Atualizado em 02/05/2024 por Sylvia Leite
Foi no Oráculo de Delfos que Édipo ouviu a profecia: mataria seu pai e se casaria com a própria mãe. Segundo algumas versões, foi lá também que o herói Herácles (Hércules para os romanos) recebeu a orientação de servir como escravo a seu primo Euristeu, rei de Micenas, para obter o perdão dos deuses por ter assassinado a esposa Mégara e os dois filhos que teve com ela. Essas, muitos sabem, são narrativas mitológicas – e a própria história do oráculo também é contada por um mito, como veremos adiante – , mas esse centro divinatório fez parte da vida material dos gregos e suas ruínas estão lá para nos fazer reviver inúmeros episódios históricos ou simbólicos.
Durante pelo menos 10 séculos, o Oráculo de Delfos, também conhecido como o Oráculo de Apolo, foi uma das mais influentes instituições do mundo antigo, especialmente entre os séculos VIII e IV antes de Cristo. Era procurado por todos os povos do Mediterrâneo e de outras regiões do globo, desde o cidadão comum, que buscava orientações sobre saúde, dinheiro e amor, até governantes e generais que queriam conselhos a respeito de guerras e conquistas territoriais. O Oráculo teria previsto, por exemplo, a Guerra de Troia e a aprovação das leis democráticas de Athenas.
Como adquiriu a fama de acertar nas previsões, recebia de poderosos e até de governos agradecidos, grandes doações em ouro e prata. A riqueza era utilizada na ampliação e no embelezamento do complexo, que incluía templos, anfiteatros e até alojamentos para os sacerdotes. A uma certa altura, os presentes passaram a superar os gastos e a instituição acumulou um enorme tesouro.
“Sei que nada sei”
A fama do Oráculo de Delfos consolidou-se de tal forma, que quando uma previsão não se concretizava, acreditava-se que a resposta tinha sido mal interpretada.
Ao longo dos séculos houve casos de favorecimento dos poderosos que faziam doações, mas sempre no que diz respeito à preferência no atendimento, com colocação privilegiada nas filas. Até onde se sabe, nas poucas vezes em que as respostas foram influenciadas por acordos escusos, os corruptores foram desmoralizados e as pitonisas punidas.
Esse zelo pela veracidade das profecias e o seu potencial de acerto só faziam crescer o respeito ao Oráculo de Delfos. Até filósofos, que questionavam tudo, teriam acreditado em suas predições.
Platão, em seu diálogo “Apologia a Sócrates”, diz que Querofonte, um dos discípulos de Sócrates, certa vez consultou o Oráculo de Delfos. Ele queria saber quem era o homem mais sábio da Grécia e a resposta foi Sócrates. Ao saber disso, Sócrates duvidou, pois não acreditava em seu próprio valor, e começou a entrevistar todos os homens sábios que conhecia na esperança de conseguir provar que o oráculo estava errado. Para sua surpresa, constatou que todos os entrevistados acreditavam saber muito sobre um ou mais temas, mas na verdade não sabiam tanto assim. Então concluiu que ele era realmente o mais sábio, por ter consciência de sua ignorância. E essa teria sido a origem da expressão “sei que nada sei”.
Mergulhando no Oráculo de Delfos
Tão impressionante quanto a reputação do Oráculo de Delfos e as histórias que o envolviam, era a experiência pela qual passavam os visitantes antes de cada consulta. Para obter as respostas que buscavam, gregos e estrangeiros tinham que se purificar em uma fonte e passar por um longo corredor com monumentos dedicados a Apolo, como estátuas e pequenos templos que abrigavam tesouros sagrados. Logo no início dessa caminhada, eles se deparavam com um painel onde estava escrito: “Conhece-te a ti mesmo”.
Em seguida, era preciso sacrificar uma ovelha ou uma cabra para que as entranhas desses animais fossem examinadas por sacerdotes em busca de sinais proféticos. Quando, finalmente, chegavam ao templo de Apolo, os visitantes podiam apresentar suas questões.
Há muitas versões sobre a maneira como isso ocorria. O que coincide em todas elas é o fato de as perguntas serem transmitidas, direta ou indiretamente, a uma mulher, que começava o dia de consultas se purificando em uma fonte sagrada e, antes de responder aos visitantes, inalava gases alucinógenos ou mastigava folhas de louro. Outro ponto coincidente em todas as versões é que as respostas vinham sempre em forma de versos enigmáticos.
A maneira como ocorriam as consultas no Oráculo de Delfos está relacionada à narrativa mitológica que descreve a sua criação e o seu funcionamento.
Ônfalo ou umbigo mundo
Conta o mito que Zeus, deus dos deuses e pai de Apolo, decidiu buscar o ponto médio do mundo e, para isso, soltou duas aves de pontos opostos e extremos: Leste e Oeste. As aves encontraram-se em Delfos, que foi designado como o centro da terra e recebeu uma pedra oval denominada ônfalo (umbigo em grego). A aparência ovalada deve-se, provavelmente, à crença de que esse formato transmitia boas energias a quem o tocasse.
O local pertencia originalmente a Gaia, a deusa da Terra, e era guardado por sua filha Pyton, uma figura mitológica – descrita por uns como serpente e por outros como uma fêmea de dragão – que teria o poder de emitir previsões. Apolo matou o monstro, deixando seus restos mortais embaixo da terra em permanente decomposição e, com apoio de Zeus, tomou posse do lugar para ali construir seu oráculo. Os gases emitidos pelos restos de Pyton teriam o poder de provocar uma espécie de transe desde que inalados por mulheres de boa reputação escolhidas entre as camponesas, que tinham seus espíritos possuídos por Apolo para receber as previsões.
Aquelas que sucessivamente exerceram a função divinatória receberam o nome de pítia ou pitonisa, em alusão à figura mitológica. Inicialmente, as pitonisas eram jovens, mas isso teria provocado raptos por parte de homens poderosos, então resolveram escolher para a função apenas mulheres de meia idade.
Racionalidade e êxtase místico
Nos primeiros tempos, as consultas eram feitas apenas uma vez por ano, na data do aniversário de Apolo, que cai em 7 de fevereiro, mas com o crescimento da demanda foi preciso alterar o calendário e o Oráculo de Delfos passou a atender nove vezes por ano, um dia a cada mês, de fevereiro a outubro. Muitos se perguntam por que somente nove dias de atendimento mensal se o ano tem doze meses. A resposta provável é que os outros quatro eram dedicados a outro deus, Dioníso, que também residia ali.
O espaço de Delfos mais identificado a esse deus e suas ações era o teatro localizado logo abaixo do templo de Apolo, que também encontra-se em ruínas. Nesse lugar foram realizados os Jogos Píticos, anteriores e bem mais amplos que os olímpicos, pois incluíam competições artísticas, nas áreas de teatro, música e poesia. O teatro de Delfos foi também, por muito tempo, a sede de festivais artísticos.
No mês de novembro, cerimônias com dança, música e vinho eram realizadas em Delfos em homenagem a Dioníso. Conta-se que ritos secretos, envolvendo mulheres jovens, levavam seus participantes ao êxtase.
Enquanto Apolo encarnava a razão, a beleza, a música e o controle, Dioníso representava o êxtase, a embriaguez, a reprodução e a sexualidade. Os gregos acreditavam que, por diferentes meios, ambos eram capazes de proporcionar o auto-conhecimento: um pela introspecção e o outro pelo vinho. A convivência entre dois deuses com qualidades aparentemente opostas fazia do lugar um espelho do ser humano com seus aspectos complementares e trazia equilíbrio ao lugar.
Mito e realidade
Toda essa riqueza mitológica ficou perdida no tempo, guardada nos livros ou restrita a alguns grupos. Os oráculos também não fazem mais parte da vida dos gregos. Quem visita o Oráculo de Delfos atualmente, pode ouvir de um guia que as pitonisas tinham truques para enganar o seu público. O mais repetido é relativo à consulta do sexo dos bebês. Segundo os guias atuais, as pitonisas informavam às mães que o bebê seria de um determinado sexo e registravam nos arquivos o sexo oposto. Quando a previsão coincidia com a informação recebida pela mãe, não havia reclamação. Quando havia contradição, a pitonisa usava o registro com o sexo trocado para provar, falsamente, que a mãe tinha se enganado.
Esse ceticismo dominante na Grécia moderna em relação ao Oráculo de Delfos e aos mitos que o envolvem devem-se, principalmente, a uma mudança de mentalidade ocorrida ao longo dos séculos. A noção de mito que temos ordinariamente nos dias atuais é bem distinta da que tinham os gregos daquele período. Para eles, as histórias mitológicas eram estruturas narrativas, eram modelos, não no sentido moral de exemplo a ser seguido, mas no sentido de molde ou desenho que se repete. E os oráculos faziam parte da vida em sociedade. O filósofo Platão, em seu diálogo A República, chegou a colocar um oráculo no centro da cidade ideal, embora não tivesse nenhum apreço pela religião.
Para os gregos, mito e realidade estavam intimamente ligados porque um dava forma ao outro e os oráculos, que pertenciam aos deuses, faziam parte daquela sociedade regida pelo sagrado. Hoje em dia, isso talvez possa ser visto em condição análoga à das religiões que lidam com mediunidade e à das correntes da psicanálise pois trabalham, cada grupo à sua maneira, com narrativas simbólicas e com o acesso a elementos invisíveis. Somente conhecendo um pouco dessa forma de pensar, teremos a chance de compreender o que se passava em Delfos.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, sobre outros sítio arqueológicos: Mikonos /Tulum / Teotihuacan /Troia / Éfeso / Pérgamo / Teatro de Epidauro
Oráculo de Delfos – Delfos – Monte Parnaso – Grécia
Fotos
- Márcia Andrade de Almeida
- Dinorah Regis
- Sylvia Leite
Referências
- Esta matéria resultou de uma visita a Delfos e de leituras diversas, mas também de uma troca de ideias com o artista e curador de artes visuais Gilberto Habib de Oliveira
Demais, Sylvinha! Deu saudade da Grécia e de toda a magia desse país incrível!
Eu também fiquei com saudade. Beijo
Muito bom texto, Sylvinha. Contribuiu para apreciar melhor a visita recente que fiz a Delfos e aumentar a curiosidade pelo intricado da Mitologia
Adorei Silvinha. Como disse Jane você complementou o que nos foi informado.
Obrigada, Jane. É uma honra receber esse tipo de elogio de uma escritora. Beijo
Que bom que gostou, Márcia, afinal essa matéria foi feita em parceria com você, que disponibilizou suas belas fotos. Obrigada, e agora que já aprendeu o caminho, volte sempre. Beijo
Lindo Texto com uma viagem de primeira classe , Parabéns Silvinha ������ Marcelo
Obrigada, Marcelinho! Alguns de nossos amigos comuns estiveram comigo em Delfos. Pena que você não foi. beijo
Belo trabalhob! Parabéns !
Bem espertinhos esses caras .
Obrigada, Rokstein.
Beleza!Ah e com vinho , rsrsrs
Tim tim!!!
Jung em suas pesquisas utilizou de oraculos para chegar ao inconsciente. A Grecia Antiga tem uma riquesa de conhecimento que não chegamos a esgotar. Parabéns Sylvia por nos enriquecer um pouco mais. Adorei.
Augusta Leite Campos
Obrigada, Gusta. Adoro ter você como leitora assídua.
Adorei as explicações sobre este tesouro maravilhoso da antiguidade grega. As fotos também. É como se estivesse presente, vivenciando este momento mágico.
Obrigada pelo comentário. Pena que você não se identificou. Da próxima vez escreva seu nome ao final da mensagem.
Um belo trabalho. Passa muito conhecimento. Parabéns.
Uma boa reportagem. Parabéns
Verdade! Obrigada pelo comentário!
Obrigada, Maria Helena!
Obrigada, Maria Helena. Beijo
Adore
I. Fui a Grecia mas ainda n fui lá. Mas irei.
Vá mesmo!Não vai se arrepender. Da próxima vez deixe seu nome, ok? Abraços!
Obrigada Sylvia!
Eu que agradeço, Regina. Muito bom ter retorno dos leitores.
Nossa eu poderia passar horas lendo sobre o Oráculo de Delfos e seus lugar de profecias! Amo a mitologia grega e acho tão interessante saber como formava a sociedade dali com personagens tão emblemáticos.
Eu também fico fascinada com a mitologia. Que bom que voce gostou. Volte sempre. Toda semana tem matéria nova no blog.
Quanta riqueza no Oráculo de Delfos! Um lugar interessantíssimo para se conhecer tanto pela cultura quanto pela história.
Adoro a mitologia grega, acho fantástico a mistura de lugares e lendas que até hoje permanecem no nosso imaginário. Tenho muita curiosidade em conhecer o Oráculo de Delfos, quem sabe no pós pandemia.
Sylvia, muito legal saber mais sobre oraculo de delfos, é realmente um local riquíssimo em história, acho super bacana mitologia.
Sou apaixonada por mitologia greco romana desde criança, e conhecer o Oráculo de Delfos sempre foi um dos meus maiores sonhos. Eu não sabia que o templo de Apolo era dividido com Dionísio. Pergunta: as Pitonisas eram virgens ou elas também participavam das cerimônias de sexo ou Bacanais (baco (romana)=dionisio(grega) que deram origiem ao carnaval ou (festival da carne))ou elas tiravam "ferias" durante os 3 meses de dionisio?
Sim, Van, muito interessante. E é emocionante estar lá. Parece que a gente fez uma viagem no tempo e mergulhou na mitologia.
Coloque na sua lista, Andrea. Como você mesmo disse, visitar Delfos e outros sítios mitológicos é como resgatar esse imaginário ao qual vc se refere. É como viajar no tempo para dentro da mitologia.
Ruqíssimo mesmo. Fiquei encantada.
rsrsconjuntamente Se havia essas escapadas não dá pra saber, mas a regra determinava que elas fossem virgens.
Sensacional! Sou apaixonada por mitologia! Quero muito conhecer o Oráculo de Delfos. Esse lugar de profecias no centro do mundo é um espetáculo!
É mesmo, Iara, um espetáculo. Se for à Grécia, não deixe de conhecer.
Eu morro de vontade de conhecer a Grécia e imagino a emoção que seja conhecer o Oráculo de Delfos! Parabéns pelo pos
É realmente uma emoção visitar o Oráculo de Delfos. Um lugar muito especial.
Adorei conhecer mais sobre o Oráculo de Delfos. Tenho muita vontade de visitar a Grécia.
Vale a pena visitar o Oráculo de Delfos e outros lugares especiais da Grécia. Aqui no blog tem outras matérias que podem te interessar como Teatro de Epidauro e Mikonos. E ainda virão outras. Fique de olho!
Como eu amo a Grécia. Passei uns dias no país, visitei lugares magníficos, mas não fui ao Oráculo de Delfos. Maravilhoso esse post, uma aula profunda de história.
Que bom que você gostou. Todas as matérias do blog têm uma abordagem histórica. Dê uma olhadinha nas outras.
Que bela reportagem você fez neste post sobre o Oráculo de Delfos. Seu texto ficou excelente, Sylvia. Bjs
Obrigada, Cecília. Volte sempre. Toda semana tem matéria nova aqui no blog.
A Grécia nos fascina com sua rica cultura e mitologia. Além de ter sido o berço de um grande império, da democracia e de grandes filósofos, ela traz histórias interessantíssimas (e reais!) como essa do Oráculo de Delfos! Obrigada por compartilhar!
Eu que agradeço pela leitura e pelo comentário.
A mitologia grega desperta uma curiosidade grande em nós. Ter a chance de conhecer a Grécia, incluindo Delfos, sabendo desses detalhes da mitologia, como o Oráculo de Delfos, faz toda a diferença.
Faz mesmo. Sem saber o que aquelas ruínas significam, perdemos parte do seu encanto.
Que especial este texto com tantas informações interessantes sobre Oráculo de Delfos. Magnifica a história deste lugar de profecias no centro do mundo. Quero muito conhecer.
É um lugar muito especial. Você não vai se arrepender.
Gostei muito, muito, muito do artigo.
Que bom que gostou da matéria sobre Delfos. Volte sempre!
Vou voltar sim, com certeza.
Maravilhoso seu artigo! Estive em Delphos há 2 semanas atrás e desde então não paro de pesquisar sobre a história desse lugar tão intrigante. Seu texto me deixou ainda mais fascinada e grata por ter estado fisicamente nesse lugar incrível aos pés do Monte Parnaso. Gratidão a vc por ter compartilhado um texto tão rico e completo! Se tiver mais textos sobre a mitologia grega e Delphos, gostaria muito de ler!
Silvia
Que bom que gostou, Silvia! O blog tem vários outros textos sobre a Grécia e também sobre a Turquia. Creio que a Mitologia entra apenas no de Tróia e no de Pamukkale.