Ilha de Marajó: um mundo a parte

Tempo de Leitura: 7 minutos

Atualizado em 16/10/2024 por Sylvia Leite

Casarão em rua tranquila de Soure na Ilha de Marajó - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAAssim como outros lugares isolados e pouco populosos, a Ilha de Marajó nos transmite paz e tranquilidade, ao lado daquela sensação especial que só costumamos ter quando estamos rodeados de água. Falo em água de forma genérica porque Marajó não é uma ilha maríitima e tampouco fluvial. Na verdade, não é apenas uma ilha, mas um arquipélago que reúne mais de 2.500 ilhas e suas terras são cercadas por águas tanto de rio como de mar. Apenas esses dados iniciais já são capazes de dar uma ideia da complexidade desse mundo a parte que se esconde entre o oceano Atlântico e o delta do rio Amazonas, em frente às costas do Pará e do Amapá.

Para chegar até lá, é preciso vencer muita água – por um caminho que pode levar de duas a quatro horas, a depender da embarcação – e durante boa parte do trajeto não se vê rastro de terra firme. Não é por acaso que foi chamada de Ilha de Marajó, nome que significa ‘tirado do mar’ ou ‘o tapa mar’.

A longa e monótona travessia nos ajuda a fazer a transição entre os dois mudos, tanto a esquecer o que deixamos para trás como a abrir os olhos para a realidade que teremos pela frente: um lugar onde Rua tranquila em Soure na Ilha de Marajó - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA se pode encontrar de búfalos soltos no meio da rua, a praias que durante uma parte do ano são predominantemente fluviais e, nos meses restantes, recebem mais água do Oceano Altântico, a depender do movimento das marés.

A mais importante das 2.500 ilhas leva o mesmo nome do arquipélago (Ilha de Marajó) e, com seus quase 42 mil km² – área equivalente a países como a Suiça ou a Dinamarca -, é considerada a maior ilha do Brasil e a maior ilha fluviomarítima do mundo.

Nessa ilha principal – a que se chama Ilha de Marajó -estão localizados 12 dos 16 municípios nos quais se divide o arquipélago, incluindo as cidades mais turísticas de Soure, Salvaterra e Joanes. Nela, o visitante pode encontrar pelo menos uma amostra de tudo o que o arquipélago tem a oferecer: praias, igarapés, biodiversidade, artesanato, búfalos e até um museu.

Bufalo solto em Soure - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAIlha de Marajó: mais búfalos do que gente

Embora os búfalos não sejam nativos da região – e sim trazidos da Ásia – é impossível falar hoje da Ilha de Marajó sem fazer referência a eles. São cerca de 600 mil – número maior que o de habitantes do arquipélago. E se falarmos apenas na principal ilha, aquela que leva o nome de Marajó, podemos considerar dois búfalos para cada habitante.

Em Soure, há bufalos andando sem rumo, puxando carroças ou até servindo de montaria para policiais. Eles são mansos e não se asustam com a aproximação dos visitantes. Mas a razão de sua presença na ilha está longe desses fatos pitorescos. Os búfalosPeça de cerâmica Marajoara - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA fornecem carne e leite para a produção de queijo –  os dois ingredientes básicos do atual prato típico da Ilha, conhecido como o Filé Marajoara. Seu couro é usado na produção de sapatos, bolsas, cintos e chapéus e sua presença impulsiona o turismo local.

Como tudo isso começou, até hoje não se sabe ao certo, mas, segundo a tradição oral, os primeiros búfalos chegaram por acaso, no século 19, quando um navio francês vindo da Índia em direção à Guiana naufragou na região. Os búfalos que não se afogaram teriam nadado até a ilha e dado início a uma pequena manada que primeiro cresceu naturalmente e depois foi reforçada por importações feitas pelos fazendeiros que já haviam descoberto o valor econômico desses animais.

A lendária Cerâmica Marajoara

Se os búfalos são importados, a Cerâmica Marajoara é a mais autêntica manifestação cultural da ilha. Era feita por povos que ocuparam o arquipélago entre os séculos 5 e 15 de nossa era, aproximadamenre entre os anos 400 e 1400. Era uma cerâmica sofisticada e simbólica, que encantou pesquisadores do mundo todo. Infelizmente, esses povos não existem mais, mas sua arte continua viva na memória dos artesãos, arquitetos e decoradores da ilha.Quiosque de bar com adornos de inspiração Marajoara - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA

É comum vermos bares, restaurantes, pousadas e, principalmente o artesanato cerâmico da região decorados com grafismos utilizados por esses antecessores. E há pelos menos dois artesãos locais que estudam a tradição marajoara a fim de imprimir a seus trabalhos uma influência consciente dessa arte milenar: Carlos Amaral, Ateliê M’Barayó  e Ronaldo Guedes, do Arte Mangue Marajó.

Carlos se considera descendente dos Aruã – última tribo a ocupar a região no período denominado Marajoara. Mantém um ateliê aberto onde se pode assistir à produção das peças em um torno e aos trabalhos de polimento e decoração das peças feitos, respectivamente, com dentes de peixe e ferrão de arraia. Sua aproximação aos elementos marajoaras se dá de forma mais intuitiva e por meio de elementos místicos.

Artesão Carlos Amaral tralahando em seu ateliê - Foto de Silvio Oliveira - BLOG LUGARES DE MEMORIAJá Ronaldo tem uma pesquisa mais alinhada com padrões acadêmicos e seu foco concentra-se principalmente na técnica utilizada nas peças marajoaras, sem contudo desprezar os significados e crenças da civilização que as produziu. Em seu ateliê são realizadas oficinas de formação para moradores e turistas. Ronaldo mantém, ainda, vitrines com pequenos vasos e até pedaços de peças maiores encontrados em sítios arqueológicos marajoaras.

Significado e destino da Arte Marajoara

A Cerâmica Marajoara era uma arte muito complexa, intrinsecamente ligada ao sistema de divindades do povo que a produzia. Esse simbolismo se materializava em formas de animais, de figuras humanas, de representações das formas femininas e de símbolos de fertilidade. Foi descoberta em 1871, por dois pesquisadores – Charles Frederick Hartt e Domingos Soares Ferreira Penna – mas os estudos sobre essa arte milenar só começaram para Artesão Ronaldo Guede em seu ateliê - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIAvaler no século 20, mais precisamente na década de 1940.

Grande parte do material resgatado pelos cientistas foi localizado graças à revelação de que os marajoaras erguiam suas casas sobre morros artificiais conhecidos como Tesos, que tinham a função de protegê-las contra inundações. Sob esses morros, os arqueólogos encontraram vários tipos de objetos utilitários,como vasos, tigelas, potes, além de peças de vestuário, como tangas, e urnas funerárias – estas últimas, consideradas hoje a parte mais importante de toda a produção da Arte Marajoara.

As peças mais valiosas estão espalhadas em museus do Brasil e do exterior1.Peças arqueologicas de Cerâmica Marajoara - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA Mas os ilhéus conseguiram erguer, em Cachoeira do Arari, na ilha principal do arquipélago, o Museu de Marajó, com registros da cultura local e algumas peças marajoaras de menor valor artístico, mas de grande importância histórica por tratar-se de objetos de uso cotidiano.

A arte marajoara autêntica pode ser vista, ainda, na sede da Instituição Caruanas do Marajó Cultura e Ecologia comandada pela Pajé Zeneida Lima, que mantém uma escola regular e várias oficinas, inclusive de cerâmica com ensinamentos sobre a civilização marajoara.

A Pajelança Cabocla da Ilha de Marajó

Pajé Zeneida Lima - Foto de Silvio Oliveira - BLOG LUGARES DE MEMORIAA Pajé Zeneida Lima é responsável, também, pela manutenção e divulgação de uma das mais impressionantes manifestações culturais da Ilha de Marajó: a Pajelança Cabocla – um ritual de cura xamanística, baseado em crenças e costumes dos antigos índios da região, provavelmente Tupinambás.

A cura alcançada durante a cerimônia é realizada, segundo Zeneida, pelos Caruanas, ou Encantados – os seres invisíveis que vivem sob as águas e que se incorporam nos pajés durante os rituais. São tambémCartaz do filme Encantados - BLOG LUGARES DE MEMORIA essas energias que zelam pela harmonia da natureza. Além disso, identificam os seres humanos que têm o dom do Pajeísmo e emitem sinais aos pajés, a quem cabe iniciá-los.

Foi assim com Zeneida. Sua iniciação coube ao pajé Mestre Mundico do Maruacá – uma região do Município de Salvaterra – e durou um ano e 17 dias. Nesse período, ela aprendeu sobre o Mundo Encantado e seus mistérios e teria sido conduzida até lá pelo Peixe de Sete Asas Coloridas.

Zeneida se considera, e é considerada por muitos, a última Pajé Cabocla da Ilha de Marajó por manter, sem alterações, os elementos desse culto, enquanto os demais pajés haveriam assimilado outras práticas e crenças, o que os teria distanciado dos ensinamentos tradicionais do Pajeísmo Caboclo. 2 Ela ficou conhecida nacionalmente em 2018 quando sua história foi contada pela cineasta Tizuka Yamasaki no filme Encantados. 3

Notas

  • 1 Museu Paraense Emílio Goeldi, Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Museu Universitário Professor Oswaldo Rodrigues Cabral, Museu Americano de História Natural ( Nova York)
  • 2 Pesquisadores acadêmicos de fato registram o sincretismo das práticas xamânicas da Amazônia, região na qual se inclui a Ilha de Marajó, decorrentes do contato com o branco e com o negro, mas não indicam exceções
  • 3 Leia, aqui no blog, outras matérias sobre lugares especiais do Pará: Santarém / Alter do Chão / Theatro da Paz / Comunidade de Coroca

Ilha de Marajó – Arquipélago de Marajó – Pará – Brasil – América do Sul

Texto

Fotos

  • (1,2,3,4,5,7,8) Sylvia Leite
  • (6,9) Silvio Oliveira - To no Mundo
  • (10) Cartaz do filme Encantados
Compartilhe »
Increva-se
Notificar quando
guest

16 Comentários
Avaliações misturadas ao texto
Ver todos os comentários
Luiz Carlos
Luiz Carlos
2 anos atrás

Excelente texto e fotos com relato histórico marcante sobre a história e cultura Marajoara. Parabéns

Marco Tulio Leite Rodrigues
Marco Tulio Leite Rodrigues
2 anos atrás

Gostei muito

José Nivaldo Vieira
José Nivaldo Vieira
2 anos atrás

Excelente trabalho! Rico em informações geográficas, históricas e culturais. Um belo incentivo ao turismo. Parabéns, jornalista Sylvia Leite!

Cristiane
Cristiane
2 anos atrás

Linda reportagem! Muito importante conhecermos nossa cultura ancestral, somado a esse lugar tão inusitado e imaculado.

Joaquim Sobral
Joaquim Sobral
2 anos atrás

Mais um lugar que preciso conhecer. Muito bom trabalho Sylvinha. Obrigado et parabéns.

Ma. Elisa Fernandez
2 anos atrás

Como siempre Sylbia muy rico aporte q lleva a querer conocer el destino! Gs

Sonia Pedrosa
2 anos atrás

Muito interessante, Sylvinha! O nosso Brasil é uma grande surpresa e a Ilha de Marajó, ou melhor, o arquipélago é um belo destino a se visitar! Belo texto!

Carlos Calixto
Carlos Calixto
2 anos atrás

Excelente trabalho com merecidos elogios. Parabéns!