Capela Sistina: um templo de arte e espiritualidade

Tempo de Leitura: 6 minutos

Atualizado em 08/05/2024 por Sylvia Leite

Visão geral da Capela Sistina - Foto de Echando una mano em Wikipedia - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAMuita gente visitou e quase todo mundo já ouviu falar na Capela Sistina – a igreja particular do papa que abriga uma das mais significativas coleções de arte renascentista e é palco do Conclave, a cerimônia em que é escolhido cada novo pontífice. Mas poucos têm ideia das histórias que envolvem sua construção e dos significados que dela podem ser extraídos.

A primeira curiosidade diz respeito ao projeto, que acredita-se ter sido inspirado no Templo de Salomão – o recinto sagrado de Jerusalém no século 1 antes de Cristo. Embora a descrição e as medidas do templo1 estejam no Antigo Testamento – escritura compartilhada pelo Cristianismo e pelo Judaísmo – causa espanto, no bom sentido, o fato de uma capela cristã ser feita ‘à imagem e semelhança’ de um lugar que funcionou como centro espiritual da tradição Judaica.

Outra surpresa vem dos famosos afrescos do teto pintados por Michelangelo. Neles, não há qualquer referência ao Novo Testamento – a parte da Bíblia introduzida pelo Cristianismo. As pinturas retratam nove cenas do Livro do Gênesis, do Antigo Testamento, ao redor das quais estão cinco sibilas – as mulheres que tinham a função divinatória nos oráculos Detalhe do teto pintado por Michelângelo - Foto Juan Carlos Rodriguez Casmartiño em Pixabay - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAgregos -e sete profetas reconhecidos pelos cristãos, mas que foram consagrados pelos judeus.

Os elementos judaicos são encontrados também nos mosaicos Cosmatescos que compõem o piso da capela, por conterem em seus traçados geométricos elementos como os círculos da árvore da vida e a estrela de seis pontas formada pela superposição de dois triângulos em posições opostas. O diagrama, que simboliza a intersecção de opostos como céu e terra ou masculino e feminino, é conhecido atualmente como Estrela de Davi – um dos símbolos atribuídos aos judeus.

A escolha do Templo de Salomão como modelo arquitetônico da capela pode ter partido da própria cúpula católica numa espécie de afirmação da Tradição Cristã, como substituta da religião judaica e, de Roma, como substituta de Jerusalém. Já os elementos do Judaísmo, encontrados nos afrescos de Michelângelo, seriam rebeldias cometidas pelo artista segundo contam Roy Doliner e o rabino Benjamin Blech, no livro “Os segredos da Capela Sistina”.

Mensagens ocultas na Capela Sistina

Profeta Zacarias retratado por Michelângelo - Foto de domínio público em Wikimedia- BLOG LUGARES DE MEMÓRIAPara entender a tese de Doliner e Blech é preciso conhecer um pouco a história da capela e o contexto histórico em que ela foi construída (entre 1475 e 1483), por iniciativa do papa Sisto IV.

Naquele momento, havia uma grande rivalidade entre Roma e Florença. A primeira era controlada pela Igreja e defendia intransigentemente a Fé Católica, usando para isso as leis da Inquisição, enquanto a segunda tinha no comando a família Medice e pregava a tolerância religiosa, os valores humanísticos e a retomada de uma estética da Antiguidade Clássica, tornando-se mais tarde um dos principais centros do movimento artístico conhecido como Renascimento.

Eram de Florença os artistas Pietro Perugino, Sandro Botticelli, Cosimo Rosselli, Lucas Signorelli e Domenico Ghirlandaio que Sisto IV levou a Roma para decorar a Capela Sistina com afrescos que narram episódios da vida de Cristo e de Moisés. Já nessas primeiras obras, os artistas teriam cometido algumas rebeldias ocultas.

Foi também em Florença que, vinte anos depois, o papa Júlio II mandou buscar Michelangelo para pintar o novo teto da capela. O artista florentino tinha sido criado como filho por Lorenzo de Medici e, na época, já era um renomado escultor, mas não tinha interesse pela pintura e, por isso, relutou em aceitar o trabalho. Praticamente obrigado pelo papa, ele se esmerou durante quatro anos. Trabalhava sozinho – porque não encontrou ajudantes Detalhe de retrado do profeta Zacarias pintado por Michelângelo - Foto de domínio público em Wikimedia- BLOG LUGARES DE MEMÓRIAque atendessem o seu nível de exigência -, deitado em cima de um andaime e com tinta respingando nos olhos, o que lhe rendeu problemas renais, de visão e uma escoliose.

O resultado visível a todos é uma das mais importantes obras de arte da história. Nas entrelinhas, Michelângelo teria registrado críticas à Igreja e ao papa, e demonstrado sua admiração pelo povo judeu e pela Cabala – braço místico do Judaísmo , adquirida nos anos de convivência com a família Medici.

Além da inexistência, no teto da capela, de referências ao Novo Testamento, e da presença de elementos Judaicos ou mesmo pagãos, como já foi citado anteriormente, Michelangelo teria cometido outras rebeldias: uma delas seria a inclusão de letras hebraicas disfarçadas em algumas cenas, por meio de recursos diversos como uma postura corporal ou a composição de uma imagem. Mas a ousadia maior teria sido o insulto feito ao papa Júlio II, cujas feições foram usadas na representação do profeta Zacarias. De forma sutil, mas plenamente identificável, um dos anjos pintados atrás do profeta faz o gesto de figa – sinal que na época tinha o mesmo significado que damos hoje ao ato de mostrarmos a alguém o nosso dedo médio.

Os afrescos e as lições de anatomia

A famosa cena do Nascimento de Adão - Foto Waldo Miguez em Pixabay - BLOG LUGARES DE MEMÓRIANão bastassem as mensagens ocultas apontadas por Doliner e Blech, há quem enxergue nos afrescos de Michelangelo formas disfarçadas de órgãos e membros humanos. Essa tese é defendida pelos brasileiros Marcelo G. de Oliveira e Gilson Barreto – este último, cirurgião oncológico – no livro “A Arte Secreta de Michelangelo – uma lição de anatomia na Capela Sistina”.

O ponto de partida do estudo teria sido uma da cenas mais famosas dos afrescos – o nascimento de Adão. Nela, o americano Frank Lynn Meshberger já havia identificado, em estudo publicado na revista JAMA (Journal of the American Medical Association), em 1990, a imagem do corte de um cérebro humano formado pelo Criador, Eva e vários anjos localizados à sua volta, apoiados em uma espécie de concha marrom.

O livro aponta imagens anatômicas inseridas em 33 cenas pintadas por Michelangelo na capela, entre as quais um coração e um dos lados do pulmão. Na cena de Jonas, os autores relacionam as narinas de um peixe, que na história bíblica teria engolido o profeta, com o corte transversal de um pênis. Na imagem do profeta Joel, estaria inserida a forma do osso temporal.

O uso de imagens anatômicas por Michelangelo estaria também ligada à sua espiritualidade pois ele teria dito em um de seus sonetos que se Deus fez o homem à sua imagem e semelhança, o que nós temos mais próximo de Deus, na Terra, é a anatomia humana.

As descobertas relatadas no livro são demonstradas em detalhes pelos autores, que destacam o surpreendente conhecimento anatômico de Michelangelo numa época em que era proibido dissecar cadáveres. O estudo foi endossado por anatomistas e estudiosos de arte, mas causaram uma certa polêmica e foram contestadas por alguns autores.O Nascimento de Adão pintado por Michelângelo - Foto Janeb13 por Pixabay - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA

Saber de todas essas histórias, e ter acesso a imagens, ajuda a entender a importância artística desse ‘museu renascentista’, seus possíveis significados ocultos, e o contexto histórico em que suas obras foram produzidas na virada do século 15 para o 16. Serve também para ajudar a escolher o que apreciar, de preferência com binóculo, durante a visita, pois o tempo é curto e a dispersão é grande diante de tantas obras e ao lado de tanta gente (são cinco milhões de visitantes por ano).

Mas talvez a forma mais profunda de usufruir da Capela Sistina seja parar em um ponto e tentar sentir o lugar que, a exemplo das catedrais medievais e de outros centros sagrados das mais diversas tradições, parece ter sido concebido com medidas e imagens capazes de nos levar ao estado de meditação.2

Notas

Capela Sistina – Palácio Apostólico – Vaticano

Texto


Fotos

Referências

Livros:

  • A Arte Secreta de Michelangelo - uma lição de anatomia na Capela Sistina.
  • Os segredos da Capela Sistina - As Mensagens Secretas de Michelângelo no Coração do Vaticano.

Para saber mais

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19 Comentários
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Val Cantanhede
5 anos atrás

Muito interessante seu texto, Sylvinha! Conheci a Capela Sistina e seus museus em 2012. Tudo lindo demais, mas foi impossível ver os detalhes anatômicos nas obras de Michelangelo. Era um mar de gente do mundo inteiro, principalmente chineses e japoneses. Apesar da organização dos grupos com seus respectivos guias, tínhamos que andar num ritmo ligeiro para não nos perdermos na caminhada. Mas valeu a pena!
Parabéns pela matéria, querida amiga!
Abraços
Val Cantanhede

Márcio Rezende
5 anos atrás

Sylvinha, maravilha de matéria. A Sistina reúne perfeição, mistério, história e religião. Arte na maior expressão. Seu texto está sob medida, como sempre. Excelente!

Eleonay
5 anos atrás

Maravilhosa matéria Parabéns

hilda
5 anos atrás

Muito boa a matéria! Não sabia nada desses "detalhes"muito significativos!

Unknown
5 anos atrás

A capela é maravilhosa. Não sabia destas " rebeldias ". Muito interessante.

Anônimo
Anônimo
5 anos atrás

A Capela Sixtina para min foi um espaço de exuberância artística e histórica mas sem nenhum apelo espiritual. É uma pena essa multidão de pessoas. Mas pelo menos a Igreja Católica compartilha com a humanidade esse espaço de arte . Ótimo texto Sylvia.
Augusta Leite Campos

Fabíola Moura
Fabíola Moura
4 anos atrás

Jamais saberia dessas rebeldias de Michelangelo na Capela Sistina, rs. Só depois de ler seu post conheci detalhes e curiosidades desse lugar marcado pela espiritualidade e que também é uma obra de arte e um templo tão importante para os cristão.

Sylvia Yano
2 anos atrás

Muito interessante os aspectos condidos” na pintura de Michelangelo, na Capela Sistina

Sonia Maria Pedrosa Silva Cury
1 ano atrás

Quanta simbologia nessa obra de arte que é a Capela Sistina. Com essas informações, vale a pena voltar pra ver tudo de novo. Valeu, Sylvinha!