Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Casas caiadas para aliviar o calor, grades pintadas de preto e vasos com flores, principalmente gerânios. Assim são as residências, bares e até hotéis no centro histórico de Arcos de la Frontera – cidade milenar plantada em uma colina na província de Cádiz1, Sul da Espanha. Para completar a paisagem, as ruas são estreitas, forradas de pedra e inclinadas – algumas delas tomadas por degraus. Por cima de tudo, um céu azul iluminado como só se vê em regiões mediterrâneas .
A cidade, com pouco mais de 30 mil habitantes, tem inúmeros monumentos históricos que vale a pena conhecer, como igrejas góticas, conventos, um teatro e um castelo. Mas nada se compara à experiência de caminhar pelas ruas sinuosas, descobrindo, a cada passo, os detalhes da arquitetura e da decoração das casas e saboreando, pouco a pouco, a calmaria que vai tomando conta da gente.
Para vivenciar tudo isso, é preciso mergulhar no passeio e se entregar, deixando qualquer compromisso para outro dia, porque no meio do caminho vão surgir inúmeros apelos, como uma gruta em plena cidade, ou um mirador que, diferente da maioria, está no nível da rua e não exige que se subam escadas nem rampas para alcançá-lo. Isso sem falar nos pátios internos de casas e hotéis que, avistados de fora, nos fazem cometer a imprudência de pedir para conhecer.
Arcos de la Frontera: a Coloniae Ascensium dos romanos
O centro histórico, na sua forma atual, conserva um traçado definido na Idade Média – época em que a cidade foi dominada pelos árabes e tornou-se a capital de um dos Reinos de Taifas – espécie de principados muçulmanos independentes surgidos após a queda do Califado de Córdoba. Mas ferramentas e utensílios encontrados em escavações demonstram que o local já era habitado no período paleolítico.
Entre a pré-história e a ocupação árabe, a cidade viveu sob o domínio dos romanos e, nessa época, teria sido chamada por dois nomes: Coloniae Ascensium, ou Colônia suspensa, e Arx-Arcis, que significaria Fortaleza na Altura.
Embora não haja certeza sobre essas denominações, também não há dúvida de que Arcos de la Frontera foi considerada, ao longo de sua história, um lugar estratégico de defesa, não apenas por estar localizada em uma colina com mais de 100 metros de altura, mas também por ser quase toda rodeada por um rio.
Da época romana quase não há vestígios no centro histórico, mas o seu caráter de fortaleza permaneceu no período árabe e até hoje pode ser observado no que restou da muralha de proteção construída pelos muçulmanos. Sobrevive, ainda, a chamada Puerta Matrera, que integrava o sistema de defesa do lado Leste da cidade.
Enquanto a herança muçulmana aparece principalmente na arquitetura e no traçado urbano, o legado cristão está nos monumentos históricos, em sua maioria edifícios religiosos como a Igreja de São Pedro, o Convento dos Jesuitas e o antigo Monastério dos Franciscanos Descalços.
Mas Arcos de la Frontera não tem apenas arquitetura, monumentos históricos e calmaria. Como em quase toda cidade andaluz, suas ruas e praças abrigam festas religiosas, festivais flamencos e, entre os moradores, especialmente os mais antigos, circulam tradições e lendas.
Uma lenda que ecoou para o mundo
Uma das narrativas que percorrem as ruas estreitas da cidade é La molinera y el corregidor1, na qual o escritor Pedro Antonio de Alarcón buscou inspiração para escrever o romance picaresco El sombrero de tres picos, lançado em 1874.
A obra ganhou fama internacional e foi adaptada para várias linguagens em diferentes épocas: um ballet e uma peça para orquestra do compositor Manuel de Falla, que levam esse mesmo nome; uma peça de teatro denominada “La Molinera de Arcos”, de Alejandro Casona, e pelo menos três filmes: El sombrero de tres picos, dirigido por Mario Camerini; “La pícara molinera”, dirigido por Leon Klimovsky e “La bella campesina”, dirigida por Mario Camerini.
A lenda conta a história de um corregedor que resolveu seduzir Frasquita, a bela mulher do moleiro Lucas e, para mantê-lo afastado de casa, fez uma grande encomenda de farinha com prazo bem apertado, de modo que o moleiro precisasse trabalhar a noite inteira para não ter que pagar uma enorme multa pelo atraso na entrega. Mas naquela noite chegou ao moinho um homem que sabia moer e, ao ver o moleiro preocupado por ter deixado a mulher sozinha em casa, ofereceu-se para fazer o serviço em seu lugar.
Ao chegar em casa, Lucas encontrou o corregedor deitado ao lado de Frasquita e suas roupas jogadas em cima de uma cadeira. Imediatamente lhe veio uma ideia: vestir as roupas do corregedor, inclusive o chapéu de três pontas que era usado pelos poderosos, e, no lugar delas, deixar as suas. Com o disfarce, Lucas conseguiu entrar na casa do corregedor e passar a noite com sua esposa. Somente no outro dia é que o corregedor se deu conta da troca e teve que voltar para casa vestido de moleiro. Sua mulher, ao levantar, percebeu que o homem com quem tinha passado a noite anterior não era o marido. Ao final, os quatro se encontraram e acusaram-se mutuamente.
Informações sobre a lenda e registros das obras inspiradas por ela são tema de duas salas do Palacio del Mayorazgo – uma construção do século 17, que abriga hoje um museu da “Delegación Municipal de Cultura”, onde são realizadas exposições temporárias e permanentes.
Arcos de la Frontera na rota dos Pueblos Blancos
Arcos de la Frontera é tida como porta de entrada para uma rota composta por 19 pequenas cidades da província de Cádiz que têm pelo menos um traço comum: as fachadas pintadas de branco. Embora parecidas à primeira vista, cada uma tem suas especificidades como as ‘casas cuevas’ em Setenil de las Bodegas, a produção de couro em Ubrique, as mantas artesanais em Grazalema ou os violões flamencos em Algodonales. 3
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matéria sobre Cádiz, a capital da província, e sobre o "pueblo blanco" Algodonales.
- 2 Há uma disputa por essa lenda. Os moradores de Huelva, município localizado na província de mesmo nome, também na Andaluzia, reivindicam para a sua cidade a origem da narrativa. Alguns registros sequer localizam a história em um cenário específico, limitando-se a dizer que os fatos aconteceram em algum povoado próximo a Granada.
- 3 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais da Espanha: Segóvia / Ronda / Alhambra.
Arcos de la Frontera – Cádiz – Andaluzia – Espanha – Europa
Fotos
- (1) 123RF
- (2 ) Elisa.rolle por Wikimedia Commons
- (3) Michal Osmenda, Bélgica, por Wikimedia Commons
- (4) Menesteo por Wikimedia Commons
- (5) Alexandre Seara
- (6) Malopez 21 por Wikimedia Commons
- (7) Luis Rogelio HM por Wikimedia Commons
- (8) Flávio Alarsa
Livro
- El sombrero de tres picos, de Pedro Antonio Alarcón (baixar)
Maravilha Sylvia. Que vontade de ir dede novo à Arcos onde estive muito rápido.
Muito interessante, Sylvinha!!! Adorei a lenda! e o texto, perfeito!
Mais um texto delicioso de ler, Sylvinha!
Gratidão por compartilhar uma das belezas de Andaluzia!
Abraços,
Val Cantanhede
Que boa descrição histórica e turistica. Assim dá vontade de fazer a rota dos pueblos blancos.
Obrigada. Mas você não se identificou. Da próxima vez não esqueça.
Obrigada, Val!
Valeu, Soninha! bj
Também quero. E olhe que já fui cinco vezes rsrs!
Esta cidade eu conheço. Pernoitei lá qdo fui conhecer os Pueblos Blancos.Não esqueço de um jardim que a pessoa usava diferentes objetos como vaso para plantas: urso de pelúcia, regador, panela, louça, banheira, etc.Achei a ideia sensacional
Boas recordações, não é? Obrigada pelo comentário. Faltou dizer seu nome. Abraços.
E mesmo fascinante a influência Moura na Espanha e Portugal. Parabéns por está linda matéria.
Obrigada. Da próxima vez, me diga o seu nome.
Oi Sylvia! Que delícia conhecer Arcos de la Frontera, Cádiz, em Andaluzia. Eu amo essas cidades tão antigas e que guardam riquezas históricas, arquitetônicas e um modo tão peculiar de viver! Quero visitar um dia! Adorei!
Se for, aproveite ara conhecer outros Pueblos Blancos. São todos lindos. Aqui no blog tem matéria sobre alguns deles.
Sylvia muito obrigada por rememorar esse lugar tão especial. Fiquei com muita vontade de voltar a visita-lo em breve. Bjs
Eu que agradeço, Vania. Pela leitura e pelo comentário. Se puder, divulgue.
Ah que delícia ler sobre o Arcos de la Frontera, milênios de cultura sob o sol da Andaluzia. Quero conhecer pessoalmente agora!
Vale a pena conhecer Arcos de La Frontera e pelo menos mais alguns dos outros Pueblos Blancos. Algodonales, por exemplo, onde se fabricam guitarras flamencas.
Aqui é Valeria Leite. Estou encantada com este seu trabalho. Estive em Arcos de la Frontera em 1989 e 1991. Num acampamento há uns 9 km distante do Centro. Era um encontro mundial da Tradição Sufi. Perdi tds as fotos desta época. Minha esperança é pensar que vc pode ter algum registro ou foto de Arcos nesta época. Tb me hospedei num Hotelzinho delicioso, com um café da manhã maravilhoso. Será que pode ser “Grande Hotel”? Bem, tinha uma feirinha maravilhosa com várias sementes. Mt SAUDADE! Será que vc tem algum material deste período? Vou ficar aqui torcendo. Gratidão.
Oi, Valéria. Que bom que gostou. Não tenho nada de Arcos nesse período que você indicou. Fui à Andaluzia pela primeira vez em 1994. Caso queira alguma informação sobre a cidade, talvez eu possa te ajudar. Me mande mensagem pelo email [email protected]