Atualizado em 02/06/2025 por Sylvia Leite
Quando João Guimarães Rosa (o Joãozito) nasceu, em 1908, sua cidade natal, Cordisburgo, era distrito de Paraopeba que, por sua vez, pertencia à comarca de Curvelo. Os dois municípios até hoje tentam tirar de Cordisburgo a condição de berço do escritor. Talvez por essa razão, ambos têm presença marcante em sua obra, mas foi Curvelo que ele distinguiu com o título de “‘cidade capital’ da minha Literatura”.
A declaração foi feita em carta escrita aos curvelanos para justificar sua ausência na Semana da Comunidade de 1963, mas, diplomacia a parte, o Curvelo parece ter mesmo inspirado o escritor em muitos momentos. Foi explicitamente citado 19 vezes em sua obra. Além disso, ali viveram seus trisavós e, em época posterior, alguns tios e primos, além do médico José Lourenço – que teve grande importância em sua vida real e na vida literária de um de seus mais conhecidos personagens: o menino Miguilim.
O médico que salvava vistas
Foi o doutor José Lourenço de carne e osso quem descobriu a miopia do escritor, quando ele ainda era criança, em Cordisburgo. A experiência foi poeticamente narrada na novela “Campo Geral”, do livro “Corpo de Baile”, no episódio em que o mesmo médico, ali transformado no personagem literário doutor José Lourenço do Curvelo, percebeu a deficiência visual de Miguilim: “E o senhor tirava os óculos e punha-os em Miguilim, com todo o jeito. — Olha, agora! Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessôas”.1”
O bisneto do médico, o sociólogo, escritor e jornalista Sérgio Abranches, conta que ‘vovô Juca’, como era chamado pelos descendentes – netos e bisnetos -, “era um médico de múltiplos talentos e um deles era fazer oftalmetria, examinando o olho sem aparelho especializado e encomendando a lente com o grau aproximado”.
Pelos cálculos de Sérgio, seu bisavô Juca deve ter ajudado centenas de crianças: “fazia a encomenda da lente e distribuía os óculos, de graça para os pobres e pelo custo para os que podiam pagar”. Não era oftalmologista e tinha consciência disso, “mas como não os havia na região, tratava como emergência”. No caso do menino Joãozito, José Lourenço teria recomendado a seu pai, o comerciante Florduardo Rosa, que o levasse a Belo Horizonte para fazer um exame mais preciso.
O médico, segundo o bisneto Sérgio, não costumava falar sobre trabalho, pois esses feitos lhe pareciam corriqueiros e para ele Joãozito era apenas o filho do Rosa. “Ele não estava ligado que o menino tinha se transformado em um grande escritor”.
Ao contrário do personagem Manuelzão, que inspirou um outro conto do mesmo livro2 e acabou virando celebridade, o doutor José Lourenço permaneceu no anonimato. E sua casa, que poderia ter sido transformada em um museu a fim de contar essa história – e as demais relações da cidade com a obra de Rosa -, foi demolida com autorização do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Curvelo.
O que restou da relação com Rosa
Mesmo sem a casa do doutor José Lourenço, restam aos curvelanos algumas referências à obra roseana e ao próprio médico personagem, que foi homenageado com uma rua no centro da cidade.
A memória de Rosa está registrada em uma comenda concedida pela Câmara Municipal a benfeitores da Cultura, em uma rua no bairro Bela Vista e em uma linha de ônibus.
O escritor e sua obra ganharam, ainda, um bairro inteiro, formado por casas populares de um programa governamental, onde as vias foram batizadas com nomes dos livros, novelas e principais personagens, especialmente do “Corpo de Baile” e do “Grande Sertão:veredas”.
Miguilim, claro, é um dos contemplados. Ele, Riobaldo (foto), Diadorim, Manuelzão – nomes que se cruzam com os de obras como Sagarana, e até com o nome de seu Florduardo Rosa, o pai do escritor. Pena que nem todos os moradores ou frequentadores do bairro sabem o que significam esses nomes.
A secretária Karina Melo, moradora do número 203 da rua Brejeirinha, conta que “quando as casas foram sorteadas explicaram que as ruas tinham nomes de obras e personagens de Guimarães Rosa, mas muita gente chegou depois e não ficou sabendo disso”. Caso da vendedora Jéssica Núpcias Paranhos, que vive há quatro anos no número 107 da Rua Manuelzão e tem parentes na rua Miguilim. Ela já tinha ouvido falar no escritor, mas não sabia que aqueles nomes foram dados em homenagem a ele.
O mesmo aconteceu com a doméstica Cassia Vieira, moradora do número 53 da rua Riobaldo. Cassia disse que nunca lhe falaram nada sobre Guimarães Rosa nem sobre seus livros e personagens. Ao ser indagada sobre a denominação das ruas, ela comentou: “esse bairro tem cada nome diferente!”.
Trabalho social e memória literária
Em contraponto a essa perda de memória, a Cooperativa Dedo de Gente – que forma e apoia jovens artesãos – traz à tona personagens e outros elementos da obra de Rosa. O envolvimento com a Literatura começou em 2006, quando o grupo foi convidado, pela Casa de Cultura de Curvelo, a participar de uma exposição comemorativa pelos 50 anos de Grande Sertão Veredas e Corpo de Baile.
O primeiro passo foi a leitura e a contação de trechos das obras. O escultor e instrutor de serralheria Ronaldo de Souza Lima, que trabalha há 21 anos na cooperativa, conta que no início não entendia nada que estava escrito nos livros até que descobriu o conto “O Burrinho Pedrês”3. “Aí eu comecei a ler e fui contando a história pros meninos e a gente começou a desenvolver as peças a partir daquilo e da ilustração dos livros que era do Poty.”4
O resultado dessa experiência foram 14 peças alusivas à obra de Rosa, além de uma escultura maior de Manuelzão (personagem do livro “Corpo de Baile”) e outra do cavalo Siruiz ao lado de Riobaldo (personagem narrador do “Grande Sertão:veredas”).
Durante algum tempo, o cavalo ficou na cooperativa, porque, como lembra Ronaldo, a escultura tinha um valor sentimental, mas depois acabou sendo vendido e hoje está na Faculdade de Veterinária de Montes Claros. Na cooperativa ficou a escultura de Manuelzão, além do hábito de ler as obras de Rosa e tomá-las como inspiração.
Uma academia de letras familiar
A preservação da memória de Rosa é feita também por seus parentes curvelanos, que criaram a Academia Familiar de Letras João Guimarães Rosa. O grupo era formado inicialmente apenas por mulheres, todas descendentes dos avós do escritor, tanto pela parte dos Guimarães, como pela parte dos Rosa. E pelo menos no início, nenhuma delas era escritora profissional.
“O intuito primeiro era fazer encontros para que as primas lessem umas para as outras o que elas escreviam”, conta Lenice Guimarães de Paula Pitangui, uma das criadoras da entidade. Na verdade, nem todas eram parentes entre si porque descendiam de duas famílias – Rosa e Guimarães – mas segundo Lenice, era como se fossem, tamanha a proximidade. Depois o grupo cresceu, primeiro com a entrada de homens e, em seguida, com a abertura a pessoas que não têm qualquer laço de sangue com o escritor.
Para uma instituição que nasceu de modo tão informal, a Academia já rendeu grandes frutos. Atualmente, promove palestras e estudos sobre Guimarães Rosa, pesquisa personagens reais, edita um jornal e já publicou alguns livros. Um deles, de edição artesanal – quase uma apostila – e intitulado “Rosa em familia”, reúne casos sobre o escritor contados por várias primas. Rosa e sua obra também são personagens de Cordéis escritos pelo primo Evandro Guimarães de Paula, que já editou dezenas de títulos sobre outros temas.
A principal publicação da Acedemia, no entanto, é o livro “Ave, João”, assinado pela prima Enny Guimarães de Paula, mãe de Evandro e de Lenice. Ao longo de 142 páginas, Enny traz informações inéditas sobre a vida pessoal e profissional do escritor, suas viagens pelo sertão e revela até um espírito brincalhão que não costuma aparecer nas biografias.
A Basílica de São Geraldo
Mas a relação com Guimarães Rosa é apenas uma das faces de Curvelo, e, por incrível que pareça, talvez a menos conhecida. Se fizéssemos uma pesquisa entre os católicos, certamente a cidade seria identificada primeiramente com a Basílica de São Geraldo.
A igreja, construída entre 1912 e 1919 por missionários redentoristas holandeses, é a única do mundo dedicada exclusivamente ao santo. Antes dela, havia em Curvelo a bicentenária capela de Nossa Senhora do Rosário – que foi demolida para dar lugar à basílica..
Apesar de sua construção ter custado a demolição da capela histórica, conta-se que a basílica foi erguida com apoio popular, o que envolveu desde mão de obra voluntária até doação de material. Talvez tenha contribuído para essa aceitação, o fato da nova igreja ter preservado a imagem de Nossa Senhora do Rosário e lhe dado o lugar de segunda santa de devoção.
Mais que um templo religioso de Curvelo, a Basílica de São Geraldo é um dos principais santuários de Minas Gerais e talvez do Brasil. Seu principais eventos religiosos – a Oitava e o Trido de São Geraldo – atraem anualmente milhares de fiéis de todo o país. Além disso, a igreja mantém um centro de capacitação de jovens para o mercado de trabalho.
São Geraldo foi um irmão leigo da Congregação do Santíssimo Redentor, que pertence à Igreja Católica. Era italiano e serviu à ordem como sacristão, porteiro, enfermeiro e alfaiate. É considerado protetor de vários grupos sociais, entre eles o das pessoas falsamente acusadas por ter sido, ele próprio, vitima de uma mulher que dizia ter sido engravidada por ele. Talvez por esse episódio de sua vida, é também protetor das gestantes, dos fetos, das mães e das crianças. Mas é venerado, ainda, por alfaiates, porteiros e leigos, em referência às funções que exerceu na congregação.
Zuzu Angel: estilista e militante
Provavelmente tão pouco conhecido como a relação de Curvelo com Guimarães Rosa é o fato do município ser terra natal de Zuleika Angel Jones, a famosa Zuzu Angel. A estilista – ou costureira, como ela preferia ser chamada – tornou-se célebre no Brasil e no exterior por seu trabalho inovador e pela luta que travou contra a ditadura militar.
Zuzu era movida principalmente pela busca do corpo do filho, Stuart Angel – militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (o MR 8) que desapareceu em 14 de maio de 1971 depois de ser preso pelas forças da repressão. Segundo denúncia do também preso politico Alex Polari de Alvarenga, ele morreu na mesma noite vítima de tortura.
Em um de seus desfiles mais famosos – realizado na embaixada do Brasil nos Estados Unidos – Zuzu Angel denunciou a violência do regime por meio de estampas com tanques de guerra, anjos amordaçados e pássaros engaiolados.
Cerca de cinco anos depois da morte do filho foi a vez de Zuzu desaparecer em circunstâncias suspeitas, em um desastre automobilístico com seu Karmann Ghia, na saída do antigo túnel Dois Irmãos, no bairro de São Conrado, Rio de Janeiro. Mais de duas décadas depois, a Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos políticos responsabilizou o regime militar pela tragédia.
A memória da estilista de Curvelo ficou marcada no túnel, que, em 1978, foi rebatizado com o nome Zuzu Angel. É também no Rio de Janeiro que funciona o Instituto Zuzu Angel – a primeira ONG de moda do Brasil, criada em 1993, por sua filha Hidelgard Amgel – e a Casa de Zuzu Angel, que reúne, em seu acervo, registros da trajetória de Zuzu como estilista e como militante. A casa também abriga coleções de outros importantes estilistas brasileiros e se dedica à restauração e à conservação de texteis.
Em Curvelo, a memória da estilista se resume a uma rua, no centro da cidade. Há, no entanto, um esforço recente de resgate de sua memória. Prova disso foi a exposição “Zuzu Angel: Olhares de Liberdade”, com vestidos assinados por ela, além de textos e imagens que narram sua polêmica história. Dentro do mesmo evento, foi lançada a coleção de óculos homônima inspirada em suas estampas.
Zuzu e Rosa não se conheceram, mas se quisermos estabelecer uma relação entre os dois podemos dizer que além de terem ousado na linguagem de seus trabalhos artísticos, ambos trilharam perigosos caminhos em defesa de seus ideais humanitários.
Ela, como estilista, ao fazer protestos públicos e muito barulho contra a ditadura militar brasileira; ele, como cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo, quando – estimulado por sua mulher, Aracy Moebius de Carvalho (foto) – emitiu passaportes para judeus que precisavam sair da Alemanha para escapar do regime nazista.
Notas
- 1 Conto Campo Geral, livro Manuelzão e Miguilim, página 129. Edição digital da Global Editora
- 2 Conto Uma Estória de Amor, no livro Maunelzão e Miguilim
- 3 Conto do livro Sagarana
- 4 Ele se refere ao desenhista, gravurista e ilustrador Napoleon Potyguara Lazzarotto, autor do famoso mapa do sertão, criado para a segunda edição do Grande Sertão:veredas que compõem o mapa do sertão
- 5 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares relacionados à obra de Guimarães Rosa: Cordisburgo / Sagarana / Morro da Garça / Morrinhos / Andrequicé / Paracatu / Gruta de Maquiné / Corinto / Araçaí / Caminho do Sertão / Parque Grande Sertão Veredas
Curvelo – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,8,10,11) Sylvia Leite
Referências
- Site Prefeitura de Curvelo
- Levantamento sobre o termo Curvelo na obra de Guimarães Rosa, de Neli Defensor Sant'Anna Martins
- Artigo Vovô Juca e Miguilim, de Sérgio Abranches - Ilustríssima - Folha de São Paulo
- Depoimento de Ronaldo de Souza a Neli Defensor Sant'Anna Martins
- Página da Cooperativa Dedo de Gente no portal Minas Gerais
- Livro Ave João, de Enny Guimarães de Paula
- Site Casa Zuzu Angel
Colaboradores
- Maria de Fátima Coelho Castro
- Alexia Fernanda Lourenço
- Rosa Haruco
- Neli Defensor Sant'Anna Martins
- Maria Marismene Gonzaga
- Marcos Viana
- Ivan Carlos Maglio
- Edilberto Assumpção de Araújo
- Fumiko Araújo
- Doralice Mota
Ótimas informaçoes
Que bom que gostou. Curvelo é um lugar muito interessante! O blog tem outras matérias sobre cidades da região. E virão outras. Acompanhe!
Oi Sylvia, adorei seu post!
Queria fazer uma correção, e algumas sugestões, se me permite!
Quem nasce em Curvelo é curvelano!
Temos também aqui de Curvelo, uma das vozes mais lindas do Brasil, de Luís Cláudio Castro, que musicou e gravou um poema de Guimarães.
Temos também a família Cardoso, Maria Helena e Lúcio, grandes escritores e Adauto Lúcio, jurista e ministro do Supremo, que teve uma atitude inédita quando o Supremo votou a favor da constitucionalidade da censura prévia, depois do voto dele, que era contra este arbítrio, ele despiu-se da sua capa, atirou-a na sua cadeira e retirou-se do plenário!
Correção feita, Marta. Obrigada por avisar. Agradeço também pelas informações que enviou, pois enriqueceram o conteúdo da página.
Temos também, daqui de Curvelo, o fantástico Alceu Penna, ilustrador e figurinista da revista O Cruzeiro!
Obrigada, Marta. Curvelo é realmente um lugar especial.
Que maravilha de texto, amei.
Legal
Curvelo é legal mesmo!
Olá, Sylvia!
Que ótimo ler sua matéria, que resgata essa memória literária em nossa Cidade!
Parabéns!
Obrigada, Geraldo. Caso interesse, o blog tem algumas matérias sobre cidades mineiras relacionadas à obra de Guimarães Rosa e ainda virão outras. Acompanhe!
Boa noite , Sylvia! Sou coordenador do Museu Vivo de História Local da Faculdade de Ciências Humanas de Curvelo. Pesquiso sobre Curvelo e procuro visualizar, de forma pedagógica, o resultado do meu trabalho. Um dos objetivos é enriquecer o acervo do museu sobre Curvelo. Encontrei o seu blog, enquanto investigo o que já foi publicado sobre a relação entre a obra de Guimarães Rosa e Curvelo. Parabéns pelo seu trabalho! Geraldo.
Obrigada, Geraldo. Talvez lhe interesse conhecer também a relação de outros lugares do sertão mineiro com a obra de Rosa. Já há várias matérias sobre o tema no blog e virão outros.