Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
O trem, agora, só chega aos domingos, ou em dias festivos, trazendo turistas que partem no final da tarde, mas, tempos atrás, a Vila de Paranapiacaba era o ponto estratégico de uma das linhas férreas mais movimentadas do país. A São Paulo Railway SPR, criada na segunda metade do século 19 para transportar o café de Jundiaí ao Porto de Santos, era, em sua época áurea, a mais moderna e luxuosa entre todas as ferrovias brasileiras e, apesar de sua pequena extensão, foi, por décadas, a mais lucrativa da América do Sul.
Paranapiacaba surgiu como assentamento para abrigar os operários que trabalharam na construção da ferrovia e se consolidou após a conclusão da obra como ponto de controle operacional e moradia de funcionários. Embora tenha sido articulada pelo Barão de Mauá, a SPR era uma companhia inglesa, e foi esse sotaque que deu tom às construções: casas de madeira recuadas, com varanda ou jardim, algumas delas com porão.
Para completar a nostalgia da terra natal, os ingleses ergueram ali um relógio inspirado no Big Ben. Por coincidência ou afinidade, a serra está quase sempre envolta em uma espessa neblina que trazia aos imigrantes a lembrança do fog londrino.
Como ocorre em toda vila operária, a concentração de famílias atraiu comerciantes e prestadores de serviço da região, em sua maioria descendentes de portugueses, que passaram a ocupar a parte alta, construindo ali suas casas, geralmente de dois andares, com residência em cima e comércio embaixo.
Uma ponte com piso de madeira fez a ligação entre as duas partes, que ao longo do tempo foram se integrando cada vez mais. Inicialmente, os funcionários da SPR atravessavam os trilhos apenas para fazer compras, mas chegou a hora da aposentadoria e era preciso desocupar as casas para dar lugar aos novos funcionários. Quem não quis deixar a vila, teve que se mudar para a parte de cima, que além de Vila Portuguesa, ou Parte Alta, passou a ser chamada também de Vila dos Aposentados.
A igreja e o cemitério, construídos por Bento José Rodrigues da Silva – o primeiro comerciante a chegar ao local – com o tempo passaram a ser usados também pelos moradores da parte inglesa, onde nunca houve nem uma coisa nem outra.
Paranapiacaba está localizada em uma área preservada da Mata Atlântica e, por isso, em 2000, tornou-se em Reserva da Biosfera da UNESCO, que engloba a proteção de 329 áreas de floresta em 83 países.
O famoso sistema funicular de Paranapiacaba
Quem já ouviu falar em Paranapiacaba, provavelmente sabe o quanto a imagem dessa vila está
vinculada ao sistema funicular, que foi a tecnologia usada pelos ingleses para possibilitar que os trens da SPR vencessem a barreira da Serra do Mar.
Para se ter uma ideia do que essa inovação representou, basta dizer que a Serra do Mar era um obstáculo considerado intransponível, responsável por uma atraso de séculos na ocupação do Planalto Paulista e por impor dificuldades ao desenvolvimento do Estado. Com a novidade tecnológica viabilizada pela nova companhia, conseguia-se pela primeira vez suplantá-lo.
A ferrovia foi então dividida em três partes. A primeira, com pouco mais de 60 km, ia de Jundiaí ao topo da serra, e a última, de 21 km, ia do pé da serra até Santos. Essas foram feitas com grande facilidade. O desafio estava no trecho intermediário, de apenas 8km ao longo da serra, onde havia um desnível de quase 800 metros.
Para vencer essa inclinação, se construiu o sistema funicular -um esquema de contrapeso composto por veículos sem tração própria, denominados “serrabreques”, responsável pelo equilíbrio entre as composições que subiam e as que desciam. Esse arranjo, aparentemente simples, exigiu a realização de complexas obras que envolviam cortes e aterramentos, além da construção de túneis,viadutos e pontes.
O sistema funicular durou mais de um século. Foi desativado somente em 1.982, quando já não pertencia mais à SPR. Em 2.002, Paranapiacaba foi comprada pelo município de Santo André, que iniciou um longo processo de restauração do patrimônio cultural.
O contraponto paulistano
Além da Vila de Paranapiacaba, a São Paulo Railway nos deixou outras duas heranças: a Estação da Luz e a Vila dos Ingleses, ambas construídas no comecinho do século 20, no centro de São Paulo. A primeira exibe até hoje sua imponente estrutura de ferro aos milhares de moradores da Grande São Paulo que utilizam trens da
CPTM ou do Metrô. Seu projeto é atribuído ao inglês Charles Henry Driver, conhecido pela autoria de inúmeras estações ferroviárias e por ter sido um dos primeiros no mundo a projetar coberturas envidraçadas.
A Vila dos Ingleses, localizada na rua lateral da Estação da Luz, já não tem mais qualquer vínculo com o universo ferroviário. Seus 28 sobrados de estilo vitoriano foram construídas para servir de moradia a engenheiros da companhia, mas com o fim da SPR passaram a ser habitados por famílias de classe média e hoje formam uma vila comercial, com loja, restaurante e escritórios de arquitetura.
Patrimônio físico e imaginário
Mesmo com o sistema funicular desativado e fora da rota do trem de subúrbio, Paranapiacaba continua a se reconhecer como uma uma vila ferroviária, seja porque seu terreno continua atravessado por trilhos, seja porque, com o passar dos anos, acabou se transformando em um museu vivo a céu aberto.
Além das moradias, o patrimônio da parte inglesa inclui um clube e um mercado. Ali também permanecem maquinários, locomotivas e o virador, onde os trens mudavam de direção. Paranapiacaba tem ainda o Museu Funicular e o Museu do Castelinho, que funciona na casa onde viveu o engenheiro-chefe.
Se tudo isso fosse retirado, restaria ainda o imaginário, alimentado pela tradição oral, que insiste em povoar o lugar com fantasmas dos tempos de glória. Uma das lendas mais repetidas pelos moradores de Paranapiacaba conta a história do trem fantasma, que pode ser ouvido à noite no 13º túnel do trajeto. Seria a ‘alma’ de uma composição cuja caldeira explodiu. Em outro trecho, entre a quarta e a quinta plataformas, seria possível ouvir gemidos de operários que morreram durante a construção do sistema funicular.
A explicação da neblina, que constantemente encobre a cidade, vem de um caso de amor impossível entre a filha de um operário da ferrovia, pobre e católico, e o filho do engenheiro inglês, rico e protestante. Trancado na adega da casa pelo pai, que era contra o casamento, o rapaz não comparece à igreja. A noiva enlouquece e acaba se jogando da serra. A partir desse dia, ela arrasta seu enorme véu a partir da serra, de onde pulou, até o castelinho onde o noivo teria sido trancado pelo pai, assombrando as pessoas e turvando sua visão. Coincidencia ou não, a neblina de Paranapiacaba se desloca sempre na direção descrita pela lenda. Existem outras versões, mas todas mantém a mesma estrutura.
Outras lendas não se referem diretamente à ferrovia, nem aos funcionários ingleses, mas talvez façam parte da herança cultural de um país onde são comuns as histórias de casarões mal assombrados. Entre essas lendas estão a da bailarina fantasma que dança à noite no palco do clube, a do vigia que já morreu há anos, mas continua batendo na porta das casas para checar se está tudo ok e a do fantasma do engenheiro-chefe que passeia à noite pela casa onde viveu.
Há, ainda, a história do Pau da Missa, que tem como personagem principal um eucalipto centenário, localizado no início da parte baixa, em uma área intermediária entre os dois lados da Vila. Conta-se que nos tempos áureos da SPR, o padre da igreja católica, que fica na pate de cima, usava o tronco da árvore para afixar diversos avisos, entre os quais, convites para enterros e missas de sétimo dia. Hoje, de acordo com a lenda, basta bater na árvore à meia-noite, para aparecerem os mortos cujas missas e enterros foram anunciados ali. Segundo alguns moradores, a resposta é mais rápida que a dos celulares, que não costumam pegar muito bem naquele pedaço.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares do interior de São Paulo: Brodowski, Joanópolis, Chácara Sapucaia
Paranapiacaba – Santo André – São Paulo – Brasil – América do Sul
Fotos
- (1,3,5,7 e 10) Sylvia Leite
- ( 2,4 e 8) Thais Helena
Que lindo, Sylvinha! Adorei!
Super interessante, gostei!!!
Valeu, Soninha, beijos.
Obrigada! Pena que não deixou seu nome.
Muito legal Silvinha. Aida Carrera
Valeu, Aida, beijos.
Saudades dessa Vila e dos trens!!!
Por que não vai lá matar a saudade?
Gostei desse documentário, muito interessante. Já tinha ouvido falar nas histórias dos fantasmas. Legal! Obrigada Cleise
Eu que agradeço, pela leitura e pelo comentário. Beijo
É um passeio muito agradável, Bebel. Obrigada por compartilhar!
Vale a pena. Obrigada pelo comentário. Beijo
História pura. Adorei! Calu.
Que bom, Calu! Obrigada. Quinta que vem tem mais. Não perca! Beijo.
Cada vez melhor!
Obrigada, Márcio. Quinta-feira tem mais. beijos
Adoro estorias de fantasmas. Nada mais fascinante. Sylvia você deixou um misterio no ar tal como a neblina que cobre Paranapiacaba. Amei!
Augusta Leite Campos
Que bom, Gusta. Obrigada pelo comentário. beijos
Eu nasci ai em Paranapiacaba,
Que legal! Não quer nos contar um pouco da sua experiência? As lembranças da infância ….
Muito legal. Deve continuar sendo um local bom para visitar. Gostei.
Que bom, Maria Helena! Obrigada pelo comentário e pela assiduidade.
Gostei muito da história.
Poderia dar uma orientação de qual trecho do trem leva a Paranapiacaba?
Vou a vários anos ao festival de inverno, e " me perco " naquele universo delicioso, entre histórias imemoriáveis, tomando algo no pub da Vila Inglesa, o degustando deliciosos licores e cachaças nas barracas de feira, brindando o dia sempre com música em todos os estilos,é um passeio, cultural…gastronômico e etílico ! Perfeito
Cheguei a viajar de trem de S.Paulo até Santos com paragem em Jundiaí.Descer a serra era uma aventura.Ainda funciona?
Que bom, Luiz Obrigada pelo cometário.
Olá, (desculpe não dizer seu nome. Você esqueceu de se identificar) Como nosso foco é histórico e cultural, não divulgamos informações de acesso, hospedagem ou alimentação, mas você consegue pesquisar facilmente nos buscadores. Obrigada pelo comentário.
Estive com amigos em Paranapiacaba em 2013. O lugar é muito lindo e místico. Parece que o Tempo parou entre a construção da ferrovia e o final do seu funcionamento, como principal acesso ao Porto de Santos. Fizemos muitos registros fotográficos do lugar. Na semana seguinte, a povoação iria abrigar um importante evento de Bruxos e Bruxas, que já é tradicional, e reúne pessoas ligadas às práticas de magia, vindas de vários lugares. Esse evento tem tudo a ver, com o aspecto físico e místico de Paranapiacaba. Lindo seu texto e com riquezas de informações sobre o lugar e suas lendas. Parabéns
Obrigada, Ribeiro. Volte sempre. Toda quinta tem matéria nova por aqui. E entre as mais de 130 já postadas, tem muitos lugares interessantes. Dê uma navegada pelo blog para conhecer.