Atualizado em 29/04/2024 por Sylvia Leite
Quem anda hoje em suas ruas, tomadas por centenas de turistas – e ambulantes que oferecem de chapéus a passeios de barco -, talvez não consiga perceber a atmosfera, ao mesmo tempo alegre e melancólica, concreta e fabulosa, que reinava originalmente em Cartagena das Índias. Mas apesar de velada, ela continua lá: em cada esquina, embaixo das varandas e fachadas floridas, ao longo da muralha e, principalmente, nos tipos humanos excêntricos que, embora mais raros, ainda sobrevivem e, por vezes, parecem ter saído de algum livro do seu morador mais ilustre: o ‘prêmio Nobel de Literatura‘ Gabriel García Márquez.
Gabo – como costumava ser chamado por amigos – viveu cerca de dois anos em Cartagena – o suficiente para as imagens da cidade impregnarem sua memória e contribuírem de forma decisiva para a construção de seu estilo literário, que ficou conhecido como Realismo Fantástico. O próprio escritor teria admitido que em suas melhores recordações, e em todos os seus livros, estão presentes, de alguma maneira, as cenas, as pessoas e os lugares que ele conheceu ou avistou por lá.
Foi em Cartagena que García Márquez iniciou sua carreira jornalística como repórter do diário El Universal sob a chefia de Clemente Manuel Zabala, a quem reconheceu pelo resto da vida como seu primeiro mestre. E, dessa rápida experiência, ele extraiu o tema de um romance que seria publicado quase cinquenta nos depois: De amor e outros demônios.
De Amor e Outros Demônios
Como conta o escritor em uma curta introdução ao livro, o mote para sua criação foi um fato ocorrido em 26 outubro de 1949, que ele presenciou ao fazer uma cobertura para o El Universal. Naquele dia, as criptas da capela do antigo convento de Santa Clara estavam sendo removidas porque no local seria construído um hotel cinco estrelas, que existe até hoje. Ali estavam enterrados não apenas bispos e outros religiosos, mas também pessoas leigas de famílias nobres e, de uma das tumbas, surgiu um crânio de criança preso a uma enorme cabeleira ruiva que media 22 metros e 11 centímetros.
Gabo tinha ido ao local sem grande esperança de conseguir assunto para uma boa matéria, e mesmo a enorme cabeleira – único fato com potencial de notícia – acabou sendo minimizada pelo mestre de obras que conduzia o serviço. Segundo sua explicação, os cabelos podem crescer, mesmo depois da morte, cerca de um centímetro por mês, de modo que 22 metros em aproximadamente dois séculos lhe pareciam algo dentro da média.
Mas uma recordação da infância, passada em Aracataca – pequena cidade a cerca de 250 km dali – mudou o rumo das coisas. O jovem jornalista lembrou ter ouvido de sua avó a história da filha de um marquês que morreu aos 12 anos, “do mal de raiva, transmitido em uma mordida de um cachorro, e que era venerada nos povoados do Caribe por seus muitos milagres”1. Segundo a lenda, a menina tinha uma cabeleira tão longa que mais parecia a cauda de um véu de noiva.
A suspeita de que aquela ossada, identificada como Serva Maria de Todos os Anjos, pudesse ser da tal marquesinha milagreira foi ‘gancho’ para a matéria do El Universal, na década de 1940, e inspiração para o romance ficcional, publicado em 1994.
“De Amor e Outros Demônios” não é o único livro de Gabo diretamente relacionado a Cartagena. Em “O amor nos tempos do cólera”, um de seus romances mais famosos, ele narra uma paixão proibida, inspirada na história de seus próprios pais, que tem como cenário a cidade caribenha. Já o livro “Relato de um Náufrago”, lançado em 1970, reúne uma série de reportagens publicadas quinze anos antes no El Espectador sobre o polêmico naufrágio de um navio de guerra que se dirigia a Cartagena.
Quem se dispuser a procurar, provavelmente encontará elementos e relatos fantásticos de Cartagena – de forma assumida ou velada – em cada um de seus livros inclusive em “Cem anos de solidão”, ambientado na mágica e lendária cidade de Macondo, que, para muitos, é uma mistura de Cartagena com Aracataca.
Cartagena: a cidade escolhida
Mesmo tendo vivido pouco tempo em Cartagena, Gabriel García Márquez sempre a tratou como uma espécie de segunda terra natal, seja pela proximidade geográfica e cultural com Aracataca – lugar onde nasceu e viveu até os oito anos de idade – seja pelas condições especiais em que chegou ali, fugindo do ambiente de violência que havia tomado Bogotá em 1948, depois do assassinato do líder liberal e candidato a presidente Jorge Eliécer Gaitán.
Ao recordar o dia de sua chegada à cidade, ele afirma sobre a mudança de cenário: “de repente, o mundo havia se tornado outro em Cartagena. Não havia rastros da guerra que assolava o país…” Sobre a cidade em si, ele faz a seguinte reflexão: “me bastou dar um passo dentro da muralha para enxergá-la em toda sua grandeza à luz malva das seis da tarde, e não pude conter o sentimento de haver tornado a nascer.”2
Aquela não era uma cidade qualquer, mas um lugar do qual tinha ouvido falar por toda sua vida de criança e adolescente, e onde havia experimentado ou presenciado situações inesquecíveis. Um local onde viveu por apenas dois anos, mas frequentou pelo resto da vida, entre outras razões porque sua família mudou-se para lá. Foi, ainda, o espaço que elegeu para sediar uma fundação que leva o seu nome, criada em 1995 com o fim de incentivar o jornalismo independente.
Diante de tudo isso, Cartagena acabou sendo escolhida, pela família do escritor, para abrigar suas cinzas que, desde 2015, um ano depois de sua morte, estão na sede administrativa da Universidade.
Uma presença oculta
Embora García Márquez tenha estabelecido todos esses laços com Cartagena, sua presença ali disputa espaço com outros elementos mais evidentes à primeira vista, como a bela arquitetura de casarios coloridos e as imponentes fortalezas – que renderam à cidade o título de Patrimônio Mundial da Humanidade. Compete, ainda, com os museus da Inquisição e do Ouro, os charmosos hotéis e restaurantes e até mesmo com a referência a outro artista, o escultor Fernando Botero, que doou à cidade uma de suas obras, hoje transformada em atração turística.
Mas quem se interessar em seguir os rastros do escritor pode visitar o Parque de Bolívar, onde ele passou grande parte de sua primeira noite na cidade, ou os bares do bairro Getsemaní, fora da muralha, onde convivia com os mais diversos tipos e vivenciava situações que depois retratava em seus livros.
Nesse roteiro vale acrescentar, ainda, uma passagem pela esquina da orla com a rua Zerrezuela, onde se pode observar, de fora, a casa cor de telha que ele mandou construir para abrigá-lo em suas constantes visitas à cidade.
E os que preferirem estimular a imaginação, podem andar em silêncio pela antiga muralha, com um de seus livros nas mãos, admirando o lendário mar do Caribe e parando, de vez em quando, para ler alguns trechos ou tentar relembrar algumas de suas cenas.3
Notas
- 1 O trecho entre aspas foi extraído da introdução ao livro "De Amor e Outros Demônios".
- 2 Os trechos entre aspas foram extraídos do corpo do livro "Vivir para contarla".
- 3 Leia, aqui no blog, sobre outros lugares especiais da Colômbia: Castelo de São Felipe de Barajas / Catedral de Sal / Museu Botero
Cartagena das Índias – Colômbia – Caribe
Fotos
- (1, 2, 3, 4, 5, 6, 8) Sylvia Leite
- (7) Alexandre Cerqueira usina3/ Pixabay
Referências
- Site Fundação Gabo
Livros
- De amor e outros demônios, Gabriel García Márquez
- O amor nos tempos do cólera, romance de Gabriel García Márquez
- Vivir para contarla, autobiografia de Gabriel García Márquez
Vivir para contarla é imperdível. Grata Sylvia. Pela reportagem sobre Cartagena e Gabo. Lembrei que preciso reler. Um tesouro de histórias.
Eu que agradeço pela leitura e pelo comentário. Abs, Sylvia
Quanta beleza em seu relato, Sylvinha!
Já tinha ouvido de amigos comentários elogiosos sobre Cartagena, mas seu texto com detalhes da vida do Gabo por lá reacendeu o desejo de conhecer a cidade.
Abraços
Val Cantanhede
Obrigada Silvia pelo relato pleno de informações sobre Gabriel Garcia Marquez e a simpática Cartagena.
Que bom! Não vai se arrepender. Abraços
Eu que agradeço pela leitura e pelo comentário, Vânia. Bjs
Que delícia de texto, Sylvinha! Deu vontade de conhecer!
Beijão,
sonia.
Você vai gostar, Soninha. Beijos
Catargena é uma cidade linda. O Convento que foi transformado em hotel 5 estrelas, qdo fui lá eles permitiam visitar os jardins e admirar a aequitetura do antigo convento..no jardim tem uma escultura do Botero.
É linda mesmo! Obrigada pelo comentário. Só faltou dizer seu nome.
Já estive em Cartagena. Realmente é uma cidade linda. Voltarei assim que puder.
Saudades de Cartagena. Quando será que voltarei?
Também gostaria de voltar e passear um pouco mais pelas muralhas. Abs.
Quem sabe? …
Saudades de ler Garcia Marquez… acho que uma viagem a Cartagena seria mesmo uma bela inspiração para imaginar cenários fantásticos 🙂
Marcella, pode ter certeza de que só o fato de estar Cartagena pode nos levar a imaginar o universo de García Marquez. Se puder, faça uma caminhada pelas muralhas. Foi o lugar que me deixou mais conectada com ele.
Quero muito conhecer Cartagena! Um lugar realmente inspirador. Adorei seu post. Vou ler García Márquez com outros olhos!
Como é linda Cartagena, colorida, cheia de lindos monumentos e Histórias.
Cartagena é mesmo uma preciosidade. E além de tudo que você falou, ainda tem um mar azul turquesa, como em todas as praiasdo Caribe, e muita Salsa rsrs
Estou planejando uma viagem de 1 semana para Cartagena no próximo ano, mas antes de propor ao marido queria saber mais sobre ela para ajudar a convencê-lo já que temos outra viagem já programada. E simplesmente já me apaixonei pelo que li aqui.
Que bom que gostou. Se forem a Cartagena, não deixem de passear por cima das muralhas.