Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
Muita gente não entende quando, na letra da música “Trocando em Miúdos”. Chico Buarque pronuncia os versos; “Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim, não me valeu / Mas fico com o disco do Pixinguinha sim, o resto é seu”. Eu sou um exemplo: passei anos até descobrir que Medida é o nome original das Fitinhas do Bonfim – aquelas que os turistas adoram amarrar no pulso ou no tornozelo quando visitam Salvador e que acabou se transformando em um dos símbolos da Bahia.
As Fitinhas do Bonfim atuais, muitos sabem, são usadas como uma espécie de amuleto, com um ritual de colocação que inclui duas voltas e três nós. A cada nó, se faz um pedido que não pode ser relevado a ninguém e só será atendido quando a fita se romper naturalmente. Não adianta tentar acelerar o processo porque se a fita for cortada, os desejos não se realizam. Já a medida, tem características bastante distintas de tamanho, cor, forma uso e até de motivação.
As Medidas antes das Fitinhas do Bonfim
As medidas eram feitas de seda branca e tinham o nome do santo bordado à mão com fios dourados ou prateados. Chamavam-se assim porque seu comprimento, de 47 cm, equilvalia à medida do braço direito da imagem do Senhor do Bonfim que permanece até hoje na Igreja. Eram usadas no pescoço como se fossem colares e tinham uma cruz pendurada.
Os fiiéis que alcançavam graças penduravam também fotografias ou pequenas esculturas de cera que representavam cada graça recebida, os famosos ex-votos. Foi assim até meados do século 20, quando desapareceram e resurgiram anos depois com as principais caracteísticas da fita atual. Não se sabe ao certo quando ocoreu a mudança, mas há registro das atuais Fitinhas do Bonfim já na década de 1960.
A história das Fitinhas do Bonfim
Entre o início de tudo, quando a fita era chamada de medida, e sua utilização atual, no pulso, no tornozelo ou nas grades da igreja do Bonfim, lá se vão mais de dois séculos.
Acredita-se que a Medida do Bonfim tenha sido criada em 1809 pelo então tesoureiro da Devoção de Nosso Senhor do Bonfim, Manoel Antônio da Silva Serva que era livreiro, editor, tipógrafo e fundador da primeira tipografia da Bahia. O objetivo de Serva seria levantar recursos para a Igreja. Mas há registro da existência da Medida em 1804.
Na verdade, a medida parece ser ainda mais antiga. É possível que tenha se originado em um costume antigo de cortar tiras das roupas dos santos para utilizar como amuletos. Além disso, nunca se restringiu à Igreja de Senhor do Bonfim, nem na época em que se chamava medida, e era usada como colar, nem nos dias atuais, quando é chamada de fita e usada no pulso ou nas grades da igreja. Exemplos disso são as Medidas de outros Santos, que existiram na mesma época que a do Bonfim, e as fitinhas atuais do Círio de Nazaré, em Belém do Pará, e de Nossa Senhora Aparecida, em São Paulo, para citar apenas algumas. Mas foram as do Bonfim que ganharam fama e admiração mundo afora.
Da medida artesanal à fita industrializada
Ironicamente, a fitinha símbolo tanto da Igreja do Bonfim, como de sua festa maior, a Lavagem do Bonfim, é hoje produzida principalmente em São Paulo. Tornou-se um produto industrializado feito de nylon. Sua largura é cerca de seis a sete vezes menor que a da Medida, que lhe deu origem, e seu comprimento não corresponde mais a braço do santo. O nome do Senhor do Bonfim não é mais bordado à mão nem leva detalhes dourados ou prateados. Houve mudança também na cor. Se a Medida do Bonfim era sempre branca, as fitinhas são de cores variadas e há quem diga que nisso há um outro simbolismo.
Para alguns, as cores vêm da época em que se usavam as tiras de roupas dos santos. Para outros, são determinadas pelo sincretismo com religiões de origem africana. Assim, a branca estaria ligada a Oxalá, a azul clara, a Yemanjá, a verde, a Oxossi, a amarela Oxum. E, por esse mesmo sincretismo, há uma correspondência entre Orixás e Santos Católicos: Oxalá, por exemplo, corresponde ao Senhor do Bonfim e Yemanjá a Nossa Senhora da Conceição.
Todo esse simbolismo faz com que, mesmo sendo industrializadas – o que, em tese, seria capaz de eliminar sua aura -, as Fitinhas do Bonfim continuem sendo usadas com fé por milhares de fiéis que além de amarrá-las nos pulsos ou nos tornozelos, ainda fazem o mesmo no portão da igreja. E olhem que não foram só essas mudanças que as Fitinhas do Bonfim atravessaram desde o século 19 até agora. A mais radical delas talvez tenha sido o deslocamento de seu uso do plano religioso para o profano.
As fitinhas como objetos midáticos
A partir de um certo momento, as famosas fitinhas coloridas deixaram de ser exclusividade dos fiéis e passaram servir de ornamento para fins diversos: desde decorações feitas com as próprias fitas, até peças de vestuário, roupa de cama e mesa, cortinas, chaveiros e até móveis estampadas com sua imagem.
Um exemplo internacional dessa utilização ‘profana’ da imagem da fitinha é a poltrona Senhor do Bonfim criada pelo estúdio de design italiano 20age que utiliza as próprias fitinhas como decoração da parte posterior. Aqui no Brasil, as fotinhas serviram de inspiração ao designer baiano Carlos Rodeiro que criou a pulseira do Senhor do Bonfim. A jóia tem várias versões de ouro ou prata e algumas delas dão decoradas com pedras preciosas.
Como em tudo que transgride, esse uso profano da imagens das fitas provoca discussões polêmicas entre os que apoiam essa massificação e os que vêem nela uma banalização do objeto sagrado. Mas o curioso é que mesmo os adeptos desse uso dessacralizado das Fitinhas do Bonfim são capazes de comprá-las para cumprir o ritual dos nozinhos esperando que seus pedidos sejam realizados.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre tradições culturais de várias partes do mundo: Kolam / Presépio /
- 2 Leia, também, outras matérias sobre Salvador: Elevador Lacerda / Forte de São Marcelo / Ribeira / Mercado Modelo / Farol da Barra
Fitinhas do Bonfim – Igreja do Bonfim – Salvador – Bahia – Brasil – América do Sul
Fotos
Referências
- Trocando em Miúdos a Medida do Bonfim - artigo de Ana Débora Alves Ferreira - UFBA (PDF)
- Do braço do santo aos braços do mercado: a midiatização da fita do Senhor do Bonfim - artigo de Júnia Martins e Júnior Pinheiro - UFPB (PDF)
- A Transnacionalidade dos Processos Culturais: Fitas do Sr do Bonfim - artigo de Paola Pidleski - CELACC (PDF)
Que bacana esse post sobre as fitinhas do Bonfim. Eu quando estive em Salvador o guia havia me contado essa história da medida do Bonfim, mas não lembrava mais, lendo seu post me recordei. Parabéns pelo post, vc sempre arrasando.
Obrigada, Hebe. Bom saber que você gosta. Volte sempre. Toda semana tem matéria nova por aqui.
Não tenho dúvidas que essas fitinhas do Bonfim são um dos símbolos da Bahia. Visitar a Igreja e tirar uma foto em frente as fitas amarradas no portão precisam entrar no roteiro de quem visita Salvador. Adorei as informações!
Que bom que gostou. As fitinhas são realmente sedutoras. Pelas cores e pelo simbolismo.
Muito bom ter lido esse texto. Aqui me perguntando se a crença continua forte ou também já foi fragilizada pelo Sistema que rompe tantos costumes, para o bem e para o mal. Parabéns pela narrativa, Sylvia!
Difícil dizer, mas me parece que continua forte para muitos.
E que meu Ogum de Ronda nos proteja. Muito bom.
Valeu, Sidney. Volte sempre!