura e pelo comentário.Bjs
Lindíssimas !!!
Super interessante. O Blog continua trazendo histórias que nos deixam impressionados. Parabéns Silvinha.
Sylvia que interessante a história do Murano. Vou olhar com mais atenção entre os objetos de minha herança e identificar eles.
Augusta Leite Campos
Mais uma delícia de texto!
A arte em vidro é de uma beleza e de uma delicadeza impressionantes. A magia está presente nas mãos desses alquimistas.
Amei seu texto, Sylvinha!
Abraços
Val Cantanhede
Obrigada, Val. Bom te ver por aqui toda semana! Abraços
Obrigada, Gusta. Olhe sim, deve ter pelo menos uma peça.
Obrigada, Sidney. Feliz com sua assiduidade rsrsr bj
Concordo. Obrigada pelo comentário.
Que post mais maravilhoso, repleto de informações, curiosidades e muita beleza nas fotos. Quero muito conhecer a região. Sou apaixonado por esse trabalho artesanal. Amei a postagem!
Aiii essa ilha é uma beleza, que delicia viajar por Murano cm vc e saber um pouco mais sobre as curiosidades desse lugar tao pitoresco. 🙂
É uma beleza mesmo. O lugar é muito bonito e agradável e o trabalho com o vidro é fascinante.
Que bom que gostou, Lucio. O trabalho deles é realmente apaixonante. Se for, não deixe de visitar uma fábrica.
Que interessante, não conhecia a história da ida compulsória dos artistas do vidro para Murano. Post recheado de conhecimento. Não vejo a hora de voltar para Veneza para conhecer Murano e Burano também.
Todas as ilhas da região são interessantes. Breve farei matéria sobre Torcello, que também é incível.
Só estive em Murano na primeira viagem que fiz à Europa. Visitei as oficinas e comprei algumas peças.Quando retornei a Veneza, muitos anos depois, queria ter visitado apenas Torcello mas acabamos ficando só por Veneza. Adorei saber da história de Murano como um reduto de artistas do Vidro.
Sabendo dessa história tudo começa a fazer mais sentido, não é mesmo? Torcello também é um lugar encantador. Brave teremos materia aqui no blog.