Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
A maioria das cidades brasileiras, históricas ou não, provavelmente recebeu influência de duas ou mais culturas, tendo em vista a miscigenação que houve aqui desde a chegada dos portugueses. Poucas, no entanto, conseguem expressar o fenômeno de forma tão clara como São Cristóvão, a povoação mais antiga do Estado de Sergipe.
A evidência maior dessa mistura é a Praça São Francisco, tombada pela Unesco como Patrimônio Mundial da Humanidade por ser considerada a melhor representação, no Brasil, da simbiose entre padrões arquitetônicos e urbanísticos de Portugal e Espanha.
Construído, em sua maior parte, na época da União Ibérica, quando os dois países eram governadas pelo mesmo rei, Felipe II, o conjunto arquitetônico segue o conceito de Plaza Mayor (Praça Maior) empregado na Espanha e em suas colônias americanas, mas também incorpora elementos e insere-se em um traçado urbano tipicamente portugueses.
Por toda a cidade, a convivência de culturas se repete em igrejas e outros edifícios, em sua maior parte tombados pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) como é o caso da Igreja Matriz (de Nossa Senhora da Vitória) e da Igreja de Senhor dos Passos.
Talvez influenciada por esse começo de valores e saberes compartilhados, a mescla de culturas ultrapassa o período da União Ibérica e vai além da arquitetura e do urbanismo, chegando a outros aspectos da cidade, como é o caso da culinária.
Bricelets e queijadinhas: as delícias de São Cristóvão
Entre as tradições gastronômicas seculares de São Cristóvão está o Bricelet, trazido da Suíça pelas irmãs Beneditinas que viveram no Convento do Carmo. O famoso biscoito das freiras, como ficou conhecido, é uma espécie de waffle muito fino e crocante, com discreto sabor de laranja, bastante conhecido na Europa e em algumas partes no Brasil. O que poucos sabem é que além de suíço ele agora é também sergipano pois, além de ter alimentado moradores e visitantes ao longo de séculos, o biscoito tornou-se parte da história de São Cristóvão.
Nos primeiros tempos, proporcionaram recursos para ajudar na manutenção do convento. Quando as beneditinas foram embora, repassaram a receita e o equipamento para as freiras da ordem Imaculada Conceição que comandavam o Lar Imaculada. Recentemente, o conhecimento e a prensa foram entregues a antigos funcionários que continuam produzindo e vendendo com o mesmo empenho, mas agora sem vínculo com qualquer instituição.
Outro elemento gastronômico importante e representativo do intercâmbio de saberes são as queijadas, um tipo de doce trazido de Portugal e adaptado pelos escravos às condições locais. Na receita original portuguesa o recheio era feito com queijo, mas devido à escassez de recursos os escravos trocaram o ingrediente por coco, que é uma fruta abundante na região.
A mescla nos folguedos
Elementos africanos e portugueses, sagrados e profanos, unem-se nos diversos folguedos populares de São Cristóvão. A Caceteira, por exemplo, foi criada para louvar São João, mas o elemento rítmico da música e da dança é o Coco, tocado com instrumentos como ganzá, zabumba e cuíca e marcado por passos como o sapateado ou “sambado” e pela “umbigada – movimento usado para a escolha do parceiro com quem se vai dançar no centro da roda.
A Caceteira anuncia a chegada do mês de junho e faz isso em frente à Igreja do Carmo, onde os
participantes esperam as badaladas da meia-noite no último dia de maio para comemorar festivamente a chegada do mês de seu santo protetor.
Em 25 de junho, o dia do santo, o grupo faz uma procissão ao morro São Gonçalo onde há uma imagem do Cristo Redentor. A subida é acompanhada por fogos e regada a cachaça.
Uma romaria que mobiliza o nordeste
São Cristóvão tem ainda uma romaria famosa que, assim como a arquitetura, os biscoitos, a queijada e os folguedos, veio de fora e foi absorvida pela população. Conta-se que na segunda metade do século 18, dois pescadores encontraram uma caixa boiando no rio Paramopama, que banha o município. Era uma imagem de Senhor dos Passos e na embalagem estava escrito: “Para a Cidade de Sergipe d’El Rei”.
A imagem foi levada à Igreja da Ordem Terceira do Carmo e isso deu início à maior manifestação religiosa do Estado ligada ao tema da Penitência. A romaria inclui duas procissões: a primeira é realizada no segundo sábado da quaresma para levar a imagem do santo da Ordem Terceira do Carmo até a matriz Nossa Senhora da Vitória. A segunda é realizada no domingo e inclui dois cortejos: um com a imagem de Senhor dos Passos e outro com a imagem de Nossa Senhora da Soledade. O clímax é o encontro das duas imagens na Praça São Francisco, seguido pelo Sermão do Encontro e pelo Canto de Verônica.
História e histórias
São Cristóvão foi fundada em 1590, por espanhóis, num ponto médio entre a Vila de Olinda e Salvador da Baía de Todos os Santos, para facilitar a comunicação entre as duas povoações e aumentar a vigilância sobre os rios da região por onde franceses e holandeses podiam realizar seus ataques.
Entre lutas e disputas políticas, a cidade mudou três vezes de lugar, sofreu invasões de povos distintos, tornou-se um anexo da Bahia e reconquistou sua independência. Por mais de 30 anos foi a capital de Sergipe, condição que perdeu em 1855, quando um movimento liderado por senhores de engenho conseguiu a transferência da capital para Aracaju, onde seria construído um porto fluvial em condições de facilitar o escoamento do açúcar.
A julgar por relatos históricos e transmissões orais, a mudança provocou um forte impacto nos moradores de São Cristóvão e um deles entrou para a história, ou para o folclore, por sua inconformação. João Nepomuceno Borges, mais conhecido como João Bebe Água por causa do consumo excessivo de cachaça, teria mobilizado cerca de 400 homens para protestar contra a mudança da cidade e jurado que nunca poria os pés em Aracaju. Ao perceber que seus esforços não produziram efeito, teria escondido foguetes atrás da porta da casa para soltar no dia em que a sede do estado fosse novamente São Cristóvão.
O Festival de Arte de São Cristóvão
A capital não voltou mais para lá. Pelo contrário. Na década de 1950, o município perdeu sua faixa litorânea para Aracaju. A São Cristóvão restou a condição de polo cultural. Está incluída em todos os roteiros turísticos por sua riqueza histórica e arquitetônica. Abriga vários museus, entre os quais se destacam o Museu Histórico de Sergipe e o Museu de Arte Sacra. O primeiro reúne móveis, documentos, moedas, louças e o famoso quadro de Horácio Hora que retrata Ceci e Peri – personagens principais do romance O Guarani, de José de Alencar. O segundo possui um acervo de aproximadamente 500 peças e é considerado o terceiro do país na categoria.
Foi em suas terras que se construiu o campus da UFS (Universidade Federal de Sergipe) e foi também lá que a própria UFS criou, em 1972, um dos maiores festivais de arte do país, com uma programação voltada para a integração entre as diversas manifestações artísticas e folclóricas, locais e de outras regiões. O FASC (Festival de Arte de São Cristóvão) foi realizado anualmente até ser interrompido em 1995. A retomada ocorreu em 2017, mas houve nova interrupção em 2020, por causa da pandemia.
Novos saberes
Uma das mais novas atividades artesanais de São Cristóvão é a de bonequeira. Foi crida em 2011, durante uma oficina de bonecas de pano e atrai mulheres de todas as idades. Elas reúnem-se diariamente na Sala dos Saberes e Fazeres, anexa à Secretaria Municipal da Cultura, para produzir e comercializar seu trabalho. Além de possibilitar um novo ofício, as bonecas de pano representam mais um suporte de divulgação das tradições locais.1
Notas
- 1 Leia, aqui no blog, matérias sobre cidades históricas brasileiras: Laranjeiras, Paracatu, Ouro Preto, São Bartolomeu
São Cristóvão – Sergipe – Brasil – América do Sul
Fotos
- Sylvia Leite
- Tanit Bezerra
- Everaldo Fontes (Gaspeu)
- Prefeitura Municipal de São Cristóvão (Divulgação).
Fiquei surpresa com os padrões. E, com vontade dos biscoitinhos. Muito bom "conhecer" mais um lugar do nosso Brasil. Obrigada
Eu que agredeço, Elizete. beijos
Sylvinha, esse seu blog é fantástico!
Quantas informações históricas interessantes!
Parabéns,Sylvinha,pela excelência de seu blog!
Parabéns amei
Sylvinha, que linda a nossa São Cristóvão! Fui lá há umas quatro semanas, para fotografar e escrever sobre ela pro meu blog. Mas, ainda não consegui tempo pra isso. Outros temas entraram na frente. Parabéns por retratá-la com tanta beleza!
Obrigada. Queria saber quem escreveu o comentário. Você não quer se identificar?
Obrigada!Você esqueceu de se identificar.Não quer me dizer seu nome?
Obrigada! Gostaria de saber seu nome.
Obrigada, Soninha! Bom te ver sempre por aqui. Beijos
Excelente trabalho de pesquisa, Sylvinha!
Com tantos anos morando em Sergipe e participando de alguns festivais de São Cristóvão, só agora com essas informações em seu blog, a antiga capital sergipana me foi encantadoramente desvelada.
������❤ Val
Que maravilha termos Sao Cristóvão em nosso pequeno mas "rico" Estado. Rico em Patrimonio Cultural e Humano. Parabéns Sylvia por nos mostrar isso através de São Cristóvão.
Augusta Leite Campos
Obrigada, Val. Bom saber que gostou. Toda quinta tem matéria nova aqui no blog. Espero que se torne leitora assídua! beijo
Obrigada, Gusta, pelo comentário e pela assiduidade. Beijo
Gostei de saber que Sao cristovão, cidade cuja arquitetura que me encanta é de inspiraçao Espanhola, alem da tradição portuguesa em nossas cidades. Descrição muito fiel em estilo leve e sgradável. Parabens
Obrigada, dra Clara Leite. Da próxima vez não esqueça de assinar rsrs. Se não tivesse me contado, eu não teria como saber que o comentário é seu. Beijo.
Maravilhoso! Delícia de ler! E imprescindível conhecer! Grata !!!!!
Eu que agradeço, Hilda. Pela leitura e pelo comentário. Volte sempre.
Silvia seu blog é uma verdadeira aula. Parabéns! Já quero conhecer São Cristovão, quando for a Sergipe. Fiquei encantada com esse post.
Que bom que você gosta. Obrigada! São Cristóvão é uma preciosidade. Quando visitar Sergipe aproveite para conhecer outros lugares incríveis como Laranjeiras, Grota de Angico, Museu do Sertão, Panéis de Jenner Augusto e muitos outros. Tudo com matéria aqui no blog.