Atualizado em 29/09/2024 por Sylvia Leite
Ainda na estrada, uma placa já anuncia: “Bem vindo a Araçaí – Circuito Guimarães Rosa – Marco final do Caminho da Boiada”. Esse caminho, para quem não sabe, foi uma viagem feita, a cavalo, pelo médico, diplomata e escritor Guimarães Rosa pelo sertão mineiro, em busca de elementos geográficos, linguísticos e culturais que embasassem sua obra literária. A comitiva à qual se integrou era composta por vaqueiros que conduziam uma boiada entre a fazenda Sirga, ou Silga, em Andequicé, no Município de Três Marias, e a fazenda São Francisco, em Araçaí – ambas de seu primo Chico Moreira1. O grupo percorreu 240 km, ao longo de dez dias. Quatro anos depois, Rosa apresentaria as duas obras que o consagraram como escritor: a coletânea “Corpo de Baile” e o romance “Grande Sertão: Veredas”.
Nenhum dos dois livros inclui citações a Araçaí, como ocorre com outras cidades da região, mas há algumas razões para o município ser considerado parte do universo roseano. Além de marco final do Caminho da Boiada, como atesta a sua placa de boas vindas, Araçaí esteve também no início de tudo porque foi lá que o vaqueiro Zito buscou a besta Balalaika, que Rosa montaria em grande parte da viagem.
O filho de Chico Moreira – Francisco Guimarães Moreira Filho, mais conhecido como Criolo – acrescenta mais um dado: segundo seu depoimento no documentário “Sujeito Oculto, na rota do Grande Sertão“, de Sílvio Tendler, foi na estação de Araçaí que o escritor desembarcou, vindo de Belo Horizonte, antes de seguir – dois dias depois – em um jipe ano 1951, rumo à fazenda Sirga, de onde partiria a caravana.
Esse jipe, aliás, foi determinante na concretização do Caminho da Boiada porque embora fossem primos, Rosa e Chico Moreira viviam a quilômetros de distância e não tinham mais convivência. A reaproximação se deu quando o fazendeiro pediu ao escritor – que morava no Rio de Janeiro e tinha mais conhecimento da burocracia estatal – que o ajudasse a liberar na alfândega o veículo importado. Aproveitando o contato, Rosa negociou a visita ao sertão.
A informação do desembarque em Araçaí, no entanto, não confere com o que Rosa escreveu em seu diário de viagem publicado pela editora Nova Fronteira. De acordo com suas anotações, a última parte da viagem entre o Rio de Janeiro e a fazenda Sirga teria sido feita de carro a partir de Belo Horizonte, com um pernoite em Paraopeba. Infelizmente, não há mais nenhum personagem vivo que possa desfazer o impasse.
Uma história comum
A Literatura de Rosa não é o único elemento partilhado entre Araçaí e outros municípios da região. Assim como ocorreu com seus vizinhos, a cidade se desenvolveu a partir de um ponto de pouso de tropeiros e transportadores de gado. A área pertencia à Fazenda Paraíso – recebida em Sesmaria pelo casal Francisco Pereira da Rocha e Cândida Maria de Jesus, em 1872.
Com a chegada da Estrada de Ferro Central do Brasil, em 1902, houve transformações na pequena vila, que até aquele momento não tinha sequer recebido um nome e era popularmente conhecida como Hospital porque os donos da fazenda alimentavam os tropeiros e cuidavam de seus ferimentos, decorrentes das viagens nos lombos dos burros.
.A inauguração da estação de trens, em 1903, marcaria não apenas a oficialização da pequena vila como distrito do município de Paraopeba, mas também um duplo batismo: da estação e da própria vila. O nome, escolhido pelo chefe da companhia, foi Araçá, em alusão a uma pequena fruta, semelhante à goiaba, que era abundante na região.
Anos depois, quando foi emancipada de Paraopeba, a cidade precisou ser rebaizada a fim de acabar com o desvio de correspondências para lugares de nomes semelhantes como Araxá, em Minas e Araçás, na Bahia. Por sugestão de líderes políticos locais, o povoado recebeu o nome de Araçaí.
A igreja de costas para a cidade
No campo religioso, a história de Araçaí também reúne características comuns a outras cidades da região: população eminentemente católica e igrejas que foram construídas de frente para a estação – ou para as paragens de viajantes – e, com o desenvolvimento urbano, acabaram de costas para a cidade. No caso de Araçaí, isso fica bastante evidente, pois não apenas cidade, mas também a praça que abriga a matriz se localiza ao fundo da igreja.
São Sebastião é o padroeiro de Araçaí. Sua igreja foi erguida pelo herdeiro da Fazenda Paraíso – Francisco José Pereira da Rocha, o Nhô Chico – que chegou ao local com três anos de idade, quando seus pais receberam a sesmaria. A construção se iniciou em 1890, depois que uma amiga o presenteou com uma imagem do santo, padroeiro dos fazendeiros. A imagem centenária foi o primeiro objeto tombado pelo conselho de patrimônio municipal.
A indústria como maior empregadora
A história de Araçaí começa a se diferenciar dos municípios vizinhos na década de 1940, quando três engenheiros fundam a Sociedade Industrial Policena Mascarenhas Ltda. Essa indústria passou por várias transformações e chegou a fechar nos anos 1980, sendo resgatada anos depois, em 1998, com o nome de Fiação e Tecelagem Araçaí (Fiteca).
Atualmente, a Fiteca é referência na produção de tecido de algodão 100% cru no país, com produtos específicos para decoração, artesanato, linha hospitalar e ecobags. Segundo dados da startup Caravela, a Fitec emprega quase metade (356) dos 716 trabalhadores oficialmente contratados no município. O segundo maior empregador é a administração pública com 210 contratados.
A empada mais famosa de Minas
Não é só na área industrial que Araçaí se diferencia cidades vizinhas. As empadas caseiras da araçaiense Maria Joana, que ficaram conhecidas como empadinhas da Tia Joana, são famosas em toda a região e tornaram-se um bem imaterial inventariado pelo conselho do patrimônio do município.
A historiadora araçaiense Helena Alves de Oliveira conta que a receita original é uma empada de frango caipira, feita com banha de porco. Segundo Helena, a empadinha de Tia Joana tinha um sabor único e a receita acabou se espalhando porque muita gente quis conhecer seus segredos: “minha mãe mesmo aprendeu e fazia igualzinho”, relembra.
Hoje, a iguaria é comercializada, sob encomenda, por várias quitandeiras da cidade e o refeitório da casa da indústria têxtil foi batizado com o nome de Tia Joana. E não para aí: anualmente no mês de setembro, a cidade realiza a Festa da Empadinha que inclui Rodeio e Queima do Alho – uma tradição que celebra a história dos peões de boiadeiro.
Mas não é preciso estar lá no dia da festa, nem encomendar as famosas empadinhas, porque elas podem ser saboreadas na padaria Fidelis, na avenida principal de Araçaí. Mas fica aqui um alerta: quem quiser conhecer o sabor original da empada de Tia Joana, terá que avisar na hora da compra porque, segundo Helena, muitas das quitandeiras já aderiram ao frango de granja e à gordura industrializada.
O rastro de Guimarães Rosa
Décadas depois da visita de Guimarães Rosa ao município, Araçaí está prestes a ganhar um memorial com registros do Caminho da Boiada. O acervo já começou a ser instalado pelos descendentes de Chico Moreira no antigo paiol da Santa Marta, a atual fazenda da família.
A ideia começou a ser concretizada em 2007, quando Criolo, filho de Chico,- estimulado pelo publicitário Pedro Fonseca -, comemorou o centenário de nascimento de Rosa com uma reconstituição da viagem original. A comitiva simbólica ficou conhecida como Segunda Boiada e seguiu o mesmo trajeto percorrido por Rosa e pelos vaqueiros em 1952. Na volta, Criolo – falecido em 2021 – instalou a pedra fundamental do memorial.
Entre as peças já reunidas pela família, estão quadros com fotografias da boiada original e da segunda boiada, objetos utilitários que pertenceram a Chico Moreira e uma cadernetinha onde o fazendeiro – talvez seguindo o exemplo do primo escritor – registrava os eventos profissionais e familiares inclusive os nascimentos dos netos. Há, ainda, objetos pessoais de Criolo como uma cela, um capote e um par de botas.
Criolo tinha apenas 17 anos na época do Caminho da Boiada. Ele e seu pai acompanharam o escritor e os vaqueiros no primeiro dia da viagem. No segundo dia, foram de carro encontrar a comitiva em Andrequicé, pois segundo Criolo, seu pai acreditava que depois de experimentar o sertão por um dia e uma noite, ‘Joãozito’ – como o escritor era chamado em família – já estivesse satisfeito e quisesse desistir de seguir viagem, mas Rosa estava firme no seu propósito. Depois disso, pai e filho só voltaram a ter contato com a comitiva no dia da chegada, que foi registrada pela revista O Cruzeiro.
Ao ver seus netos Tiago e Rafael participarem da comitiva simbólica, em 2008, Criolo se emocionou e seguiu se emocionando cada vez que falava sobre o evento. Imaginem o que ele sentiria ao saber que a família, além de dar prosseguimento ao projeto do memorial, pretende realizar uma terceira versão da boiada em 2027!
Segundo sua filha Jucelma Moura Guimarães, o memorial ainda não tem nome e não há previsão de quando será inaugurado, mas ela garante que falta pouco para o público ter acesso ao acervo da família. 4
Notas
- 1 A Fazenda São Francisco era propriedade de Chico Moreira, mas, segundo a maioria das fontes, a Sirga ele arrendava
- 2 Embora o Memorial esteja sendo construído na Fazenda Santa Marta - atual propriedade da família - a pedra fundamental foi instalada ao pé de uma árvore, bem em frente ao curral da Fazenda São Francisco, mas desapareceu sob a vegetação
- 3 Leia, aqui no blog, Matérias sobre outros lugares especiais de Minas: Corinto / Cordisburgo / Morro da Garça / Sagarana / Serra das Araras / Paracatu / Morrinhos / Gruta de Maquiné
Araçaí – Minas Gerais – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,2,3 e 4) Sylvia Leite
Referências
- Site da Prefeitura de Araçaí
- Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Araçaí - IPAC
- Indústria Fiteca
- ‘Site
- Documentário Chico, Sertão, Veredas e Rosa, de Rafael Moura
- “Livro
- ‘Site
Colaboradores
- Rosa Haruco
- Daniela Araújo
- Jussele Moura Guimarães (Filha de Criolo)
- Jane Alves
- Marcos Viana
- Neli Defensor Sant'Anna Martins
Entrevistados
- Jucelma Moura Guimarães (Filha de Criolo)
- Helena Alves de Oliveira (Historiadora de Araçai)
- Vera Lúcia da Rocha Lima (professora de Araçaí)
ARAÇAÍ terra boa onde eu nasci. Meu pai, VICENTE RIBEIRO DE LELLIS, foi por muito tempo GERENTE da fábrica de tecido, POLICENA MASCARENHA. Para homenagear os diretores colocou o nome de uma das filhas POLICENA.
Muito legal o seu depoimento, Anna. Obrigada. Bom saber que está materia está sendo lida por pessoas que nasceram ou vivem em Araçaí.
Vô Criolo merece muito que continuamos a sua história.
Merece sim, Camila. Nos avise quando o memorial estiver pronto.
A gente lê um livro de Guimarães Rosa, se encanta e não sabe o que está por trás, não sabe o que ele fez pra nos oferecer uma leitura, simplesmente, sublime.
Verdade, Soninha. É fascinante descobrir a realidade por trás da ficção e perceber como ele teceu suas histórias mesclando os dois universos.
Excelente querida amiga. Estou sempre aprendendo mais com você.
E eu com os lugares que visito rsrs Araçaí foi uma surpresa pra mim
Fiquei encantada com a história de Araçai cidade natal de meu avô Geraldo Nascimento Faria.
Que legal, Fátima. Seu avô nasceu numa cidade encantadora. Não imaginei que Araçaí tivesse tanta história.
Que linda matéria, Sylvinha!
Despertou a vontade de revisitar Grande Sertões e conhecer Araçai e o circuito Guimarães Rosa.
Abraços
Bom saber disso, Val. Além de Araçaí, tem mais oito matérias sobre lugares roseanos no blog: Cordisburgo, Serra das Araras, Morrinhos, Sagarana, Gruta de Maquiné, Paracatu e Corinto. E vem mais por aí. Dê uma olhada.
Bom dia Sylvinha. Bastante interessante esse texto, como sempre você traz informações bem curiosas sobre os lugares.
Que bom que gostou. Araçaí é mesmo um lugar interessante.
Oi Sylvia! Parabéns pela matéria! É de emocionar relembrando meu pai(Criolo) contando os “causos” da viagem com seu primo (Guimarães Rosa)e seu pai (Vô Chico Moreira). Meu avô que foi esquecido e que proporcionou a Rosa conhecer o Sertao. Que bom que pelo meu pai todos puderam saber quem foi CHICO MOREIRA.
Obrigada pelo comentário, Jucelma. Bom saber que o texto te trouxe boas lembranças.
Parabéns Sylvia, por seu trabalho, registrando de forma saborosa memórias que não podem ser esquecidas e precisam ser documentadas. As presenças de Chico Moreira e Criolo foram importantes na trajetória de construção do universo literário de Guimarães Rosa e isso é pouco conhecido e valorizado. Deixo aqui também o registro de Chico Moreira na cidade de Sete Lagoas, próxima a Araçaí, onde ele viveu com sua família e onde Criolo fez a sua história, tornando-se uma referência com seus testemunhos sobre Guimarães Rosa.
Obrigada, Júlio. O blog tem outras matérias sobre Minas. Dê uma olhada e acompanhe. Virão outras.