Atualizado em 16/10/2024 por Sylvia Leite
Quem diria que pequenas peças cerâmicas, criadas do outro lado do mundo, poderiam converter-se em identidade cultural de um país europeu e tornar-se um dos seus mais importantes veículos de registro histórico? Estou falando, claro, dos azulejos portugueses.
Os azulejos vieram de longe. Foram criados pelos árabes muçulmanos, que os chamam de zillij (ou azzillij, caso se inclua na frente o artigo al que se transforma em az). No mundo árabe, exibiam padrões geométricos que, segundo o simbolismo sufi, traduzia o modo como mundo foi criado e como ele se organiza, ou seja, sua cosmogonia e sua cosmologia. Em muitos casos, não eram quadrados, como os que conhecemos hoje. Tinham aparência de estrelas, pétalas e outras formas abstratas – determinadas na fase de produção ou em cortes posteriores – e compunham mosaicos1.
De sua origem até a chegada em Portugal, o azulejo passou pela intermediação da Espanha, onde predominou a forma quadrada. Conta-se que foi lá, mais precisamente em Sevilha, que o Monarca Dom Manuel I adquiriu, em 1498, as primeiras peças para decorar o Palácio Nacional de Sintra. A partir daí, o azulejo começaria a ganhar uma nova identidade.
Mais de cinco séculos de história
Durante cerca de 70 anos, Portugal importou azulejos da Espanha. A temática era sempre geométrica ou vegetal (arabescos). Mas a crescente utilização desse tipo de revestimento fez com que, por volta de 1.560, surgissem as primeiras olarias portuguesas e, com elas, fosse aberto o caminho para uma produção com características próprias,constituídas a partir de influências diversas.
As formas geométricas permaneciam, mas aos poucos tiveram que dividir espaço com composições figurativas. Episódios históricos, militares ou religiosos, narrativas mitológicas e até mesmo situações cotidianas foram reproduzidos nos painéis decorativos de palácios e igrejas.
A introdução das cenas abriu espaço para o surgimento de trabalhos autorais e desse movimento nasceu a crítica social, expressa de forma irônica ou caricata. Entre as obras críticas, destacam-se as que sofreram influência de um gênero artístico bastante utilizado na arte flamenga conhecido como “Singeries” ou “Macacaria” por retratar cenas sociais em que os humanos são representados como macacos na tentativa de ressaltar seus aspectos mais primitivos.
As técnicas de produção do azulejo, assim como suas temáticas, sofreram influências diversas ao longo do tempo, tanto de outras culturas, como dos estilos artísticos que se sucederam ao longo dos séculos, como é o caso da própria Macacaria, do Barroco, Rococó e Maneirismo, entre outros.
Azulejos portugueses: uma mescla de influências
A mescla de influências nos azulejos portugueses foi tornando-se cada vez maior, mas a herança árabe permanecia, ainda que, em alguns momentos, assumisse diferentes configurações. É o caso dos ”’Azulejos de padrão’, inspirados em peças têxteis, como tapetes e tapeçarias. A característica central desses painéis é a criação de um padrão, que em geral é repetido várias vezes, mas alguns deles demandam dezenas de peças para compor um único desenho que ocupa sua totalidade.
A inspiração têxtil não se limitou aos exemplares árabes. Inúmeros painéis apresentam motivos antropomórficos retirados de tecidos chineses e indianos, influências obtidas nas colônias portuguesas da Ásia. Muitos desses motivos assemelham-se aos que encontramos nas famosas colchas de Castelo Branco, que receberam a mesma influência oriental.
Outra importante aquisição foi um motivo conhecido como Albarrada,vindo da cerâmica flamenga,que traz um jarro ou cesto de flores ao centro, com pássaros, crianças ou golfinhos dos dois lados, de modo que, na repetição, se cria uma espécie de barra.
Uma das características fundamentais dos azulejos portugueses, segundo historiadores, é esse diálogo que estabelecem com as outras artes. Além das cenas e padrões explorados por pintores, ceramistas e tecelões há, em alguns casos, uma referência à ourivesaria, em padrões que imitam jóias como anéis, correntes e pulseiras.
Os azulejos pombalinos
Depois do terremoto de 1755, Portugal teve que ser reconstruído e, nesse momento, os azulejos ultrapassaram a esfera oficial, formada pelo clero e pela nobreza, para integrar-se também ao universo burguês. Homens de negócios, com certo poder aquisitivo, passaram não apenas a encomendar painéis para a decoração de suas casas e quintas, mas também a se auto-representarem nessas obras, pontuando, com isso, uma mudança na própria história do país.
Um caso típico são sete painéis encomendados pelo chapeleiro Antonio Joaquim Carneiro para a casa onde residia que narram sua trajetória, desde a infância pobre no campo, passando pelo trabalho com um tio chapeleiro, e pelo casamento com uma viúva rica, até a criação de sua própria fábrica de chapéus.
Além do deslocamento do consumo do azulejo na escala social, houve também, nesse período, um movimento geográfico. Se antes eram tratados como elegantes ornamentos dos espaços interiores de palácios e igrejas, a partir daí passaram a ser usados no revestimento externo de prédios públicos e também de residências. Na mesma época, teve início a sua utilização em banheiros, cozinhas e outras áreas internas menos nobres.
Esses azulejos semi-industriais passaram a ser chamados de “Pombalinos” em alusão a Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, a quem foi dada a tarefa de reconstruir o país depois do terremoto.
O país mais azul do mundo
Embora existam mundo afora cidades totalmente azuis2, e nenhuma delas seja portuguesa, é a Portugal que cabe o título de ‘País mais azul do mundo’ em referência à combinação das cores azul e branco que compõe uma grande parte de seus painéis e que acabou marcando a identidade do azulejo português.
As razões que levaram à utilização dessas cores são diversas. A primeira delas seria o contato com a azulejaria holandesa que, por sua vez, já havia sofrido influência da porcelana chinesa. Sabe-se que no fim do século 17, Portugal começou a importar painéis da Holanda e esse comércio durou cerca de cinco décadas. As olarias holandesas utilizavam um tom compreendido entre o azul cobalto e o roxo manganês e alcançavam, com isso, um padrão de alta qualidade e baixo custo. No início do século 18, a produção passou a ser feita em Portugal, mas o azul e branco usado nas décadas anteriores já estava consolidado.
Estudiosos do simbolismo, no entanto, atribuem a permanência dessa combinação ao significado da cor azul, que pode dar margem a inúmeras interpretações. Uma das mais comuns é o fato de ser a cor do céu e, portanto, relacionada à instância divina. Isso traria, por um lado, um aspecto de paz e profundidade e, por outro, uma conotação de superioridade e poder.
Mas a utilização de azul e branco marcou um período muito bem definido na história dos azulejos portugueses, localizado especialmente no século 18, e hoje em dia o que se produz com essas cores é feito em alusão àquele período histórico. Desde o início até o momento, a arte de azulejaria portuguesa sempre manteve diálogo com as tendências da arte mundial e os azulejos artísticos produzidos no momento inserem-se perfeitamente no contexto artístico contemporâneo, marcado pela diversidade formal, técnica e de suporte.
Atualmente, Portugal é considerada a capital mundial do azulejo e constitui um museu a céu aberto dessa arte, pois uma boa parte das obras – sejam simples revestimentos decorativos ou importantes painéis artísticos – está nas fachadas de igrejas, prédios públicos ou simples residências de praticamente todas as cidades do país. Acredita-se que o lugar com a maior concentração de azulejos portugueses seja a cidade de Ovar, no distrito de Aveiro, mas há painéis e revestimentos interessantes por toda parte, especialmente na Estação de São Bento3, no Porto, e no Museu Nacional do Azulejo que fica em Lisboa e reúne desde peças históricas dos primeiros tempos até obras modernas e contemporâneas.
Notas
- 1 Os mosaicos árabes são tema de outra matéria: Padrões geométricos: a oração visual dos Sufis.
- 2 Existem algumas cidades onde praticamente tudo é pintado de azul e uma delas já está na lista de pautas deste blog. Aguarde!
- 3 Leia, também, a matéria: Estação de São Bento: um museu com portas abertas
Azulejos portugueses – Várias cidades – Portugal – Europa
Fotos
- Sylvia Leite
Referências
- Site do Museu Nacional do Azulejo
- Site Portugal Virtual - Palácio Nacional de Sintra
Bom, sou suspeita para eleger este tema como meu preferido. Que viagem fantástica essa matéira. Leitura pra lá de agradável, Sylvia Leite. Parabéns.
Obrigada, Vi. Você é suspeita mesmo kkk. Para quem não sabe, Virgínia Finzetto é autora, junto comigo, da página do Facebook O SIMBOLISMO DOS PADRÕES GEOMÉTRICOS. O espaço foi criado para divulgar a pesquisa que fizemos sobre os mosaicos árabes citados na matéria. Hoje a página tem um conteúdo mais amplo, abrangendo tudo que diz respeito a simbolismo e geometria sagrada. Aqui vai o link para quem se interessar:
https://www.facebook.com/simbolismo.padroes.geometricos/
Acabo de retornar de Portugal e mais uma vez pude apreciar a arte da azulejaria existente por toda parte. Realmente é um país azul. Parabéns pelo belo texto
Silvinha, sou apaixonada pelos azulejos portugueses. Parabéns pela matéria. Beijos. Aida Carrera
Obrigada, Neilton. Bom te ver por aqui!
Também sou, Aida. Por todo tipo de azulejo. Breve teremos matéria sobre os mosaicos árabes.
Muito bom Silvinha. E, ainda me deu um ideia neste exato momento para algo que estou a fazer aqui em Pirambu. Beijos.
Lindas obras de Arte.amei
Obrigada pelo comentário. Pena que você não se identificou. Da próxima vez não esqueça de deixar seu nome.
Obrigada, Sidney. Depois me conte qual foi a ideia que a matéria lhe deu. Abração!
Que delícia de texto, Sylvinha!
Viajei pelas terras do Alentejo de novo.
Gostaria muito de aprender a restaurar azulejos
Quem souber de algum curso ou oficina de grátis, puder me ibforinf eu agradeca
Obrigada pelo comentário, Nivaldo. Não conheço nenhum curso de restauração de azulejos. Sugiro que repita o seu pedido na página do blog no Facebook. Assim você alcançará dois públicos distintos e a possibilidade de conseguir alguma informação aumenta bastante. Segue o link para a página.
https://www.facebook.com/blog.lugaresdememoria
Obrigada pelo comentário, mas, quem é você? Esqueceu de se identificar. Pena.
Genial. Eu não fui ao Museu do Azulejo. Um motivo a mais para voltar.
Um grande motivo! Obrigada pelo comentário. Da próxima vez deixe seu nome, ok?
Acho incrível essa história da origem dos azulejos portugueses! A arte nos azulejos é tão linda e tão peculiar, um verdadeiro patrimônio da humanidade.
Sim, é uma coisa linda, fascinante e o Museu do Azulejo de Lisboa é uma maravilha.
Excelente matérial!
Obrigada, Jonivaldo. Volte Sempre. Toda semana tem matéria nova no blog.