Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Muita gente, no mundo inteiro, come pão no café da manhã. O nordestino prefere cuscuz. É claro que quando o assunto é gosto não se pode generalizar, mas basta passar uns dias na região para constatar que se isso não for inteiramente verdade, pelo menos está longe de ser mentira. E o costume fica ainda mais aparente na medida em que nos deslocamos para o interior. A escritora Rachel de Queiroz, em seu livro “O Não me Deixes – Suas Histórias e Sua Cozinha”, chega a dizer que o cuscuz é o pão do sertanejo.
É difícil encontrar no Nordeste, um cozinheiro ou uma dona de casa que não saiba preparar a iguaria. A receita é aparentemente simples. Basta umedecer a farinha de milho – ou de arroz – com água ligeiramente salgada, deixar a mistura descansar um pouco e colocar para cozinhar no vapor. Os mais detalhistas acrescentam uma colherinha de tapioca, ou de farinha de mandioca, ‘que é para dar liga’. Mas quem já se arriscou a por a mão na massa, sabe o quanto é difícil deixar o cuscuz fofinho, sem solar por excesso de água ou esturricar por falta de hidratação.
Como a quantidade de água é medida ‘a olho’, é preciso ter alguma experiência para acertar o ponto de umidade. E o pior de tudo é que isso garante apenas um resultado correto, aceitável no dia a dia. Para conseguir fazer aquele cuscuz especial é preciso, como se diz no Nordeste, ter mão boa para o preparo da massa. E não podemos esquecer de um detalhe importante: para fazer a iguaria é preciso ter um cuscuzeiro – panela de cozimento a vapor que pode ser encontrada em qualquer feira ou loja popular da região.
No Nordeste se come cuscuz com manteiga, com ovos, com charque, carne ensopada ou de sol , com frango, com queijo, com leite e açúcar e por aí vai.
O consumo principal é no café da manhã. Em algumas casas, o costume se repete no jantar, ou café da noite. Com menos frequência, tem até quem coma cuscuz no almoço, principalmente desmanchado como farofa.
Hoje o cuscuz está presente nas mesas de todas as classes sociais da região, da mais rica à mais pobre, mas nem sempre foi assim. No Brasil colonial, o prato era visto como um alimento de segunda categoria, reservado apenas aos escravos e às famílias de trabalhadores braçais.
O próprio milho tinha um status inferior a outras culturas – como algodão, cana de açúcar e café – , por não ser considerado lucrativo e destinar-se exclusivamente à subsistência familiar. Já entre os escravos, o cereal tinha um significado que ultrapassava as esferas nutricional ou econômica, e assumia um caráter sagrado, constituindo uma das principais oferendas ao orixá Oxóssi, divindade relacionada à caça e à comunidade. Suas sementes simbolizavam prosperidade e suas folhas traziam boa sorte. E isso acabava aumentando a importância do cuscuz nas senzalas.
Uma herança dos Amazighs
Até aqui, o assunto foi cuscuz nordestino, mas existem vários outros, tanto no Brasil como em outras partes do mundo. A origem de todos está na África, mas em uma região diferente daquelas de onde vieram os africanos escravizados pelo Brasil. O primeiro cuscuz que se tem notícia era feito pelos amazighs (também conhecidos como bérberes – termo percebido como pejorativo por esses povos por significar bárbaros). Os amazighs eram nômades que habitavam o Noroeste do continente1, numa região conhecida como Magrebe1 – palavra árabe que significa Poente ou Ocidente – e misturaram-se aos árabes que chegaram à vizinha Península Ibérica no século 8, aderindo inclusive à religião islâmica. Talvez por isso, alguns registros atribuam a esse prato uma origem árabe.
O cuscuz teria surgido entre os séculos 11 e 13, entre o final da dinastia Zirid e a ascensão do califado Almohade, e sua primeira referência escrita estaria no Livro de Culinária do Magrebe e Andaluzia (Kitab al-tabikh fi al-Maghrib wa’l-Andalus) de autor desconhecido. Seu nome original no idioma dos amazigh é Seksu e vem da raiz √KS, que significa “bem formado, bem enrolado, arredondado”, mas há quem garanta que o prato foi nomeado pelo som do cuscuzeiro, que seria semelhante à pronúncia da palavra Seksu. Seja qual for a a motivação que levou à escolha desse nome, o fato é que ele foi transportado para o árabe como kuskus e daí para o francês couscous e para o português cuscuz.
Desses nômades africanos, o cuscuz nordestino herdou, principalmente, o modo de fazer – com cozimento a vapor -, e a cuscuzeira – taseksut em Amazigh e kiskas em Árabe – usada desde a idade média no Magreb. Herdou, ainda, alguns tipos de acompanhamento, como carne ou frango ensopados, embora no Norte da África os guisados de carneiro ou de legumes sejam mais frequentes, em muitos casos acompanhados de frutas secas.
O uso do milho foi uma adaptação brasileira, pela abundância do cereal e por uma provável influência indígena. A matéria prima do cuscuz norte-africano – que conhecemos como cuscuz marroquino – é a sêmola de trigo. Outra diferença é que o cuscuz nordestino é geralmente feito em forma de bolo para ser cortado em fatias, enquanto o segundo é servido soltinho, com aparência de farofa2.
A tradição do cuscuz amazigh mantém-se viva, com maior ou menor intensidade, em todos os países do Magreb, com inúmeras variações de acompanhamentos. Na Tunísia, por exemplo, é comum se usar peixe e frutos do mar. Na mesma Tunísia, na Mauritânia e na Líbia, o cuscuz pode ser acompanhado por crane de camelo.
A convivência entre amazighs e árabes por cerca de sete séculos fez com que a iguaria fosse levada para o Maxerreque – em Árabe, Levante ou Oriente –, região que inclui todos os países árabes a leste da Líbia. O Egito, por exemplo, repete uma tradição do Marrocos de cuscuz doce, servido como sobremesa. E o mais curioso é que o cuscuz do Magrebe chegou também a Israel, levado pelos judeus que deixaram a Península Ibérica.
O Cuscuz paulista
Foi também a partir de Portugal e da Espanha que o cuscuz chegou ao Brasil. E talvez sejamos o único país em que a iguaria norte-africana se desdobrou em pelo menos dois pratos inteiramente diferentes, mas conhecidos pelo mesmo nome3. Quem mora no Sudeste, ou anda por lá, sabe que além do cuscuz nordestino temos também o cuscuz paulista. E há outros menos conhecidos em Santa Catarina, Paraná, Minas Gerais, além de variações do nordestino na Bahia e em outros estados, mas, nesta matéria, vamos nos contentar com o nordestino e o paulista. E entre esses dois as diferenças já Amazighsão muitas.
Desde a maneira de fazer até os acompanhamentos, que no caso do cuscuz paulista são usados dentro da própria massa, como uma espécie de recheio: tomate, ovos cozidos, peixe (que pode ser substituído por frango ou porco) e, em alguns casos, frutos do mar e conservas de azeitona, ervilha ou milho. Os paulistas também não usam cuscuzeira porque sua massa não é cozida no vapor.4
Uma diferença importante é que o cuscuz paulista é servido no almoço e no jantar enquanto o do Nordeste compõe principalmente a mesa do café da manhã e do café da noite. Sorte nossa que, se soubermos fazer os dois ou encontrarmos quem saiba, podemos nos deliciar com o nordestino no café da manhã e com o paulista no almoço, deixando para a noite a possibilidade de repetirmos um ou outro.
Notas
- 1 Países do Magreb habitados por Amazighs: Marrocos, Argélia, Tunísia, Mauritânia e Líbia.
- 2 Talvez por praticidade. Muitos hotéis e restaurantes do Nordeste, especialmente os de esquema ‘self service’, adotam o cuscus desmanchado em forma de fatofa, mas esta não é a tradição da maior parte do Nordeste.
- 3 Alguns países africanos têm pratos similares ao cuscuz, mas os nomes são diferentes e não há evidências de que tenham se originado no cuscuz amazigh.
- 4 Leia, aqui no blog, matérias sobre outras tradições culturais do Nordeste: Bumba meu boi, Cordel, Queijo do Reino, Ini ou rede de dormir
Cuscuz – Nordeste – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,3) Germana Gonçalves de Araújo - @editoracodice
- (2) Wikimedia - Usuário:Toluaye, Domínio público
- (4) Domínio público - Luce Ben Aben - Library of Congress Prints and Photographs Division Washington, D.C. 20540 USA
- (5) Dominio público
- (6) Catskingloves
- (7) Rainer Zenz , Wikimedia CC BY-SA 3.0
- (8) Everton137, Wikimedia CC BY 3.0
Livros
- A História da Alimentação No Brasil., Luiz da Câmara Cascudo, Luiz (1963) - Global Editora.
- Cuscuz, um livro de memórias afetivas, de Germana G. de Araújo e Breno Loeser - Editora Códice
Bem Silvinha, como nordestino não tenho dúvidas da necessidade de um bom cuscuz de manhã cedo. Mas, depois desse seu fantástico mergulho no assunto, toda manhã vou me sentir dando um grande passeio pela história.
Excelente Sylvia. Há realmente uma arte em fazer um bom cuscuz nordestino…nem sempre o simples é fácil!
Como sempre, importantes e ricas informações. Parabéns
Esta é a ideia do blog kkk fazer com que as experiências se tornem mais significativas rsrsr Tô brincando.
Com certeza. Disse isso não apenas como repórter mas, principalmente, como nordestina kkk Eu não consigo fazer um cuscuz especial, mas conheço gente que consegue rsrsr
Queria muito saber seu nome. Da próxima vez não esqueça, ok?
Matéria Maravilhosa!!! Parabéns Sylvia!!!
Matéria maravilhosa!!
Depois de meses em casa, hoje estou indo ao Mercado Central e vou aproveitar para comer um cuscuz com carneiro. Muito interessante a história desse prato tão marroquino.
Gostei muito Sylvia da matéria. O meu faço assim para cada xícara do pó do milho, meia xícara de água e uma colher de sobremesa de tapioca em pó e sal. Como todos os dias. Parabéns prima pela reportagem.
Obrigada pelo comentário e pela receita. Beijo
Pena que você não deixou seu nome. Da próxima vez não esqueça.
Obrigada, Paulo. Que bom que gostou.
Obrigada, Paulo!
Excelente postagem, é realmente um patrimônio gastronômico. Eu moro em SP e aqui em casa consumimos cuscuz com atum ou frango, adorei conhecer mais sobre a história.
existem muitas variações, não é mesmo? todas ótimas.
Gosto demais de cuscuz Sylvia, e concordo que ele é um patrimônio cultural
e gastronômico do Nordeste. Sou nordestina, baiana e sempre tive cuscuz à
mesa, desde criança. E gosto muito do cuscuz paulista também que vim a
conhecer bem mais tarde, com minhas andanças por aí. Adorei conhecer sobre
as origens dessa comida que mata a fome de tanta gente por aqui. Obrigada.
Eu que agradeço. Pela leitura e pelo comentário. Toda quinta tem matéria nova no blog. Acompanhe!
Quando estive no nordeste a trabalho, em diferentes cidades, tinha cuscuz quase todo dia no café da manhã. Realmente, Cuscuz é um patrimônio gastronômico e cultural do Nordeste que aprecio!
Quando estou no Nordeste, como todo dia rsrs
eu adooooro o cuscuz nordestino e o magrebino. Ja o paulista nao sou fã.
muito interessante conhecer a historia, como sempre post nota 10!
Obrigada, cleonicein. Volte sempre.
Que interessante ler sobre as origens do cuscuz e como ele chegou a Brasil, não tinha visto nada a respeito sobre essa comida que é parte da identidade nordestina e eu adoro!
Que bom que gostou, Fabiola. A próxima nessa área de comida será sobre a Maniçoba rsrsr Fique ligada.
Gostei muito de saber mais sobre as origens do cuscuz, estive agora na Bahia e Alagoas e comi muito cuscuz. Adoro!
Delícia, não é? Sou de Aracaju e na minha casa tinha cuscuz todo dia no café da manhã. Ainda tem. Eu é que não moro mais lá rsrs.
Sempre amei comer Cuscuz: patrimônio gastronômico e cultural do Nordeste! Agora já sei toda história dessa comida maravilhosa!
Maravilhosa mesmo. O melhor café da manhã do mundo é cuscuz com ovo.
Nossa! Eu mão fazia a menor idéia de que o cuscuz tinha tanta história e era tão antigo assim. Achei que fosse comida dos escravos do Brasil colônia , mas não sabia que tinha se espalhado pelo mundo todo.
A gente se acostuma com as coisas e nem procura saber a origem, não é mesmo?
Sabe que em meus 30 anos de vida eu nunca tinha comido cuscuz? Esse ano de pandemia eu experimentei novas receitas e fiquei apaixonada pelo sabor! Adorei saber que é um patrimônio gastronômico e cultural do Nordeste.
Cuscuz é realmente um prato incrível. Difícil encontrar quem não goste. Obrigada pelo comentário.
Que felicidade encontrar, finalmente, um texto absolutamente fiel à origem do Cuscuz e à história de sua chegada e disseminação pelo Brasil. Como tenho centenas de amigos norte-africanos e saarianos dos diversos países da África povoada por gente amazigh, conheço a história do cuscuz por fontes primárias e posso garantir que seu texto não deixaria nenhum desses amigos chateados rs Só acrescento um pequeno reparo: o termo “bérbere” foi criado na Antiguidade com referência à “bárbaros” e assim foi assumido por todos os invasores/conquistadores/colonizadores do norte da África e região saariana. Por isso, é percebido como tendo conotação pejorativa para o povo Amazigh – que é como se auto identificam os povos indígenas nativos dessa região africana. Árabes, espanhóis e franceses, depois dos antigos romanos, jamais fizeram questão de reconhecer a identidade Amazigh e essa visão colonialista sobre “bárbaros/bérberes” impregnou os livros ocidentais até hoje; mas através de estudantes, professores e jovens via internet, há um esforço coletivo para corrigir essa injustiça histórica. Na parte que nos toca, penso que o Cuscuz Amazigh adaptado pelos portugueses de sangue ou cultura herdada dos “mouros” (outro termo criado por europeus para diferenciarem-se dos norte-africanos cheios de melanina) no nordeste do Brasil é um ótimo porta-voz dessa mensagem dos norte-africanos e saarianos sobre sua ancestralidade compartilhada conosco (inclusive pelo DNA, mas esse é outro papo rs) Obrigada ✌
Que bela contribuição! Eu não tinha atentado para a conotação pejorativa do termo berbere que, aliás, eu usava com certo prazer por achar a palavra bonita. Veja o que faz a falta de conhecimento!! Obrigada por me informar. Corrigi imediatamente. Obrigada!
Aproveito para sugerir que leia outras matérias do blog que podem ser do seu interesse como Liberdade (resgatando os elementos afros), Mussuca (comunidade quilombola), Redenção (primeira cidade brasileira a abolir a escravatura) e Laranjeias (texto que contempla a resistência da cultura afro). Talvez te interessem também as matérias sobre Alhambra, Mesquita de Córdoba, Cádiz, Ronda e Algodonales.
Belo texto sobre o cuscuz, Sylvinha, um patrimônio nordestino da maior importância. Confesso que fui descobrir o cuscuz já adulta, olhava com desdém, mas quando experimentei, vi o tamanho da minha ignorância e o tempo que eu havia perdido.
Cuscuz é tudo de bom. Quando estou em Aracaju, como cuscuz com ovo todos os dias hahaha Pra mim, não existe melhor cardápio de café da manhã.
Adoro cuscuz como boa nordestina hehehe. Aqui em nossa casa faz parte de nossa mesa sempre. Meu filho do meio está morando na França por um período, levou uma cuscuzeira e lá compra farinha de milho. Adorei o post.
Que bom que gostou, Cynara. E bom também saber que, como eu, você é fã do cuscuz nordestino. Eu gosto de todos, na verdade, mas para café da manhã o nordestino é imbatível.
Ai que delícia um cuscuz no café da manhã! Mexeu aqui com minhas lombrigas rsrs Desde que me mudei pro nordeste como cada vez menos pão, isso é verdade. Cuscuz e tapioca são quem manda!
Delícia mesmo, Marcella. Quando estou no Nordeste como cuscuz todos os dias. E ultimamente tenho estado por aqui a cada 30 dias.