Fábrica de Moais: um ateliê tornado museu

Tempo de Leitura: 8 minutos

Atualizado em 01/05/2024 por Sylvia Leite

Trilha e Moais no canteiro do vulcão Rano Raraku - Foto de Sylvia Leites - BLOG LUGARES DE MEMORIAImagine um ateliê com quase 400 esculturas de pedra dispostas sobre uma montanha, que na verdade é um vulcão inativo – o Rano Raraku. Agora pense que essas centenas de peças foram total ou parcialmente produzidas há pelo menos 500 anos e permanecem ali como se tivessem sido esculpidas ontem. Assim é a Fábrica de Moais: o principal sítio arqueológico de Rapa Nui, ou Ilha de Páscoa. Ali estão guardadas os Moais que não foram concluídos ou que ainda não haviam sido levados para seus respectivos Ahus – os pedestais onde deveriam ser instalados – quando a atividade da ‘fábrica’ foi encerrada repentinamente, por razões até hoje desconhecidas.

Para quem não sabe, Moais são aquelas enormes esculturas de pedra produzidas pelos nativos de Rapa Nui no período de 1000 a 1500 de nossa era, e que hoje encantam pessoas do mundo inteiro. Para nós, trata-se de obras impactantes, não apenas pelo tamanho e pelo inusitado das formas, mas também por sabermos que os nativos não dispunham das tecnologias que existem hoje para esculpi-las e transportá-las, ficando uma grandeAhu em Rapa NUi - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA interrogação sobre como conseguiram essa façanha. Para os rapa nuis, são homenagens póstumas a líderes, governantes ou antepassados importantes com o propósito de perpetuar seu poder espiritual e estendê-lo sobre a tribo como forma de proteção. São chamados por eles de Moai Aringa Ora, que significa “rosto vivo dos ancestrais”.

Ao serem colocados em seus respectivos Ahus – sempre localizados à beira mar e de costas para o oceano – os Moais passavam a integrar uma espécie de centro cerimonial da respectiva tribo e sua instalação era acompanhada de rituais. Mas, até isso acontecer, os ilhéus trabalhavam duro na produção e no transporte dessas estátuas gigantes que chegavam a pesar dezenas de toneladas. E o começo de tudo se dava na chamada Fábrica de Moais – uma espécie de ateliê a céu aberto que funcionava na encosta do vulcão Rano Raraku.

Fábrica de Moais: o maior sítio arqueológico de Rapa Nui

Moai inacabado em Rano Raraku - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAA Fábrica de Moais é o local mais protegido pelos nativos da ilha. O passaporte que compramos ao desembarcar, e que nos dá passe livre e imilitado à maioria dos pontos de visitação, restringe seu acesso a apenas uma visita. Não é pra menos: além dos motivos culturais já citados, existem também razões históricas e arqueológicas, já que nesse canteiro se enconta a maior variedade das estátuas gigantes, seja do ponto de vista da forma, ou do estágio de fabricação.

Há moais grandes, como o El Gigante, projetado para ter 21 metros de altura, e outros pequenos, com menos de dois metros. Há moais prontos, parcialmente esculpidos, ou reccém iniciados. Alguns estão tombados sobre a grama, como se tivessem sido largados ao relento. Isso certamente aconteceu com os que tiveram alguma parte quebrada porque, para os ilheus, qualquer pequeno dano feito a um Moai era capaz de provocar a perda do seu ‘mana’ – ou energia espiritual.

Um dos Moais mais visitados nesse ateliê a céu aberto está parcialmente talhado em posição horizontal e deixaMoai inacabado em Rano Raraku - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA transparecer claramente o processo usado pelos nativos para esculpir na pedra. Em vez de cortá-la em blocos, para serem lapidados até ganharem a aparência final, os rapa nuis esculpiam diretamente na montanha, da qual os Moais se desprendiam paulatinamente na medida em que iam tomando forma e deixavam na montanha a marca de sua extração.

Quem caminha até o fim da trilha rodeada de estátuas vai encontrar o Tukuturi – o único Moai de toda a ilha esculpido de corpo inteiro, sentado sobre as próprias pernas. Uma das características do Tukuturi – palavra que significa ‘moai agachado’ 1– é sua aparência humanizada, com Moai agachado - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAformas arredondadas, o que o torna diferente da maioria dos moais que possuem formas angulosas. Anos depois de sua descoberta, foi encontrado um outro moai com essa mesma característica, mas em tamanho bem menor e sem pernas.

Como se não bastasse a visão dos 397 Moais espalhados ao longo do vulcão, desse ponto é possível avistar o Ahu Tongariki, um dos mais famosos da ilha, tanto por seu tamanho como por sua importância histórica. Trata-se do maior de todos os Ahus, com 15 moais. Além disso, o local onde está instalado foi o centro principal da Confederação Oriental dos Rapa Nui, conhecida entre eles como Hotu Iti.

Esse Ahu teve seus Moais derrubados durante guerras civis entre os nativos e, em 1960, um tsunami arrastou os moais tombados para o interior da Ilha. A restauração ocorreu na década de 1990, por meio de uma parceria do governo chileno com uma japonesa empresa de guindastes e com a Universidade do Chile.Vista do Ahu Tongariki a partir da Fábrica de Moais - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA

Além dos Moais, feitos com a rocha vulcânica do vulcão Rano Raraku, é possível encontrar no local alguns de seus famosos Pukaos – espécie de chapéus avermelhados usados na cabeça de alguns moais, feitos com material colhido em outro vulcão, o Puna Pau – onde estão espalhados inúmeros deles.

E isso é apenas o que se avista na parte externa do vulcão. Seguindo por uma trilha que leva à direção oposta, chegamos à cratera do Rano Raraku, onde também há alguns Moais. Mas, nessa parte, ao espetáculo das esculturas junta-se o da natureza. A cratera tem 600 metros de diâmetro e lá no fundo há uma lagoa com cerca de seis metros de profundidade. Por muito tempo, o acesso à lagoa foi livre, mas, para evitar acidentes, os visitantes atuais não podem utrapassar determinado limite.

Da Fábrica de Moais para os Ahus

Moais ao longo de trilha em Rano Raraku - Foto de Monica Guimaraes - BLOG LUGARES DE MEMORIATão impressionante como o que vemos na Fábrica de Moais é o fato daquelas estátuas gigantescas e extremamente pesadas terem sido transportadas aos respectivos Ahus localizados a até 20 km de distância. Como os ilheus teriam feito isso mais de mil anos atrás? Dessa indagação, nasceram várias teorias. A tradição oral diz que os Moais ‘andavam’ até os Ahus, movimentados pelo próprio ‘Mana’ ou força espiritual. Existem, ainda, diferentes teses, nenhuma devidamente comprovada, levantadas por pesquisadores.

Uma delas, talvez a mais aceita, é de que as estátuas gigantes eram transportadas da Fábrica de Moais até seus respectivos Ahus na posição horizontal, deslizando em cima de trilhos de madeira. Acredita-se, inclusive, que o uso excessivo de madeira nesse transporte teria motivado a extinção das árvores da ilha causando um colapso ecológico. Mas isso é tema para outra matéria.

Outra hipótese é de que os Moais eram transportados na posição vertical, puxados por cordas amarradas em sua cabeças e acionadas alternadamente por pessoas que seVista geral da Fábrica de Moais - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMÓRIA posicionavam de lados opostos, fazendo a pedra se arrastar pelo chão. Há ainda quem acredite que os monolitos eram esculpidos e transportados por extra-terrestres.

O prestígio dos escultores

Se para nós o trabalho de produção das estátuas parece impressionante e exaustivo, para os Rapa Nui tinha um significado especial, tanto que os escultores de Moais gozavam de um status diferenciado. Não precisavam trabalhar na agricultura ou na pesca e os outros integrantes da tribo tinham a obrigação de alimentá-los.

Não se sabe como o trabalho era organizado na Fábrica de Moais nem como se davam, ali, as relações entre as tribos. O que se pôde constatar pelas pesquisas foi que inicialmente os moais eram menores e foram aumentando de tamanho ao longo do tempo. Tudo indica, também, que a produção foi se tornando cada vez maior.Moai com chapeu e olhos - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIA

Sabe-se, ainda, que além dos Pukao, que chamamos de chapéus, os Moais tinham olhos. O globo ou esclera era feito com coral branco (Punga) e a iris com escoria vermelha (Hani-Hani) ou obsidiana.

Ao que tudo indica, os olhos eram eram colocados somente quando os moais já estavam próximos de seus Ahus ou já devidamente acomodados. Acredita-se que sua colocação era um dos momentos mais sagrados do culto de instalação dos Moais. Já os Pukao, que chamamos de chapéus, eram, na verdade, a representação de um penteado que os nativos usavam e que prendia o cabelo na parte alta da cabeça.

Amigo roubado - Moai levado pelos ingleses - Foto de cartaz turístico - BLOG LUGARES DE MEMORIAAs estátuas além da Fábrica de Moais

Embora não se saiba ao certo quantas estátuas chegaram a ser esculpidas em Rapa Nui, acredita-se que o acervo existente hoje na Fábrica de Moais represente entre 40 e 50 por cento do total. Um número semelhante está espalhado pela ilha, em Ahus ou em outros pontos, talvez tombados durante o transporte para algum Ahu. Mas pelo menos 19 dessas estátuas gigantes foram levadas para outros locais, junto com mihares de pequenos Moais talhados em madeira, vértebras de peixe e obsidiana, e diversos tipos de arte rupestre.

A maioria foi parar na Europa, levada por integrantes de expedições maritimas que desembarcaram na ilha no século 19. O caso mais famoso é o do moai conhecido como Amigo Roubado que foi retirado por ingleses de Orongo – Aldeia Cerimonial o Homem-Pássaro – onde era realizada uma competição anual para decidir que tribo governaria a ilha nos 12 meses seguintes.

Moai no jardim do Museu Fonck em Valparaiso - Foto de Sylvia Leite - BLOG LUGARES DE MEMORIAO Amigo Roubado, ou Hoa Hakananai’a em idoma Rapa Nui, encontra-se hoje no Museu Britânico. É uma estátua de 2,4 metros de altura, que pesa 4 toneladas. E não foi a única levada pelos ingleses. O Moai Tita’a Hanga o Te Henua, de 57 cm de altura, foi retirado na ilha de Moto Nui, onde ocorria a parte mais importante da cerimônia do Homem-Pássaro e hoje se encontra no museu Pitt Rivers, em Oxford.

As esculturas restantes encontram-se espalhadas pelo mundo, inclusive no Chile,- país ao qual Rapa Nui está politicamente vinculado. Quem já visitou Valparaíso, certamente teve a oportunidade de conhecer o Moai que decora o jardim do Museu Fonc, conhecido por reunir um acervo de povos como Atacameños, Mapuches , Diaguitas. e Rapa Nuis.

Mas foi do próprio Chile que veio a primeira devolução, no início de 2022: trata-se do Moai Tau, talhado em rocha basaltica, que pesa 715 quilos. A escultura havia sido levada pela Marinha Chilena em 1870 e integrava o acervo do Museu Nacional de História Natural do Chile. A devolução atendeu a um movimento dos Rapa Nuis que objetiva recuperar todos os moais levados da ilha e talvez sirva de exemplos aos museus do mundo inteiro que mantém Moais em seus acervos sem autorização de seus verdadeiros donos.2

Notas

Fábrica de Moais – Vulcão Rano Raraku – Rapa Nui / Ilha de Páscoa – Oceania

Texto

Fotos

  • (2,4,6,8,9,11) Sylvia Leite
  • (3,7) Monica Guimarães
  • (10) Foto de Cartaz turístico de Rapa Nui

Participação especial

Livros

  • Isla de Pascua, Historia del Pueblo Rapanui - Catherine & Michel Orliac.
  • Isla de Pascua, Isla Tierra - Paul Bahn /John Flenley
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M Prado
M Prado
2 anos atrás

Gostei da reportagem sobre sobre o contexto e função cultural destas esculturas, a técnica empregada e a valorização atual pela atuação do povo autóctone .

Val Cantanhede
Val Cantanhede
2 anos atrás

Que espetáculo esse museu e o cenário em que se localiza!
A cultura ancestral preservada na Ilha de Páscoa enquanto que na Amazônia a devastação da floresta e o extermínio dos povos indígenas e dos que os defendem é o que predomina…
Excente matéria, Sylvinha!
Abraços

Sonia Pedrosa
2 anos atrás

Muito interessante, Sylvinha! Realmente, é um mistério a escultura desses moais. E a gente nunca vai ficar sabendo como, realmente, aconteceu. Só nos resta apreciar essas maravilhas.

sidneyjs
sidneyjs
2 anos atrás

Super Legal. Sempre será rodeado de grandes mistérios.

Glicia Salmeron
Glicia Salmeron
2 anos atrás

Adorei a excelente narrativa e relevância do tema. Viajei até o Chile, na leitura do seu texto, Sylvia. Parabéns!