Colônias pomeranas capixabas: onde tudo se faz em mutirão

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 08/05/2024 por Sylvia Leite

Jovens em mutirão - Foto Ednéa Harchb- BLOG LUGARES DE MEMÓRIAJuntamento é o nome dado pelos pomeranos – alemães vindos da região da Pomerânia – ao costume de se ajudar mutuamente em todas as situações que podem ser resolvidas de forma coletiva. A expressão, criada por eles, vem da palavra portuguesa ajuntamento que significa agrupamento de pessoas. Nas colônias pomeranas do Espírito Santo, as famílias se agrupam para realizar trabalhos de interesse coletivo, como construir cemitérios e escolas, ou para viabilizar projetos familiares como colheitas, construção de casas e organização de festas.

Foi por meio de um juntamento que se construiu, com a técnica do barro úmido socado em fôrmas de madeira, a primeira igreja luterana do Espírito Santo, no município de Domingos Martins. Uma de suas características mais marcantes é a espessura das paredes, quatro vezes maior que a média atual. A obra já tem cerca de cem anos e nunca precisou ser reformada.

São também os juntamentos que estão por trás da tradição do casamento (hochtied), tido como uma das festas mais importantes das colônias pomeranas. Quando um pomerano decide se casar, os preparativos envolvem toda a asal de pomeranos - Foto de Ednéa Harckbart - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAcomunidade. Um ‘convidador’ (hochtiedsbirrer), geralmente irmão da noiva, é encarregado de fazer a convocação oral em sua língua de origem, o dialeto pomerano (pomerisch-platt).

Ele veste sua roupa domingueira (sündoschstüüch), coloca flores e fitas no chapéu e na lapela, e leva na mão uma garrafa, também enfeitada, da tradicional bebida fermentada à base de gengibre (gengibirra). Em cada sítio que chega, reúne a família dos proprietários para dar a notícia. Depois bebe com eles. O texto recitado, embora tenha conteúdo profano e bem humorado, leva o nome de oração do convidador do casamento (hochtijdsbirargibeed).

Num gesto de aceitação ao convite, o que envolve a presença na cerimônia e a colaboração com os preparativos, a dona da casa prende uma fita ou lenço colorido na roupa do convidador, que termina o dia bem alegre e cheio de penduricalhos. Mas é preciso ficar atento a um detalhe: tanto nos enfeites como nos lenços e fitas de confirmação, está ausente o amarelo pois os pomeranos acreditam que essa cor pode trazer azar aos noivos.

Cozinheiras convidadas - Foto Ednéa Harchbart- BLOG LUGARES DE MEMÓRIAA colaboração chega das mais diversas formas: doação de ingredientes, empréstimos de panelas, pratos, talheres e copos, além do pagamento dos músicos, com o qual cada convidado colabora, deixando alguma quantia dentro de uma cesta já na entrada da festa. As melhores cozinheiras (hochtiedskoca) da região são convidadas pelos pais dos noivos para comandar a cozinha e não cobram pelo trabalho. Ao contrário: sentem-se reconhecidas por terem sido escolhidas.

As festas de casamento costumam durar três dias. O baile da sexta-feira é um encontro íntimo, iniciado com a cerimônia do quebra-louças (puldaroowand ou polterowend), em que pratos são atirados ao chão e seus cacos sã varridos pelos noivos e enterrados em volta da casa para dar sorte. Trata-se de um momento de confraternização entre os que se envolveram nos preparativos. Na mesma noite, é servido um jantar cujo prato principal é uma sopa de miúdos de galinha (hinapoudan). Os pomeranos acreditam que, por ser uma ave que cisca, a galinha afasta tudo que possa prejudicar a felicidade dos noivos. Ao final, começa o baile, ao som de pequenas sanfonas conhecidas como concertinas.

Casamento tradicional nas Colônias Pomeranas Capixabas - Foto de Edson Chagas - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA A cerimônia religiosa é realizada no sábado de manhã, também para convidados, e em seguida os noivos saem em cortejo pela cidade. Durante todo o dia, a casa fica aberta com bolos e doces em cima da mesa. À noite, é realizado o segundo baile de concertinas. Nessa noite, é permitida a entrada de não convidados, inclusive pessoas que estejam visitando a cidade, desde que paguem uma quantia determinada pela família da noiva para ajudar nas despesas da festa. No domingo, é realizado um almoço que reúne os restos do que foi servido nos dois primeiros dias.

Um costume que está caindo em desuso nas colônias pomeranas, mesmo entre os que ainda festejam o casamento de forma tradicional, impressiona e instiga a curiosidade: é a noiva vestida de preto. Durante anos, historiadores acreditaram que se tratasse de um protesto pelo fato dos senhores feudais pomeranos obrigarem as camponesas a passarem a primeira noite de casada com eles. Mas pesquisadores recentes contestam essa tese e apresentam outra explicação: o vestido preto é um símbolo da morte social da noiva, que deixa a casa de sua família para ir viver com os parentes do noivo e assumir um novo papel familiar”.

Os pomeranos são brasileiros

Pomeranas na cozinha - Foto de Ednéa Harckbart - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAHá quem diga que a colaboração faz parte da natureza dos pomeranos. É provável que sim. Mas quando chegaram ao Brasil, eles não tiveram escolha: ou se juntavam ou não sobreviveriam às dificuldades, que iam desde diferenças geográficas, climáticas e gastronômicas, até a falta de estrutura e de apoio. Precisaram se acostumar ao calor, a alimentos que nunca tinham visto, como arroz com feijão e, pelo menos no caso do Espírito Santo, foi preciso desbravar a floresta e cultivar café e tomate nas encostas – uma experiência bem difícil para quem vinha de planícies.

Na época da segunda guerra, sofreram perseguições, foram proibidos de realizar cultos e de falar seu idioma. Mulheres e crianças dormiam escondidas no cafezal com medo de ataques e os homens ficavam em casa armados, guardando os armazéns que estavam sob ameaça constante de saques – uma situação desoladora para que abandonou o próprio país em busca de um futuro melhor.família em foto histórica nas Colônias Pomeranas Capixabas- Foto cedida por Ednéa Harckbart - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Coincidentemente, o Espírito Santo demorou a ser povoado porque era considerado uma área de proteção a Minas Gerais e isso fez com que os colonos recém-chegados demorassem algumas décadas até começar a conviver com os brasileiros.
O isolamento, as dificuldades e ameaças uniram esses imigrantes e os frutos da união podem ser vistos não apenas na tradição dos mutirões e da ajuda mútua, mas também na preservação da cultura. O Brasil é o único lugar do mundo onde as tradições pomeranas se mantêm praticamente intactas e onde se fala a sua língua.

Na época em que os pomeranos chegaram ao Brasil, ainda não tinha havido a unificação da Alemanha. Existiam reinos, principados e ducados independentes, com dialetos próprios, e a Pomerânia era um deles. Ficava na região Norte, banhada pelo Mar Báltico – hoje pertencente à Polônia. Ali, como em toda a Europa, faltava perspectiva. No campo, a Pomerânia ainda estava sob o regime feudal e nas cidades não havia emprego.

Pomeranos foto histórica - Foto cedida por Ednéa Harckbart - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAOs pomeranos começaram sua emigração rumo aos Estados Unidos, mas a uma certa altura o governo americano suspendeu o incentivo e a rota migratória foi desviada para o Brasil, concentrando-se principalmente no Espírito Santo, mas também aconteceu em Minas Gerais, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Antes deles já tinham vindo outros povos da mesma região, mas os pomeranos estavam em maioria e isso fez com que sua língua e cultura prevalecessem sobre as outras. Até onde se sabe, os pomeranos dos Estados Unidos se dispersaram. No lugar de onde vieram, também não existe mais essa identidade. Os poucos que ficaram misturaram-se a outros povos para escapar de perseguições. No final das contas, parece que hoje todos os pomeranos são brasileiros.

Festas e crenças das Colônias Pomeranas

Festa pomerana - Foto de Edson Chagas - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAEntre os traços culturais preservados nas colônias do Espírito Santo, estão as festas e danças folclóricas. O acontecimento coletivo mais importante é a Festa da colheita, realizada no outono, entre maio, junho e julho. Nesse dia, os colonos agradecem e comemoram os resultados da safra anual depositando produtos no altar da igreja para doação. Depois do ritual, os produtos são benzidos e distribuídos. Os pomeranos também festejam as estações e, a partir da década de 1960, passaram a realizar a festa do colono.

Embora sejam luteranos, conservam práticas que parecem contraditórias com a religião e chegaram a ser proibidas, décadas atrás, por pastores que vieram da Alemanha. Uma delas é o costume de benzer pessoas e animais contra mau-olhado (slechtouchan) e feitiçaria . Existe até um nome em pomerano para a benzedeiras (bispreekar). Mas o que talvez se diferencie mais de seus preceitos religiosos é uma espécie de manual pomerano de magia. EscritoCasa de Memória dos pomeranos - Foto de Edson Chagas - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA em estilo gótico, o livro apresenta fórmulas mágicas para solucionar diversos tipos de problemas. Sempre foi usado pelas mulheres e era passado, em segredo, de mãe para filha.

Esta é apenas uma amostra da complexa cultura cultivada nas colônias pomeranas. Para guardar e divulgar todos esses traços foi criada a Casa de Memória (Waiands Huss), um museu particular onde as pessoas são recebidas pela proprietária Marineuza, que se veste com roupas típicas para recepcioná-las.1

Notas

  • 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outras colônias ou agrupamentos étnicos no Brasil: Mussuca /

Colonias pomeranas capixabas – Região Serrana e Norte capixabas – Espírito Santo – Brasil – América do Sul

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Unknown
6 anos atrás

Muito obrigada. Um pouco de conhecimento sobre povos que vivem entre nós.

Unknown
6 anos atrás

Que legal! Não sabia da existência dessa cultura aqui! Como sempre você é show!

Gustinha
6 anos atrás

Excelente ! Já tinha ouvido falar mas tinha pouco conhecimento sobre eles… ótima matéria! ��

Elizete Cordeiro de Miranda
6 anos atrás

Como sempre, adorei. Gostei tb de saber como eles se ajudam. E resolvem os problemas entre eles.

Anônimo
Anônimo
6 anos atrás

Legal, não conhecia essas colônias, nunca ouvi falar. Obrigada pelo conhecimento. Bjo Suzana

Anônimo
Anônimo
6 anos atrás

Adorei a postagem de hj como sempre. Viver em comunidade, com juntamento como proposta maior é uma riqueza. Parabéns Sylvinha �������� Thelminha

Anônimo
Anônimo
6 anos atrás

Mais uma coisa que nunca tinha ouvido falar! Parabéns! Valtinho

sonia pedrosa cury
6 anos atrás

Muito legal, Sylvinha, adorei!!!

Anônimo
Anônimo
6 anos atrás

Que maravilha de tradição e que bom humor e alegria a dos Pomeranos. Que heranca riquissima recebemos. Obrigado Sylvia por nos contar a história e de forma muito interessante.
Augusta Leite Campos

Unknown
6 anos atrás

Que alegria ver o trabalho tão competente da jornalista e pesquisadora Ednéia Harckbart. Realmente o livro é de uma riqueza memorial ímpar, com um conteúdo sensível. A obra dessa brilhante pesquisadora é uma contribuição histórica importante a partir de um trabalho minucioso, sério e muito dedicado. Parabéns por compartilhar com a gente.

Unknown
6 anos atrás

Meu nome é Kátia Fraga, sou Professora de Jornalismo da Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais

Unknown
6 anos atrás

Silvia , muito interessante a "viagem" dessa semana ! Eu julgava que os descendentes haviam se concentrado em Santa Catarina ( Pomerode ) – nao sabía da existencia de uma colônia forte em tradições no ES. Muito legal conhecer um pouco dos costumes , obrigada , beijos

Unknown
6 anos atrás

Parabéns pela reportagem muito esclarecedora
Morei muitos anos no E.S. mas poucas informacões eu tinha sobre os Pomeranos. Aprendi muito obrigada.
Fabíola

Maria Helena
5 anos atrás

Gostei muito de conhecer os Pomeranos, legal. Fiquei com vontade de ir lá. Parabéns por essa reportagem.

Carlos Alberto Luckow
4 anos atrás

è muito bom conhecer um pouco sobre nossas origens

Cintia Grininger
4 anos atrás

Conheço Domingos Martins apenas de passagem e não tinha ideia dessa riqueza cultural ali na região! Não conhecia nada sobre os pomeranos, muito menos que havia colônias no Espírito Santo. Acho incrível quantas riquezas o Brasil guarda…

Hebe Carvalho
4 anos atrás

Que bacana esse psot Silva, não sabia todas essas curiosidades dos pomeranos. Uma baita riqueza que herdamos né?

Angela Beatriz Camara Martins
3 anos atrás

Não sabia da existência dessas colônias pomeranas em terras capixabas. Lindo post! Parabéns.

Letícia
Letícia
3 anos atrás

Como boa capixaba que sou, nem preciso dizer que amei o seu post! Já estive nessa região mas, infelizmente, conheço muito pouco e quase nada dos detalhes! É muito lindo ver as tradições que ficam com o passar do tempo! Amei!

normeide neto de carvalho
normeide neto de carvalho
3 anos atrás

Que texto incrível sobre as colônias pomeranas capixabas. Não conhecia do assunto e fiquei encantada com a historia, tradições e principalmente o estilo de vida em cooperação. Um exemplo a ser seguido por todos nós.

Clarissa Ruth Lianda
Clarissa Ruth Lianda
1 ano atrás

Muito interessante essa história. Sempre achei que os pomeranos ficavam só em Santa Catarina. Vivendo e aprendendo. Obrigada

Andressa Schröder de Oliveir
Andressa Schröder de Oliveir
1 ano atrás

Ótimo documentário. Quero te rever de novo prima! Esse é o casamento da minha irmã Vanessa lembra