Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite
O Museo Frida Kahlo, também conhecido como La Casa Azul e localizado no bairro de Coyoacán1, na Cidade do México, tem em comum com outras instituições do gênero o fato de ter sido moradia da artista, mas carrega também algumas especificidades. Talvez seu maior diferencial seja o fato de ter sido cenário não apenas da infância ou de um certo período de sua vida, mas o lugar onde ela nasceu, foi criada, viveu com o marido – o muralista Diogo Rivera – e morreu, aos 47 anos. Além de moradia, a La Casa Azul foi também seu ateliê e local de acolhida para amigos de várias partes do mundo como o chileno Pablo Neruda e o russo Leon Trótski, que viveu na casa, com sua mulher Natalia Sedova, por cerca de dois anos.
Tróstski não foi apenas amigo e hóspede. Entre ele e Frida, enquanto ambos viviam na Casa Azul com seus respectivos companheiros, nasceu uma paixão arrebatadora que durou cerca de seis meses: ela com menos de 30 anos e ele com quase 60. As cartas que trocaram deu origem ao romance “Les amants de Coyoacan” traduzido no Brasil como “Frida e Trótski“, do escritor francês Gerárd de Cortanze. O tempo que passou com Trotski teria sido, segundo Frida, o mais feliz de sua vida e a época em que mais pintou. Mesmo depois que deixou La Casa Azul, por divergências com Diogo Rivera, Trotski continuou impactando a vida de Frida, ainda que involuntariamente. Ao ser assassinado, em 1940, ela e sua irmã foram presas como suspeitas, mas logo inocentadas.
Por tudo isso, entrar em La Casa Azul é mergulhar no universo íntimo de Frida Kahlo, em suas memórias pessoais e familiares que ficaram gravadas em cada canto e em cada parede. É contemplar o acervo formado por pinturas suas e de Diogo Rivera. É desvendar o ambiente que inspirou a produção de ambos, formado por peças de arte popular, esculturas pré-colombianas, livros, fotografias e documentos. E, principalmente, é entrar em contato com uma história de dor transformada em arte.
Frida Kahlo não pintava sonhos
Olhar os quadros de Frida no ambiente em que a artista viveu nos ajuda a entender melhor o que estava por trás daquelas formas e cores. Ela ficou conhecida pelos autorretratos, mas não se limitou a registrar seu aspecto exterior. Em cada tela, a artista inseria diferentes elementos simbólicos da sua dor física e emocional, decorrente de tristes acontecimentos: primeiro, uma poliomielite aos seis anos de idade, que a deixou com uma perna menor que a outra, depois, aos 18 anos, um acidente que provocou várias fraturas, inclusive na coluna, além de lesões pélvicas que a impediram de ser mãe.
Na tela “Hospital Henry Ford (A Cama Voladora)”, de 1932, Frida faz alusão a uma gravidez que não conseguiu levar até o fim em decorrência do acidente. Já a tela “A coluna partida”, de 1944, foi pintada enquanto a artista se recuperava de uma cirurgia – uma das 35 por que passou ao longo da vida – e faz alusão à coluna quebrada e aos coletes que precisou usar por longos períodos. Cerca de um ano depois, foi a vez de um dos quadros mais perturbadores de toda a sua obra, intitulado “Sin Esperança”. Nesse período, a artista precisava se alimentar por meio de um funil, que aparece na tela como instrumento de tortura.
Talvez pelos elementos simbólicos e pela aparência onírica de suas imagens, Frida foi considerada pela crítica uma pintora surrealista, mas em momento algum concordou com esse rótulo: “Eu nunca pintei sonhos. Eu pintei minha própria realidade”, dizia. Mesmo assim, aceitou participar da quarta Exposição Internacinal de Surrealismo e foi para esse evento que pintou o quadro “As duas Fridas”, em que mostra sua ascendência européia, vinda do pai alemão Guilhermo Kahlo, e a mexicana, vinda da mãe mestiça Matilde Calderón, que decendia de indígenas e espanhóis.
A cama, em La Casa Azul: o primeiro ateliê
O sofrimento por que passou, especialmente a partir dos 18 anos, foi o motor de sua carreira artística. Antes do acidente entre um ônibus e um trem, que provocou as inúmeras lesões em seu corpo, Frida tinha a intenção de tornar-se médica e chegou a ingressar na Escola Nacional Prearatória da Universidade do México, mas parou de frequentar as aulas um ano depois por causa da uma turbulência política que atingiu o país. Passado mais um ano, ocorreu o acidente e, foi em sua cama, em La Casa Azul, durante os nove meses de recuperação, que Frida fez seus primeiros quadros, incentivada pelos pais e com a ajuda de um cavalete que lhe permitia pintar recostada.
O primeiro auto-retrato, de 1926, foi presenteado ao então noivo Alejando Gómez Arias. Três anos depois, Frida já vivia com Diego Rivera, em Cuernavaca, e tinha seu primeiro aborto. Diego foi retratado várias vezes ao lado de Frida, mas o quadro mais impressionante talvez seja “Diego e Frida (1929-1944)”, que fez de presente para o marido em comemoração aos quinze anos de casamento. Nele, a artista funde o seu rosto ao de Rivera e os envolve em raízes vegetais, destacando em volta alguns pares de opostos complementares como dia e noite, feminino e masculino.
Magdalena Carmen Frida Kahlo Calderón – este era seu nome completo – já nasceu com genética e influência artísticas. O avô materno e o pai eram fotógrafos. A pintura, que no começo foi apenas um recurso para tornar mais leves os nove meses de recuperação em cima de uma cama, tornou-se meio de vida. Foi a forma que ela encontrou para ajudar os pais a custearem seus caros tratamentos. Frida pintou quase 150 quadros e mais de um terço deles eram autorretratos.
A fama internacional só veio décadas depois de sua morte. Enquanto viveu, alcançou certo reconhecimento e chegou a ter uma obra adquirida pelo Louvre, mas, principalmente no México, era vista como a mulher de Diego Rivera. Com o tempo, a situação se inverteu e agora é o muralista quem ocupa a posição de marido de Frida.
La Casa Azul e os amores de Frida Khalo
Apesar de ter durado 25 anos, a relação de Frida Kahlo com Diego Rivera nunca foi um mar de rosas. Associada às dores provocadas pelas fraturas ocorridas no acidente, Frida Kahlo viveu também uma dor crônica, decorrente da constante infidelidade do marido. Já nos primeiros anos de casamento, o muralista passou a se envolver com assistentes, admiradoras e até com Cristina, a irmã mais nova de Frida. Não se sabe se para vingar-se do marido, para adaptar-se à realidade do próprio casamento ou porque descobriu os prazeres da liberdade sexual, ela acabou seguindo o mesmo caminho, tendo inúmeras paixões, com uma diferença: relacionava-se tanto com homens como com mulheres.
Rivera, que achava natural a própria infidelidade, nunca aceitou os casos heterosexuais de Frida. Já as relações homossexuais eram incentivadas por ele. Mesmo com a oposição do marido, Frida se relacionou mais com homens do que com mulheres. Além de Trótski, com quem se envolveu dentro de La Casa Azul, é bastante conhecido o seu romance com o escultor estadunidense de origem americana Isamu Noguchi.
Na época, ambos moravam na Estados Unidos, mas muitos dos encontros ocorreram na Cidade do México, em La Casa Azul, onde na época vivia Cristina, a irmã de Frida que havia se envolvido com Rivera. Embora breve, o caso entre Friha e Noguchi durou tempo suficiente para que ele lhe presenteasse com uma coleção de mariposas que até hoje se encontra no teto do quarto que pertenceu à artista na famosa casa que se tornou museu.
Frida Kahlo também se envolveu com o fotógrafo húngaro Nickolas Muray, quando le visitou o México, em 1931. Os dois teriam sido apresentados por um casal de amigos: a bailarina Rosa Rolanda e o desenhista Miguel Covarrubias.
Uma artista militante
La Casa Azul foi testemunha, também, da militância de Frida Kahlo. A artista e seu futuro marido aproximaram-se na Liga de Jóvenes Comunistas, onde ela ingressou em 1928. Depois de casados, fizeram de La Casa Azul um ponto de encontro de artistas e intelectuais revolucionários. O próprio Trotski, que acabou se envolvendo com Kahlo, foi abrigado pelo casal para refugiar-se da perseguição por parte do Stalinismo e do Fascismo.
Mas a história política de Frida Kahlo é bem anterior a tudo isso. Antes de conhecer Rivera, ainda com 16 anos, uniu-se ao grupo estudantil “Los Cachuchas”, formado por nove homens e duas mulheres. O grupo era identificado por bonés de pano que usavam para desafiar o código de vestimenta da época. Mas as afinidades entre os integrantes ia muito além da aparência. Segundo a própria Frida, eles devoravam livros “sobre uma variedade de assuntos, especialmente Literatura” e escreviam versos. Além disso, partilhavam valores políticos de esquerda.
Na verdade, a simpatia da artista pela política foi uma herança familiar. Em sua infância, Frida viu os pais abrigarem feridos que lutavam na Revolução Mexicana. Sua mãe, segundo conta, abria as janelas de La Casa Azul para os zapatistas entrarem e lhes oferecia tortillas – o único alimento que havia em Coyoacán naquele momento. Frida apegou-se de tal forma a essas cenas que dizia ter nascido em 1910, ano da revolução, embora sua data real de nascimento seja 1907.
A identificação de Frida com os menos favorecidos viria também de sua própria história. Por causa da Revolução, seus pais tiveram abalos financeiros que os obrigou a hipotecar a casa, vender os móveis e alugar quartos. Além das agruras da família, a artista teve suas dificuldades pessoais, como o apelido de Frida perna-de-pau por causa da deficiência física.
As roupas encontradas em La Casa Azul
A essa trajetória, juntou-se uma influência recebida na Escola Preparatória, que a artista passou a frequentar aos 14 anos, no momento em que fervilhava um sentimento nacionalista iniciado com a Revolução. Talvez por tudo isso, mesmo sendo descendente de alemães e tendo vivido em São Francisco, Nova Iorque e Paris, Frida nunca deixou de valorizar a cultura local. Isso está demonstrado na coleção de Arte Popular e Pré-Colombiana que compõem o acervo de La Casa Azul e, de forma ainda mais evidente, na maneira como se vestia, com as tradicionais saias coloridas e blusas bordadas, como as usadas por mulheres indígenas, conhecidas como Huipil.
Em 2004, cinquenta anos depois da morte de Frida, foi descoberta em seu banheiro uma coleção de roupas, xales, joias, sapatos que eram usados continuamente pela artista e que se transformaram em sua marca. Essa maneira de se vestir ajudava Frida a ocultar o defeito físico deixado pela poliomielite, mas era, principalmente, uma maneira de se mostrar conectada com sua cultura ancestral.
O gosto de Frida por suas raízes mexicanas era compactuada por Diego Rivera e ambos acumularam, ao longo da vida, uma imensa coleção de peças pré-hispânicas. O sonho do casal era reuni-las em um museu que funcionasse também como centro cultural. A concretização desse sonho ocorreu em 1964, quando ambos já haviam morrido.
O Museu Anahuacalli – palavra de origem náuatle que significa “casa cercada de água”, funciona em um prédio em forma de pirâmide mesoamericana, projetado pelo próprio Rivera em parceria com Juan O’Gorman, que além de pintor era também arquiteto. Está localizado em Coyoacán, o mesmo bairro do Museu Frida Kahlo. Para visitá-lo, basta comprar ingresso para La Casa Azul. 1
Notas
- 1 Coyoacán é um dos bairros intelectuais e boêmios da capital mexicana. Breve escreveremos sobre o tema
- 2 Leia, aqui no blog, matérias sobre outros lugares especiais do México: Tulum / Teotihuacan
- 3 Leia, também, sobre outros museus-casa ou pequenas cidades que abrigam esse tipo de instituição: Museu Botero / Casa do Rio Vermelho / Cordisburgo / Brodowski / Casas de Neruda
La Casa Azul – Coyoacán – Cidade do México – México – América do Norte
Fotos
- (1) Foto de Rod Waddington from Kergunyah, Australia em Wikimedia - CC BY-SA 2.0
- (2) Bob_Schalkwijk_2017 no Site Oficial do Museu Frda Kahlo - museo - #casazul
- (3,4 e 5) Site oficial do Museo Frida Kahlo - Frida Kahlo - Obra
- (5,7,8,9,10) - Site oficial do Museo Frida Kahlo - Frida Kahlo - Biografia
- (11) Site Oficial do Museo Frida Kahlo - Museo - Exposiciones
- Site Oficial do Museo Frida Kahlo - Museo - Anahuacalli
Referências
- Site oficial do Museo Frida Kahlo
Muito bom . Não conhecia n a metade da história de Frida
Frida tem uma história impressionante e o museu é muito legal. Vale a pena conhecer.
Frida . Quebrou tabus , revolucionou sua identidade. Através do seu sofrimento. Se tornou uma grande artista com belas artes e história de vida , descuida em salas de aula!
Realmente Frida quebrou tabus e foi uma personalidade muito importante, tanto para a Arte como para os costumes.
Ótimo texto, Sylvinha!
Conheci a casa de Frida Kalho em 2014. Enfrentamos uma fila grande de turistas,mas valeu a pena.
Abraço
Eu fui quando Frida ainda era pouco conhecida fora do México, então tive a sorte de não enfrentar filas e de fazer uma visita tranquila, com pouca gente em volta.
Como Frida sofreu, meu Deus. Acredito que as dores emocionais tenham sido muito maiores que as físicas. Nunca entendi por que ela se submeteu a um marido como esse….
Sim, sofreu muito e acho difícil medir qual foi a dor maior, mas certamente o casamento foi uma das principais fontes de sofrimento.