Atualizado em 30/03/2025 por Sylvia Leite
Quando uma bailarina, ou um bailarino de Flamenco bate o pé no chão, transmite com seu gesto a força do povo andaluz – que habita o Sul da Espanha – e faz vibrar energias geradas em pelo menos três culturas: ciganos, árabes e judeus. Mas o Flamenco não é só dança (ou baile): é também canto (ou cante), e música (toque). Para os bailarinos (ou bailaores), cantores (ou cantaores) e músicos (tocaores), Flamenco é um estilo de vida; uma forma vigorosa de manifestar emoções como paixão, angústia, tristeza e também alegria.
Entre praticantes e admiradores do Flamenco corre uma crença segundo qual, para atuar em sua melhor forma, bailaores, cantaores e tocaores precisam entrar em uma espécie de transe provocado por uma entidade denominada “Duende”, que garante a explosão emocional. É, certamente, a essa incorporaçao do Duende que João Cabral de Melo Neto se refere ao dizer, em seu poema “Estudo para uma bailaora andaluza“, que só uma bailarina flamenca é capaz “de acender-se estando fria, de incendiar-se com nada, de incendiar-se sozinha”.
Duende – a alma do Flamenco
Um extenso enunciado sobre o tema foi apresentado em 1933 pelo poeta Federico García Lorca, na conferência “Teoría y juego del Duende“, realizada em Buenos Aires. No texto, Lorca destaca o sentido interior dessa força emocional, ou entidade espiritual, que anima o artista. Diz, por exemplo, que enquanto as inspirações artísticas ofertadas pelos anjos e pelas musas vêm de fora, como dádivas – “o anjo dá luzes e a musa dá formas -, o Duende “precisa ser despertado nas últimas instâncias do sangue”1.
A fim de trazer mais clareza a suas definições, o poeta recorre a falas de outros artistas. Caso de um velho mestre guitarrista, – cujo o nome não é revelado -, para quem “o Duende não está na garganta; o Duende sobre por dentro, a partir da planta dos pés”. Lorca cita, ainda, Goethe, que mesmo sem referir-se ao Duende, parece descrevê-lo quando atribui ao violinista Paganini um “poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica”.
Segundo Lorca, ” todas as artes são capazes de ‘Duende’, mas onde ele encontra maior campo, como é natural, é na música, na dança e na poesia falada, já que elas necessitam de um corpo vivo que interprete…”. Lorca destaca, ainda, o poder do Duende na Literatura ao afirmar que “a virtude mágica do poema consiste em estar sempre ‘enduendado’ para batizar com água obscura a todos os que o vêem, porque com ‘Duende’ é mais fácil amar…”
Por fim, talvez a afirmação mais conclusiva, entre inúmeras definições e exemplos dessa conferência, seja a de que “… o ‘Duende’ fere, e na cura dessa ferida, que não se fecha nunca, está o insólito, o inventado da obra de um homem”.
Emoções ancestrais
As origens do Flamenco não são precisas – sabe-se apenas que que é uma manifestação popular, surgida provavelmente, a partir de expressões culturais já presentes no século 15. Os primeiros relatos de uma dança ancestral precursora do Flamenco teriam sido feitos por intelectuais estrangeiros que tiveram acesso a tabernas de bairros populares, frequentadas apenas pela população mais desfavorecida. Acredita-se, portanto, que a exacerbação emocional do Flamenco pode ter surgido como resposta às perseguições e preconceitos sofridos pelos ciganos, árabes e judeus – que ora reagiam com revolta, ora se deixavam dominar pela tristeza, ora explodiam de alegria para celebrar alguma forma de libertação.
A ambiguidade, aliás, é um dos elementos marcantes do Flamenco, como bem explicitou João Cabral ao comparar os movimentos da bailarina com a relação entre uma cavaleira e uma égua: “Então, como declarar se ela é égua ou cavaleira:/ há uma tal conformidade /entre o que é animal e é ela,/ entre a parte que domina/ e a parte que se rebela,/ entre o que nela cavalga/ e o que é cavalgado nela,/que o melhor será dizer de ambas, cavaleira e égua,/que são de uma mesma coisa/e que um só nervo as inerva”.
A origem do nome
A ideia de algo que pulsa está na origem da palavra Flamenco. Segundo algumas fontes, o vocábulo vem da expressão flama, que significa fogo. Mas, como ocorre com muitas palavras, há várias hipóteses para a etimologia do termo e algumas delas não são excludentes entre si.
Sabe-se, por exemplo, que a palavra Flamenco era comumente usada para definir os ciganos (em espanhol gitanos), que estão entre as culturas originárias dessa manifestação cultural espanhola. Há, ainda, quem aponte como origem a expressão árabe “fellah mengu”, que pode ser traduzida como camponês fugitivo.
Por fim, um dos significados mais comuns atribuídos à palavra Flamenco (flamengo em Português) refere-se ao que vem de Flandres, na Bélgica. O termo teria sido usado especialmente para identificar os cantores que eram contratados pelo rei Carlos V.
A evolução do Flamenco
Acredita-se que, ao nascer, nas ruas e tabernas da Andaluzia, o Flamenco era composto apenas de cante. O baile, que é hoje sua imagem mais representativa, foi o último elemento a compor essa manifestação cultural. Antes dele vieram as palmas e o toque, com a incorporação da Castanhola e a criação da Guitarra Flamenca – tipo violão que, por ser mais leve e menor que os convencionais, produz um som mais agudo2.
Embora ainda discriminado, pois teve origem em povos perseguidos pela Inquisição Espanhola, o Flamenco cresceu e chamou a atenção dos estrangeiros no período dos Cafés Cantantes (foto) – casas de shows que abrigavam estilos diversos, mas que foram fundamentais em sua expansão.
Com a queda dessas casas noturnas, o Flamenco viveu um novo momento, que durou de 1920 a 1950 – ou a 1960, conforme o autor – denominado período da Ópera Flamenca e caracterizado por três mudanças fundamentais: a dança, antes individual, torna-se coletiva; a liberdade de improvisar é substituída por coreografias, e as apresentações passam a ocorrer em teatros.
A primeira apresentação do Flamenco com essa caraterística de espetáculo foi a famosa ópera (ou ballet) “El Amor Brujo”, composto pelo pianista Manuel de Falla, especialmente para a bailaora Pastora Império. Segundo algumas fontes, o nome ‘ópera’ não correspondia à forma do espetáculo, mas à necessidade dos produtores de pagar menos impostos
Após o fim da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), durante a ditadura franquista – período de perseguição e assassinato de artistas, como Federico García Lorca – o Flamenco foi valorizado como manifestação nacional espanhola, ao mesmo tempo em que tinha suas apresentações controladas pelo Estado. Sob o slogan “Espanha es diferente” o governo ditatorial seduzia turistas e tentava fortalecer a imagem internacional do país usando imagens de dançarinos flamencos. Isso teria feito com que, por algumas décadas, essa manifestação nascida da rebeldia, fosse olhada pelas esquerdas com desdém e desconfiança.
Ainda no período ditatorial, na segunda metade da década de 1950, surgiram os Tablaos (tablados, em Português) – locais de apresentações de Flamenco que resgatam, de certa forma, o estilo de manifestação individual e improvisada dos Cafés Cantantes, depois de um período de apresentações coreografadas em teatros. Surgiram, ainda, as Peñas – considerados locais íntimos para os artistas Flamencos – e os Festivais financiados pelo governo
Atualmente, o Flamenco abarca todas essas formas de apresentação e oscila entre o turístico e o tradicional – a depender do artista ou grupo. Mesmo entre os defensores do Flamenco tradicional, houve uma evolução natural do gênero, com incorporação de elementos do Jazz e do Ritmo Cubano. Mas nos recantos da Andaluzia, ainda é possível encontrar manifestações mais próximas do Flamenco original.
Os bailaores
Ao longo da história, muitas bailaores alcançaram fama internacional e talvez o maior exemplo seja a já citada Pastora Império (Pastora Rojas Monje), nascida em Sevilha no final do século 19. Como era comum entre as bailarinas espanholas, ela pertencia a uma família de artistas de flamenco: era filha da também dançarina Rosário Monje e irmã do guitarrista Víctor Rojas.
Pastora começou a dançar aos 10 anos de idade e fez uma carreira marcada por prêmios e homenagens. Inspirou pintores e poetas. Segundo o historiador musical Gilbert Chase, ela foi a maior das dançarinas de Flamenco modernas e, confirmando a tese do estilo de vida, e de ser, “caminhava de tal maneira que se dizia que ela havia recebido esse dom de Deus e dele havia criado uma nova arte: a de caminhar.”
Outro importante nome foi Carmen Amaya, de Barcelona, que viveu entre 1918 e 1963. Era de família cigana, filha e irmã de artistas flamencos. Carmem teve uma carreira curta – morreu aos 45 anos de um problema renal – mas fez sucesso na França e nos Estados Unidos, além de ter participado de vários filmes, como “La hija de Juan Simón”, de 1935, produzido por Buñuel.
Na atualidade, um dos nomes mais conhecidos é o de Belén Maya, nascida em 1966 e filha de Mario Maya – dançarino tido pela crítica como um dos mais influentes e inovadores da história do Flamenco. Belén nasceu em Nova Iorque, quando seus pais participavam de uma tournée, e estudou dança em vários países. Sua carreira também se estendeu pelo mundo. Recentemente parou de dançar e se dedica a fazer palestras sobre Flamenco e questões de gênero.
Entre as importantes bailaoras da atualidade, encontra-se a alemã de nascimento Eva Maria Garrido, que cresceu em Granada e começou a dançar Flamenco aos 12 anos de idade, ganhando o pseudônimo de Eva Yerbabuena em homenagem ao cantaor Frasquito Yerbabuena.
Mesmo com esse histórico de bailarinas icônicas, os bailaores que alcançaram mais notoriedade no Brasil eram do sexo masculino. O maior exemplo talvez seja Antonio Esteve Ródenas (Antonio Gades), que começou a dançar por necessidade financeira e alcançou fama internacional em 1974 com o espetáculo Bodas de Sangue, inspirado na obra de García Lorca.
A maior parte de sua formação, no entanto, veio da bailarina e coreógrafa Pilar Lopez. Foi durante os nove anos que trabalhou em sua companhia, que Gades amadureceu profissionalmente e sempre reconheceu nela “a inspiração máxima de sua carreira”. Apesar de todo esse alcance midiático, Gades era tido como um defensor da preservação da essência do Flamenco e teria lutado contra as concessões feitas por grupos de Flamenco para agradar aos turistas.
É preciso citar ainda, Joaquín Cortês, bailaor de origem cigana, nascido em Córdoba, que fez sucesso internacional, inclusive no Brasil. Aprendeu os primeiros passos com o tio Cristóbel Reyes e aos 12 anos começou a estudar dança em Madrid. Aos 15 anos, ingressou no Ballet Nacional de Espanha, onde chegou a solista. Cortés participou dos filmes “La Flor de mi secreto” e “Flamenco”, de Carlos Saura e inspirou visualmente o personagem Vamp da série de videogames Metal Gear.
Os cantaores
Quem teve contato com o cante flamenco tradicional, certamente se recordará de vozes femininas que entoam emocionantes lamentos e certamente há muitas delas que fizeram importantes carreiras na Espanha e no mundo. Caso de Carmen Amaya que além de bailarina, era cantora. Caso, também, de Lola Flores – descendente de ciganos, nascida em Jerez de la Frontera – e de tantas outras, como Estrela Morente, que aos quatro anos de idade já entoava ‘cantes de Levante‘.
Mas, da mesma forma que ocorre com os bailaores, ao fazermos uma busca, ao menos no Brasil, sobre cantores de Flamenco, o primeiro nome da lista será certamente Camarón de la Isla.
Assim como Gades, Camarón também nasceu pobre e começou a cantar aos oito anos de idade em paradas de transportes públicos e em portas de tabernas. Aos 14 anos, participou do filme “Amor Brujo”, com Antonio Gades e aos 16 ganhou seu primeiro prêmio no “Festival del Cante Jondo”.
Depois que se mudou para Madrid, conheceu Paco de Lucía com quem gravou nove discos e quando seu parceiro seguiu carreira solo, Camarón passou a trabalhar com Tomatito – outro guitarrista flamenco conhecido internacionalmente.
Compositores e tocaores
O nome que primeiro fez história na música Flamenca foi Manuel de Falla – autor do ballet “Amor Brujo” – que embora não tenha nascido em ambiente Flamenco, apaixonou-se por essa arte andaluza e a inseriu em grande parte de suas composições. Mas o tocaor que se tornou ícone internacional do Flamenco e da Guitarra Flamenca (ler matéria aqui no blog), foi Francisco Gustavo Sánchez Gomes, mais conhecido como Paco de Lucía (uma referencia ao nome de sua mãe).
Nascido em uma família de músicos, Paco começou a ter aulas de guitarra ainda criança. Inicialmente compartilhou uma banda com dois irmãos – o cantor flamenco Pepe de Lucía e o guitarrista Ramón de Algeciras. Depois dos nove anos da já citada parceria com Camarón de La Isla, conheceu o peruano Caitro Soto, que lhe apresentou o Cajón – instrumento de origem afroperuana. Lucía introduziu o cajón em sua música e com isso fez nascer o Flamenco contemporâneo.
Outro nome mundialmente aclamado é José Fernandéz Torres, o Tomatito, conhecido mundialmente por fazer experimentações com elementos de outras culturas, espacialmente o Jazz. A razão da mistura, segundo Tomatito, é o fato de ambos terem surgido em resposta à discriminação: “um grito de sofrimento ou a alegria da libertação”
O Flamenco no cinema
A plasticidade da dança Flamenca fez com que muitos diretores de cinema se encantassem pelo tema, mas o espanhol Carlos Saura talvez tenha sido aquele que mais se dedicou à divulgação da dança, da música e do canto flamencos. Na década de 1980, dirigiu a trilogia “Bodas de Sague”, “Carmen” e “Amor Bruxo” – este último inspirado na já citada opera de Manuel de Falla.
Saura também dirigiu dois documentários intitulados Flamenco: um em 1985 e outro em 2010. No primeiro, faz um histórico das influências do Flamenco, como as culturas árabe e judaica, a cultura cigana e os cantos gregorianos. Fez, ainda, “Jota: para além do Flamenco”, sobre um gênero popular de Aragão, que segundo algumas fontes, foi adaptada do Flamenco.
Flamenco – Sevilla, Granada, Cádiz e outras – Andaluzia – Espanha – Europa
Fotos
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- (10/11) Domínio público e Jgomezcarroza em Wikimedia - CC BY-SA 4.0
- (12/13) Tablao de Carmen em Wikimedia - CC BY-SA 4.0 e autor desconhecido em Wikimedia, carregado por Exuperantia
- (14/15) Fundación Antonio Gades
- (16) Office Word em Wikimedia - CC BY-SA 3.0
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- (19/20) Divulgação
Consultoria:
- Denise Morales, bailarina de Flamenco
Referências
- Junta de Andalucía
- Teoría y juego del Duende, no site Vermelho
- O Flamenco em Porto Alegre, (1989-2017) - TCC de Eric Nelsis de Oliveira
Olé! Estupendo! Parabéns, Sylvia, pelo belíssimo texto. Parabéns, bailaora Denise Morales, pela excelente consultoria.
Nos que agradecemos pelo comentário generoso. O Flamenco é mesmo inspirador,
Parabéns por essa aula de cultura e arte flamenca, amei o texto Entendi o transe na dança,a paixão na música.Olé
Que bom que entender e gostou, Rosires. Prova de que conseguimos transmitir pelo menos um pouco da essência do Flamenco.