Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
O Bumba meu boi já foi perseguido e até proibido, em certo período do século 19, por ser considerado uma manifestação da população negra descendente de escravos, mas há quem diga que em outros tempos e lugares foi incentivado pelos jesuítas como veículo de evangelização. A dança é, na verdade, uma mescla de elementos africanos, indígenas e europeus e sua riqueza cultural acaba de ser reconhecida pela Unesco, que concedeu ao Bumba meu boi do Maranhão o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.
Embora o seu primeiro registro tenha ocorrido em Pernambuco – e existam grupos em vários outros estados – é de fato no Maranhão que o folguedo se projeta com maior força. Aliás, folguedo não. Para os maranhenses, o Bumba Meu Boi é um complexo cultural que reúne teatro, dança, música, artesanato e bordado. São mais de 300 grupos espalhados pelo Estado e os maiores chegam a ter em média 150 integrantes.
O ciclo festivo no Maranhão começa no sábado de aleluia com uma temporada de ensaios que se estende até o início de junho. Na véspera de São João – dia 23 – é feito o batismo dos bois e nesse momento os grupos obtém a permissão divina para brincar. Começa aí o período de apresentações que dura até o fim do mês. Entre julho e dezembro, a depender do calendário do grupo, são realizados os rituais de morte do boi.
Elementos religiosos e sobrenaturais do bumba meu boi
O enredo da dança tem várias versões. A mais conhecida, e adotada pelos grupos do Maranhão, baseia-se na seguinte história, considerada por uns como lenda e por outros como fato real: a negra escravizada Catirina, ou Catarina, estava grávida e desejou comer a língua do boi mais precioso da fazenda. Para satisfazê-la, seu marido Chico, ou Pai Francisco, matou o boi, provocando a ira do fazendeiro que, depois de investigar junto a negros e índios, acabou descobrindo o responsável. A única forma de salvar Pai Francisco do castigo do fazendeiro era fazer o boi ressuscitar e o milagre foi alcançado por pajés com a ajuda de seres sobrenaturais.
A história é contada com vários personagens entre os quais estão Pai Francisco, Catrina (normalmente representada por um homem vestido de mulher), o Dono da fazenda (também chamado de Amo) e o próprio Boi que tem uma característica interessante – a pessoa que o representa recebe o título de Miolo. Além deles há personagens que podem ser encenados por uma ou mais pessoas, a depender do tamanho do grupo, e são: Índio, Índia, Vaqueiro, Caboclo de Pena, Caboclo de Fita e Mutuca. Esse último é encarregado de distribuir cachaça com os espectadores para que eles não durmam durante as apresentações.
O sincretismo aparece em vários aspectos, com maior ou menor incidência das três culturas envolvidas na manifestação, mas vale ressaltar a religiosidade indígena, representada pelo pajé que evoca seres sobrenaturais, e a devoção a três santos católicos – São João, São Pedro e São Marçal. Estão presentes, ainda, elementos de cultos religiosos afro-brasileiros – como o Tambor de Mina e Terecô -, por meio da correspondência entre os santos juninos e os orixás, voduns e encantados.
A diversidade e os sotaques
No Maranhão, a diversidade cultural que compõe o Bumba meu boi não se limita aos aspectos internos da celebração. Há, ainda, as variações externas que permitem a classificação dos grupos em diferentes conjuntos denominadas sotaques.
Originalmente, os sotaques decorriam das diferenças culturais entre as nações – grupos étnicos de negros que foram trazidos para o Brasil -, mas, com o passar do tempo, cada um deles foi seguindo seu próprio caminho. O de Orquestra, por exemplo, tem influência europeia, com instrumentos de sopro e de corda. É considerado o sotaque mais aberto a inovações, inclusive com aproximações da estética do carnaval, e reúne o maior número de grupos.
Já o mais antigo e talvez mais próximo das origens, é o Sotaque de Zabumba, originário do Município de Guimarães, região que reúne comunidades remanescentes de quilombos. Entre de suas principais características estão os ritmos africanos – marcados por instrumentos de percussão como zabumba, maracá e pandeirinho – e as toadas, que relembram o lamento dos negros nas senzalas. O mais original entre eles talvez seja o Sotaque de Costa de Mão, chamado assim porque sua música é tocada com a parte de trás dos dedos, em pandeiros pendurados no pescoço. O surgimento desse sotaque deve-se aos danos que o trabalho da roça causava nas mãos dos trabalhadores. Como não conseguiam usar as palmas cheias de calos, inventaram uma nova forma de tocar a percussão. Talvez por ter uma cadência mais lenta, e menos animada, o sotaque tem um número menor de grupos e vive sob a ameaça de extinção.
A diversidade é tamanha que há espaço até para um sotaque ‘importado’ de outro Estado. É ocaso do Sotaque de Matraca, que pode ter sido trazido do Piauí por vaqueiros fugidos da seca. Mas mesmo que a suposição seja verdadeira, o Sotaque de Matraca já virou maranhense ao incorporar o pandeirão, que não existe no Piauí.
E se o Sotaque de Matraca veio de fora, o da Baixada, ou de Pindaré, fez o caminho inverso e deu origem ao Boi de Parintins, no Amazonas. Uma de suas principais características é o personagem Cazubá, que tem uma conotação mística capaz de beneficiar os brincantes e o público.
O Sotaque da Baixada é talvez o mais luxuoso de todos, com roupas bordadas à mão, cobertas por lantejoulas e canutilhos, e essa característica foi passada ao Bumba meu boi de Parintins.
O boi de Parintins
O Bumba meu boi foi levado à Amazônia por maranhenses que chegaram à região atraídos pela extração da borracha e lá absorveu tantos traços da cultura local que passou a se chamar Toada Amazônica.
Com o tempo, a palavra ‘boi’ foi resgatada e hoje existem duas grandes agremiações que, juntas, realizam um evento popular de alcance internacional. O Festival Folclórico de Parintins consiste na disputa entre o Boi Garantido, ou coração vermelho, e o Boi Caprichoso, ou estrela azul.
Durante três dias, no último fim de semana de junho, os dois grupos duelam em um lugar construído especialmente para a disputa, que ficou conhecido como Bumbódromo, e tem capacidade para 35 mil espectadores. A disputa é realizada ao som de ritmos locais e com enredos inspirados em mitos amazônicos.
De onde vem o boi?
Não se sabe ao certo qual é a origem do Bumba meu boi. A julgar pelo primeiro registro, pode ter surgido em Pernambuco, no século 17, durante o domínio holandês, e talvez tenha relação com o ciclo do gado, ocorrido mais ou menos no mesmo período.
Alguns pesquisadores consideram a hipótese de que história de Catrina e Pai Franciso tenha sido inspirada em um conto ibérico segundo o qual um certo fazendeiro tinha um vaqueiro que não mentia e, diante do questionamento de alguns amigos, apostou com eles que o rapaz nunca iria decepcioná-lo.
Como tinha certeza da lealdade do empregado, o fazendeiro enviou a própria filha à sua casa para tentar seduzi-lo. Em sucessivas visitas, a moça, sem se identificar, mostrou partes do corpo ao vaqueiro e todas as vezes que ele tentou se aproximar, ela impôs uma condição: ele deveria matar o boi preferido do fazendeiro e fazer um pirão com o coração e o fígado,para eles comerem juntos. A sedução chegou a tal ponto que o vaqueiro não resistiu e atendeu ao pedido da moça.
Mesmo assim, o fazendeiro ganhou a aposta porque o vaqueiro, apesar de ter caído na tentação de satisfazer o desejo da moça, mostrou que era confiável. Além de não ter tocado nela, manteve sua tradição de não mentir – contando toda a verdade ao fazendeiro – e acabou sendo duplamente recompensado: foi perdoado pela morte do boi e teve autorização para casar com a filha do fazendeiro que, àquela altura, havia se apaixonado por ele. A história é contada no Brasil em versos de cordel atribuídos ao escritor paraibano Francisco Firmino de Paula.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outras tradições do Nordeste: Literatura de Cordel / Cuscuz / Figureiros de Taubaté / Queijo do Reino / Carnaval de Olinda / Carnaval da Bahia / Ini ou rede de dormir
Bumba meu boi – várias cidades – Maranhão e outros estados – Brasil
Fotos
- (1, 3 e 5 ) Foto Edgar Rocha - Site do Iphan
- (2) Acervo do Ipham
- (4) Universidade de Brasília, - Teodoro Freire bumba meu boi honoris causa - 22out12 - Emília Silberstein-26, CC BY 2.0
Referências
- Site do Iphan
- Site da Unesco
- Conheça os sotaques do Bumba-meu- boi - Empresa Brasil de Comunicação
- Vídeo do Iphan sobre o Bumba meu Boi do Maranhão
- Vídeo da candidatura do Bumba meu boi do Maranhão à Patrimônio Imaterial da Humanidade
Excelente. Por mais que já tenha acompanhado, hoje o detalhamento foi exemplar. Beijos.
Valeu, Sidney, bjo
Matéria fantástica, riquíssima, parabens Silvinha
Quanta história, quanto simbolismo por trás do colorido do boi bumbá…lindo demais! Parabéns, Sylvinha!
sonia pedrosa
Obrigada, Marcelo. Toda quinta tem matéria nova no blog.Acompanhe! Abraço.
Obrigada, Soninha! Grande abraço.
Já assisti ao ensaio do Boi na Maranhão. Muito lindo.
Uma experiência e tanto, não é? Da próxima vez não se esqueça de deixar seu nome, ok?
Que mergulho cultural e na história do bumba meu boi, texto super completo e elucidador. Ainda não tive a chance de ver uma apresentação ao vivo, imagino que deve ser lindo demais!
Que lindo esse post! Não sabia que a história do Bumba meu Boi era tão interessante. Merece ser patrimônio da humanidade.
Merece mesmo. Bumba Meu Boi e várias outras manifestações da Cultura Popular Brasileira.