Atualizado em 09/10/2023 por Sylvia Leite
Se viajantes interessados em arte e simbolismo decidissem conhecer cidades onde os artistas islâmicos imprimiram seus padrões geométricos, o roteiro poderia começar na Índia e terminar no Marrocos, passando pela Península Ibérica e pela Ásia Central. Mas, se além das obras originais, eles quisessem contemplar também trabalhos modernos ou contemporâneos diretamente influenciados por esse tipo de composição, o roteiro de viagem teria que incluir pelo menos mais dois países: a Holanda e o Brasil.
Essa ampla disseminação dos padrões geométricos da arte islâmica ocorreu aparentemente por dois fatores: as conquistas árabes na Idade Média e o fascínio que suas formas e cores exercem até hoje sobre artistas de toda parte. Para alguns, os padrões geométricos encantam por serem minimalistas e proporcionarem ilusões de ótica. Para outros, consistem em orações visuais, capazes de provocar estados meditativos e conectar seus observadores com realidades espirituais.
A explicação que se costuma dar ao uso de padrões geométricos na decoração islâmica é o fato de o Corão proibir a reprodução da imagem humana. Embora o impedimento de fato exista, o uso dos padrões está longe de ser o resultado de uma limitação. Segundo especialistas em Sufismo – a filosofia que permeia a arte geométrica do Islã – esses padrões possuem significados simbólicos e expressam realidades cósmicas como o processo de criação do mundo (cosmogonia) e a maneira como ele se organiza (cosmologia).
Padrão de Cruz e estrela: a imagem da respiração divina
Um dos motivos mais utilizados na decoração de palácios, mesquitas, madrassas, tumbas e salas de meditação conhecidas como tekkias é o que simboliza o que os sufis chamam de ‘Hálito do Criador’. O padrão combina cruzes estilizadas com estrelas de oito pontas em alusão à inspiração e à expiração divinas – que são expressas graficamente pela expansão de pela contração do quadrado.
traçado de cruzes e estrelas pode aparecer de forma evidente ou oculta – nesse caso, escondido na malha do desenho como no mosaico abaixo, em que cada cruz do padrão está formada pelo encontro de duas estrelas azuis, duas setas pretas e uma cruz branca ao centro.
Mesmo quando é usado de forma aparente, o padrão pode estar disfarçado pela relação entre cores e formas. Um exemplo comparativo pode ser visto nas imagens abaixo. Na primeira, temos o padrão de forma explícita, com estrelas azuis e cruzes verdes. Já na segunda, o simples fato das cruzes terem duas cores (preto e verde) já cria uma segunda camada de desenho que distrai o olhar do desenho estrutural.
A escolha das cores, na verdade, é capaz de mudar inteiramente a percepção do traçado assim como o seu significado. Nas duas estampas a seguir por exemplo, foi usado o mesmo desenho, mas as diferenças comáticas nos fazem crer que se tratam de padrões distintos.
E as variações não se limitam apenas a mudanças de cor. Uma alteração no recorte do padrão ou no suporte utilizado, pode torná-lo irreconhecível. Caso do parão cruz e estrela que aparece na sequência de fotos como pastilhas de mosaico, vazado em madeira e no canteiro de Taj Mahal.
Especialmente na Ásia Central, é comum que padrões simples, como o que combina cruzes e estrelas, sejam preenchidos por motivos florais, conhecidos como arabescos, ganhando aparência totalmente distinta e agregando outros significados.
Makan e Hal
Na perspectiva simbólica dos sufis, o arabesco seria a imagem do mundo criado e visível, que está submetido à mudança e à morte. Já os padrões geométricos, e sua inerente estabilidade, estariam relacionados ao mundo invisível, onde tudo está contido na Unidade primordial.
Dito de outra maneira, a inconstância do arabesco representaria a expansão e o descenso enquanto a estabilidade da geometria representaria a contração (cruz) e o retorno à Unidade. Essas duas perspectivas estariam também identificadas com os conceitos de Hal e Makan. O primeiro, de acordo com os sufis, corresponde a um estado alcançado pelo ser humano quando, de forma involuntária, ele estabelece um contato fugaz com o mundo invisível da ‘Verdade Absoluta’. O Makan, por sua vez, é o nome dado a cada estágio, ou degrau, alcançado pelo crente, no caminho iniciático que tem como objetivo aproximar-se dessa verdade de forma permanente.
O tema dos padrões geométricos poderia render muitas páginas, ou até livros, mas a proposta, aqui, é apenas despertar a curiosidade para essa categoria de arte, dar dicas de onde encontrá-la mundo afora e fornecer pistas que possam contribuir com sua compreensão.
No Ocidente, o lugar que concentra maior quantidade e variedade desses padrões certamente é o Conjunto Monumental de Alhambra1, que reúne os palácios da cidade construída pelos árabes em Granada, na Andaluzia. Ali, como no Marrocos, os motivos são simplificados e raramente estão mesclados com arabescos. Já na Ásia, há grande concentração de padrões geométricos em vários países, entre os quais poderíamos destacar o Uzbequistão e a Turquia, onde os padrões são ricos em detalhes, combinando as formas geométricas com traçados vegetais.
Azulejos portugueses: uma herança
Quando se fala em influência, talvez o maior legado da arte geométrica islâmica tenha ficado em Portugal, onde uma de suas manifestações culturais mais características – a arte de azulejaria – é reconhecidamente herdada da Espanha no período de domínio árabe. Foi de Sevilla que Portugal importou os primeiros azulejos de que se tem noticia no país e boa parte deles traz motivos geométricos encontrados em países de colonização árabe.
Embora a azulejaria portuguesa tenha tomado rumos diversos, e feito sua fama principalmente em cima das pinturas figurativas em tons de azul e branco, os padrões geométricos nunca deixaram de fazer parte do seu repertório, seja de forma explícita, como em Alhambra e no Marrocos, seja de maneira estilizada ou escondida no desenho estrutural.
Escher e a divisão regular da superfície
Movido por sua curiosidade matemática, o artista plástico holandês M. C. Escher também estabeleceu um diálogo com os padrões geométricos islâmicos que é claramente impresso na maioria de suas gravuras.
No livro “O espelho mágico de Escher”, o professor Bruno Ernst dedica um capítulo inteiro ao relato dessa relação, mostrando que o artista visitou Alhambra mais de uma vez e que, junto com sua mulher, fez anotações e copiou inúmeros padrões.
O que mais atraía o artista nos padrões islâmicos era um conceito matemático conhecido como ‘divisão regular do plano’, o que poderia ser traduzido como o preenchimento de uma superfície com uma sequência de motivos iguais ou espelhados sem deixar espaços vazios – o que os árabes sabiam fazer muito bem.
Os padrões geométricos na arte brasileira
No Brasil, pelo menos quatro artistas poderiam ser vistos como influenciados, direta ou indiretamente, conscientemente ou não, pela arte geométrica sufi. O primeiro é o modernista Athos Bulcão, autor de inúmeros painéis de azulejos com repetições rítmicas, parte deles em obras de Oscar Niemayer, inclusive em Brasília.
Na mesma linha, temos o também modernista Paulo Osir Rossi, parceiro de Portinari e autor de conhecidos painéis no restaurante da Fundação Oswaldo Cruz e no Palácio Gustavo Capanema, ambos no Rio de Janeiro.
Outra obra que demonstra grande afinidade com os padrões árabes é da muralista Mônica Nador, conhecida principalmente por seu trabalho comunitário no Jardim Míriam – bairro localizado na periferia Sul de São Paulo – e em cidades do interior. Usando paredes, papel ou tecido como suporte, Mônica e os frequentadores de suas oficinas revitalizam ruas ou ambientes internos ao compor com stencil seus padrões coloridos – que vez por outra chegam a reproduzir claramente um ou outro tema da arte sufi. E embora as formas nem sempre sejam geométricas, a influência dos padrões islâmicos se concretiza por meio das repetições rítmicas.
Um trabalho explicitamente influenciado pela arte geométrica árabe é o da artista plástica e arte educadora Cássia Castro. Além de trabalhar assumidamente com o tema dos padrões, defendeu na ECA/USP, em 2016, uma tese de doutorado na área de Poéticas Visuais sobre o tema: Tramas em movimento: desenhos e pinturas inspirados nos mosaicos geométricos islâmicos.
Os padrões geométricos islâmicos no Brasil
Apesar da influência exercida sobre esses e outros artistas brasileiros, os padrões geométricos árabes, em sua versão original, não são encontrados com facilidade no Brasil a não ser em ambientes privados de residências ou mesquitas. Mas pelo menos um mosaico original está ao alcance do público na cidade de São Paulo. O painel, executado por artesãos de Fez, foi doado à cidade pelo Ministério do Artesanato do Reino do Marrocos e está localizado na avenida Vergueiro, em frente à Catedral Ortodoxa.
No Rio de Janeiro, a Fundação Oswaldo Cruz conserva o seu Pavilhão Mourisco, ou Castelo Mourisco, mas, como já revela o próprio nome, trata-se de um monumento de inspiração árabe, mas já acrescido de elementos ibéricos, como demonstra a substituição dos mosaicos por azulejos na composição dos padrões.2
Notas
- 1 Oficina realizada em parceria com Fernanda Kikuchi.
- 2 Leia, aqui no blog, matérias que mencionam os padrões geométricos islâmicos: Alhambra, Castelo Mourisco da Fiocruz, A Geometria de Athos Bulcão, Azulejos Portugueses
Padrões geométricos islâmicos – Índia, Uzbequistão, Marrocos, Espanha, Portugal, Brasil
Fotos
- (1) pasja1000/ Pixabay
- (2, 3/4, 5, 6/7. 8/9, 10/11/12, 13, 15 e 18) Sylvia Leite
- (14) Logga Wiggler/ Pixabay
- (16) Gordon Johnson/ Pixabay
- (17) Edgard Cesar
- (18) Cassia Castro
Livros
Que show, Sylvia. Parabéns.
Obrigada, Vi, bjs
Estou simplesmente maravilhada…que texto esplêndido(simples e elegante )refinado. Parabéns. Compartilharei sempre em minhas redes sociais como maior prazer.
Esplêndido trabalho,parabéns!
Obrigada! Pelo comentário e pelo compartilhamento. Você só esqueceu de dizer seu nome. Gostaria muito de saber. Abraço!
Resposta ao comentário "Esplêndido trabalho,parabéns!"
Obrigada! Da próxima vez não esqueça e deixar seu nome.
Belíssimo texto, Sylvinha! Quanta coisa linda ainda preciso conhecer da arte islâmica!
Grande abraço,
Val Cantanhede
Obrigada, Val. Bom constatar que está sempre por aqui.
abs
Belíssima matéria, praticamente uma aula, deu vontade de conhecer mais sobre essa arte maravilhosa. Parabéns, Sylvia, conteúdos maravilhosos no blog, desde a escolha dos temas até o cuidado com o texto. Suas matérias deveriam estar também numa revista, são muito bonitas.
Amei mesmo!
Obrigada Lúcia. Bom saber que está sempre por aqui. Beijo.
Valeu, Leandro! bjs
Muito legal, Sylvinha! Texto inspirador!
Silvia parabéns . Que matéria linda e inspiradora . abs
Como sempre, muito interessante
Que bom que gostou! Beijos, querida.
Obrigada! Gostaria de saber seu nome.
Obrigada. Da próxima vez não esqueça de dizer seu nome.
Obrigada Silvia pelo texto sucinto e ao mesmo tempo abrangente e elucidativo sobre a linda arte baseada nos padrões geométricos encontrados no Universo.
Eu que agradeço pela leitura e pelo comentário. Grande abraço!
Muito boa essa matéria. Fácil de ler e de entender…uma linguagem clara e recheada de exemplos que deixaram nítido o que se pretendeu demonstrar. Parabéns, gostei muito.
Que bom, Marly. Obrigada pela leitura e pelo comentário. Volte sempre. Toda semana tem matéria nova por aqui.
Bem bonito.
Obrigada pelo comentário. Toda semana tem matéria nova por aqui e todo dia tem link para alguma das matérias já publicadas no Facebook. Acompanhe!
que interessantissimo essa historia sobre os mosaicos e a diferenç entre as formas dos ladrilhos e azulejos. Sao lindos sempre me encantaram mas nao sabia nada sobre sua padronagem.
Os padrões também me encantam e foram tema da minha disertação de mestrado.
Muito bom este artigo e me encantam os temas da geometria sagrada.
Obrigada pelo comentário. Caso interesse, acesse a nossa página no face sobre padrões geométricos. Minha e de Virgínia Finzetto. https://www.facebook.com/simbolismo.padroes.geometricos
Eu que agradeço,Cidinha! Você conhece a nossa página no face? Minha e da Virgínia. https://www.facebook.com/simbolismo.padroes.geometricos
Eu que agradeço,Cidinha! Você conhece a nossa página no face? Minha e da Virgínia. https://www.facebook.com/simbolismo.padroes.geometricos
É mesmo lindo demais. Vi muitas fontes de água (na parede) que são decoradas assim, só pesquisar que acha fácil. Há muitas fontes de água na cidade de São Paulo, que apenas vazam, sujando o entorno. Há uma mina no túnel debaixo da Avenida Senador Queirós e outra na 23 de maio,na alça de acesso à ligação leste-oeste. Talvez fosse interessante valorizar a preciosa água que a natureza doa, fazendo em volta dela uma apresentação decente e dando o destino possível. Em Roma há várias fontes encanadas que servem como bebedouros. Dê uma olhada o que fizeram em Sintra, Portugal. A fonte chama-se Fonte Mourisca. Linda demais!!!
Boa matéria, me lembrou de uma outra que assisti, sobre a busca de um padrão que não se repetisse, espero que contribua ao tema. Parabéns! https://www.youtube.com/watch?v=48sCx-wBs34
Obrigada, Rocco, pelo comentário e pela contribuição. Volte sempre. Toda quinta tem publicação nova no blog e, caso queira navegar, vai encontrar mais de 150 matérias, sobre os mais diversos lugares, de várias partes do mundo.
… é o conceito do fractal, onde o macro e o micro, é apenas uma questão de escala…
Obrigada pelo comentário. Pena que não deixou seu nome.
Valeu, Giotto. Obrigada pelo comentário.
Muito legal essa matéria e bonita tb. Alguns autores espanhóis trataram muito do sufismo ma península ibérica. Estou baixando algumas dessas obras. Veja Miguel Asin Palácios e Emílio Garcia Gomez. Acabei descobrindo esses caras recentemente.
Eu sou simplesmente encatada, amante destes Padrões geométricos e seus jogos de coloridos. É um encanto visual que me deixa apaixonada. Essa influência árabe na decoração me deixa encantada. Adorei saber mais a respeito!
Que bom que gostou, Gustavo. Embora não seja tão fácil de encontrar, há vários autores interessantes que tratam do tema. Siga em frente. É uma viagem apaixonante.
Que bom. Caso queira aprofundar, dê uma olhadinha no meu livro "O Simbolismo dos Padrões Geométricos da Arte Islâmica". Fico sem graça, mas indico porque não conheço outro em Português.
Maravilhado. Sou Professor de História por sobrevivência, mas Artesão por vocação. Apaixonado pela nobre Arte da Gravura, em vários materiais, principalmente a Pirogravura. Ainda ontem à noite, fundamentado em minhas pesquisas no sentido de encontrar justamente informações sobre padrões islâmicos, encomendei seu livro [“O Simbolismo dos Padrões Geométricos da Arte Islâmica” – Leite, Sylvia]. Acordando cedo, vim pesquisar sobre, e, para minha surpresa vim parar justamente nesse seu artigo. Meus parabéns e muito grato pelas informações extremamente preciosas. Um grande abraço.
Muito obrigada, Paulo. Bom saber que o livro e a matéria do blog sobre Padrões Geométricos lhe interessaram e poderão ajudar de alguma forma. Volte sempre. O blog tem outras reportagens sobre lugares marcados pela Cultura Islâmica e toda semana tem texto novo por aqui.
Eu que agradeço, Paulo, pela leitura, pelo comentário, pelo interesse. Espero que goste do livro. Os padrões geométricos são mesmo apaixonantes.
Sempre achei lindos os padrões geométricos orientais mas não tinha ideia da origem deles (sabia somente que a religião islâmica não permite representar a figura humana, por isso os desenhos abstratos). Muito interessante como a arte se interliga em diferentes países e culturas.
Eu que agradeço, Cintia. Bom saber que gostou de conhecer a origem dos padrões geométricos.